No desejo de armar seus correligionários, transformando adversários em alvos, a intenção de liquidar a democracia. Para isso, presidente relaxou leis sobre venda de armas, ofereceu privilégios a clubes de tiro e exonerou general que se opôs
Por Almir Felitte
Desde o início dos cursos de direito, aprendemos que a Administração
Pública deve obedecer ao Princípio da Impessoalidade. Isso
significa dizer, de forma bem resumida, que a Administração Pública
deve agir sempre na defesa do interesse público, e não de
interesses privados. Assim, não é permitido que um governo use a
máquina pública para defender interesses individuais, beneficiar
aliados ou perseguir rivais. Esse Princípio da Impessoalidade parece
simplesmente não existir para Jair Bolsonaro.
Mas
as interferências do Presidente na máquina estatal vão muito além
das claras investidas contra a independência da Polícia Federal nas
investigações que atingem em cheio sua família e suas estranhas
relações com milicianos.
10
dias antes de Moro deixar o Ministério da Justiça acusando
Bolsonaro de tentar intervir nestas investigações, outra
interferência grave do Presidente já havia virado notícia. Em seu
Twitter1,
Bolsonaro anunciava, em recado para “atiradores e colecionadores”,
que havia determinado, nas palavras dele, “a revogação das
Portarias COLOG Nº 46, 60 e 61, de março de 2020, que tratam do
rastreamento, identificação e marcação de armas, munições e
demais produtos controlados por não se adequarem às minhas
diretrizes definidas em decretos”.
Essas
Portarias editadas pelo Comando Logístico do Exército tratavam da
criação do SisNaR, o Sistema Nacional de Rastreamento de Produtos
Controlados pelo Exército, além de estabelecer regras para os PCE
(Produtos Controlados pelo Exército). Em resumo, elas tinham o
objetivo de fortalecer o controle logístico de armas e munições no
país, melhorando o rastreamento das mesmas, facilitando, por
exemplo, investigações sobre crimes cometidos com armas. Assim,
atendiam plenamente as funções garantidas pelo Estatuto do
Desarmamento, uma lei de hierarquia superior a qualquer Decreto
editado por Bolsonaro.
Mas
a interferência de Bolsonaro não ficou apenas na ordem de revogar
as portarias. O episódio foi além e culminou na exoneração do
General Eugênio Pacelli Vieira Mota, diretor de Fiscalização de
Produtos Controlados e responsável pela edição da portaria
contestada pelo Presidente da República. Embora o Exército tenha
dito, oficialmente, que sua saída já era programada, Pacelli deixou
uma carta de despedida que não parecia dizer o mesmo.
A
carta2,
de modo quase irônico, dizia: “Nossos empresários e industriais
do ramo de PCE tem suas parcelas de colaboração neste trabalho
modernizador. Muito obrigado! Aliás, desculpe-me se por vezes não
os atendi em interesses pontuais… não podia e não podemos: nosso
maior compromisso será sempre com a tranquilidade da segurança
social e capacidade de mobilização da indústria nacional”.
O
ocorrido despertou a atenção do MPF, que investiga a possível
interferência ilegal de Bolsonaro no Exército. Para a Procuradora
Raquel Branquinho3,
que aponta que a revogação das Portarias facilita ao crime
organizado o acesso a munições e armas desviadas, Bolsonaro teria
agido de forma inconstitucional, podendo levar a uma improbidade
administrativa ou até mesmo a um inquérito no STF. Para tornar tudo
ainda mais suspeito, dias depois, já exonerado, o General Pacelli
teria, em tempo recorde, redigido um parecer autorizando uma nova
norma que triplicava o limite de compra de munições no país.
O
curioso, porém, é que, ao olhar um pouco mais para trás, esta
talvez não tenha sido a primeira interferência no Exército para a
defesa de interesses privados da cúpula do Governo Bolsonaro. Outra
Portaria referente ao controle de armamentos e munições pelo
Exército já foi alvo de estranhas revogações que, ao que tudo
indica, atenderam aos mesmos interesses privados deste último caso.
A
Portaria Nº 125, também do COLOG4,
publicada em 22 de outubro de 2019, teve uma vida curta, de apenas 17
dias. Ela dispunha “sobre a aquisição, o registro, o cadastro e a
transferência de armas de fogo de competência do Sistema de
Gerenciamento Militar de Armas e sobre aquisição de munições”.
Na base eleitoral de Jair Bolsonaro, o sentimento espalhado pelas
redes sociais foi de insatisfação entre os chamados CACs
(Caçadores, Atiradores e Colecionadores), que reclamaram muito do
aumento da burocracia para a aquisição de armas e munições por
este grupo.
Em
sua página oficial5,
um deputado estadual do PSL, Ruy Irigaray, manifestou seu “total
repúdio e indignação a Portaria 125”, afirmando que “General
Neiva, responsável pelo COLOG, é quem assina essa portaria que
reflete a falta de respeito ao povo brasileiro que votou nas eleições
de 2018 a favor do porte de armas, do porte esportivo e dos CACs,
principais apoiadores do presidente Jair Messias Bolsonaro”.
No
mesmo caminho, Alexandre Leite, deputado federal pelo DEM-SP, chamou
a Portaria 125 de “ato autoritário” e “bola nas costas”6.
Horas depois, tranquilizou os CACs ao informar que o DFPC do Exército
entrara em contato com ele para explicar que tudo era apenas um
mal-entendido causado por erros de digitação7.
Mas
os “simples erros de digitação” demoraram longos 17 dias para
serem corrigidos com a nova Portaria 136, publicada em 8 de
novembro8.
As mudanças realizadas, porém, foram muito maiores do que qualquer
erro de português. A nova Portaria, que revogou a antiga, manteve a
maior parte de seu texto, mas trouxe alterações profundas nos
dispositivos que tratavam justamente dos CACs.
Algumas
mudanças trazidas foram, por exemplo, o aumento da validade da
autorização para aquisição de arma de fogo de 180 dias para 1 ano
e a abertura de brechas para que a quantidade de armas e munições
adquiridas por esse grupo pudesse superar o limite previsto no
recente Decreto 9.846/19 assinado por Bolsonaro. Outras excluíram
exigências formais para CACs adquirirem armas de uso restrito,
reduzindo declarações de entidades esportivas nacionais a meras
declarações do próprio comprador.
Ao
todo, em relação à Portaria 125, a Portaria 136 adicionou 9
dispositivos que não existiam na anterior e alterou outros 9, sendo
que nenhuma dessas mudanças referiu-se a meros “erros de
digitação”. Foram todas mudanças substanciais do conteúdo da
lei, comemoradas publicamente pelos CACs. Difícil crer que, após
pressão política e recados diretos à base eleitoral de Bolsonaro,
a edição de uma nova Portaria tão diferente da antiga tenha sido
mera correção.
Dias
depois da publicação da nova Portaria, em 21 de novembro, o General
Carlos Alberto Neiva Barcellos, então Comandante Logístico, foi
transferido para a reserva e exonerado de seu cargo, sendo designado
para assumir o cargo de Conselheiro Militar na Conferência do
Desarmamento em Genebra9.
Estas
movimentações todas, porém, ganharam um ingrediente explosivo e
preocupante nos últimos dias. Entre crimes e imoralidades, a
publicação do vídeo da reunião ministerial na semana passada
revelou, ainda, um plano nem tão oculto assim de Bolsonaro. O
Presidente foi direto ao falar de seu interesse em armar parcelas da
população contra as instituições democráticas e em demonstrar
que seus Decretos regulando o setor tinham esse objetivo.
Conforme
falei na minha coluna anterior10,
parece ser antigo o sonho da família Bolsonaro em importar o modelo
de milícias privadas dos EUA para o Brasil. Há anos, aliás,
membros dessa família, incluindo o próprio Jair, defendem
publicamente a legalização desse tipo de atividade paramilitar. Uma
atividade que, aliás, só se tornou possível nos EUA diante de
legislações tão frouxas no que diz respeito ao controle de
armamento.
As frequentes interferências do Presidente para a edição de normas
que facilitem o acesso privado a armas e munições levantam uma forte
suspeita de que Bolsonaro usa descaradamente a máquina pública para seus
projetos pessoais de poder, seja para favorecer grupos políticos
armamentistas que compõem sua base eleitoral, seja com um ainda obscuro
objetivo de formar milícias privadas de extrema-direita.
Notas:
2
http://www.dfpc.eb.mil.br/index.php/noticias-menu/573-palavras-de-despedida-aos-integrantes-do-sisfpc-gen-pacelli
3
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,mpf-aponta-interferencia-de-bolsonaro-no-exercito,70003283704
Fonte Outras Palavras
NÃO DEVE SER NADA FÁCIL TER GRITADO AOS QUATRO CANTOS "EU NÃO TENHO BANDIDO DE ESTIMAÇÃO" E DESCOBRIR QUE TEM UMA MILÍCIA INTEIRA... FORÇA, BOZOLINOS TROUXAS!