Autoritário e politicamente inepto, presidente tensiona democracia. Que poderia acontecer, caso tivesse força para realizar seus desejos podres? Quais seriam os braços do regime miliciano e evangélico? Um exercício de imaginação realista
Outras Palavras
Por André Oda, professor e pesquisador da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, doutor em Sociologia na USP.
Não é segredo pra ninguém que, desde o início do mandato, Bolsonaro
busca promover um golpe dentro do golpe, um autogolpe “contra o
sistema”: um “sistema” que, para seus seguidores, parece como se fosse
algo estranho a Bolsonaro e sua claque. Em 15 de março de 2020,
Bolsonaro estava em plena carga contra os outros Poderes (legislativo e
judiciário, representado pelo STF) quando os alarmes contra a pandemia
soaram no país e esvaziaram o campo de batalha.
Nas últimas
semanas, experimentamos os efeitos da espiral de subjetividades
bolsonaristas, cultivada e movimentada em suas bolhas de informações
falsas (as chamadas “fake news”), na agressão ao pessoal do
campo da saúde que está na linha de frente do combate à pandemia,
na sabotagem deliberada a hospitais de atendimento, com carreatas e
armas empunhadas, no elogio da morte, nessa paixão de abolição
(como falavam Deleuze & Guatarri sobre os microfascismos), que os
faz desejar essa morte que passa por eles e pelos outros.
Bolsonaro mesmo
se colocou na crise política em que está por seguir os passos
indicados por sua paixão (não correspondida) por Donald Trump.
Nesse cenário, o presidente brasileiro tem em seu colo uma
bomba-relógio política que reduz suas possibilidades de ação, que
devem acontecer enquanto durar a crise sanitária. Enquanto estamos
clamando por medidas sanitárias urgentes para controlar os efeitos
devastadores do vírus, Bolsonaro parte para o tudo ou nada
exatamente no momento em que as possibilidades de ação política
por parte da oposição estão limitadas. Isso resultará ou na
autocracia fascista, ou na destituição do miliciano. O presente
texto busca traçar um cenário possível do que seria um regime
miliciano-fascista caso Bolsonaro tenha sucesso em sua empreitada
golpista.
Antes de iniciarmos, um alerta: isso não é uma sociologia nem tem
pretensão de cientificidade, apesar de seu potencial valor heurístico.
Bourdieu disse que o sociólogo não deve nunca ceder à “tentação
profética”, seja na acepção do sociólogo-rei que arregimenta seguidores e
joga pra plateia, seja na de exercer uma futurologia como a que farei
aqui. Mas esse é apenas um exercício do pensamento cuja pretensão
singela é exagerar até o absurdo tendências atuais.
Descrevo um
futuro possível, um construto analítico contra o qual, convenhamos,
o futuro efetivamente não é obrigado a obedecer. É um pouco como a
fórmula de roteiristas e escritores para escrever estórias de
distopias, como a M. Atwood, e como aqueles, pretendo jogar –
através desse prognóstico hipotético – alguma luz na
configuração atual de forças.
De todo modo,
como o leitor poderá ver, não há elementos estranhos ao contexto
atual, ex machinis, para esse exercício. O mínimo que esse
texto pretende é fazer que vejam – os diferentes “players”
que estão apostando suas fichas no autogolpe bolsonarista – que
essa é uma aposta muito mais arriscada e perigosa para eles mesmos
do que sua perspectiva imediatista permite enxergar.
Feitas essas
considerações, chegamos à questão: como seria um regime
bolsonarista consolidado? Como seria um Estado tomado pelas milícias
cariocas, pela cúpula das igrejas evangélicas, pelos grandes
proprietários de terra, pela turba furiosa, pelos fascistas nas mais
diversas organizações burocráticas, por setores incultos das
Forças Armadas?
Com o
aprofundamento da crise do capitalismo neoliberal, o bolsonarismo no
poder não terá muitas opções ademais de transformar o país em um
narcoestado e uma narcoeconomia. A Milícia no poder destruirá ou
subordinará as outras facções criminosas.
A economia
dependerá cada vez mais de influxos de capital das várias máfias
para levantar prédios, expandir negócios, ampliar serviços.
Serviços públicos essenciais serão privatizados para que esses
capitais de origem criminosa tenham novas opções de lavagem de
dinheiro. Será a repetição trágica do “milagre econômico”
da ditadura militar.
A parte mais
violenta e dominada do agronegócio vai se especializar no tráfico,
produção e processamento de coca, papoula, e outras. A meia
tonelada de pasta de cocaína apreendida pela Polícia Federal em
2014 no helicóptero do Senador Perrela não causou lá muita comoção
na época, mas indica que as rotas do narcotráfico internacional já
passam pelo universo rural da grande propriedade.
Grupos
paramilitares vão se proliferar nas igrejas; ao redor de
latifundiários; empresários entenderão que a violência do crime
organizado será condição para sua prosperidade e se tornarão
financiadores desses e de outros grupos paramilitares; pistoleiros e
sicários serão as carreiras mais promissoras no novo mercado de
trabalho.
A repressão
política e econômica no novo estado miliciano-paramilitar será
descentralizada. As Forças Armadas perderão seu “poder
moderador” e não serão mais os últimos detentores do uso
legítimo da violência na nova configuração política.
A paixão
contra-a-corrupção será aplacada com os assassinatos sistemáticos
de minorias — sociais, políticas, econômicas –, bodes expiatórios
serão regularmente executados sob as acusações mais ridículas. O
poder judiciário finalmente cumprirá seu desejo de servir a um
führer e expurgará, no universo jurídico, todo ativista judicial
que não siga a direção apontada pelo líder supremo.
Mamadeira de
piroca foi só o começo. O tal “gabinete do ódio” – que
consegue hoje operar com apenas R$50.000 por mês e fazer o estrago
que faz – será substituído por um ministério de comunicações
com orçamento bilionário. A bolha de fantasias criadas pelas
notícias mentirosas terá pra si uma imprensa dócil que,
convenhamos, nunca teve dificuldade para mentir, sem qualquer
prejuízo, antes de 2018. Artistas serão cooptados ou extintos.
A fantasia da
família branca de classe média atacada por forças alienígenas ao
“cidadão de bem” será cultivada até chegar ao seu
paroxismo. A maquinaria de notícias falsas será, ancorada na
fantasia da família branca ameaçada, uma fábrica de homens-bomba,
suicidas e homicidas na missão de conservar sua tão cara ficção.
O mercado
religioso será dominado por três ou quatro igrejas evangélicas; as
frações mais estúpidas e violentas ganharão impulso no interior
da igreja católica. A tendência no campo religioso será a da
realização do monopólio completo por uma dessas igrejas. A
multiplicação de denominações pentecostais ou neopentecostais,
que faz com que jovens pastores fundem suas próprias igrejas e
inaugurem variações rituais e doutrinárias, será freada através
de instrumentos institucionais estatais e pela ação de grupos
armados das grandes empresas religiosas.
A paixão
“patriótica” pelos EUA e o “Ocidente” será
inculcada nas escolas, ao mesmo tempo em que haverá uma lenta, mas
progressiva talebanização dos costumes, regrada pelas denominações
religiosas dominantes. Não demorará muito para as igrejas
estadunidenses começarem a disputar o mercado religioso brasileiro
com a IURD (Igreja Universal do Reino de Deus).
As elites
políticas tradicionais vão, em um primeiro momento, se submeter ao
führer. Entrarão de cabeça na competição de quem aparenta ser
mais violento e estúpido, aparentarão ser “bolsonaristas-raiz”,
mas nunca deixarão de ser vistos como inimigos. Pautarão a agenda
presidencial em um primeiro momento, mas logo depois encontrarão o
obstáculo da esquizofrenia paranoica do presidente-doente. Suas
acusações de conspiração multiplicar-se-ão numa espiral
infinita, fractal.
Ideias de eugenia
– já em execução durante essa pandemia – tornar-se-ão
política de estado. O projeto de lei do antigo deputado Bolsonaro,
de esterilizar os pobres, pode ser implementado, a não ser que tome
seu lugar uma biopolítica de fabricação de buchas de canhão para
guerras por procuração, sem fim ou mesmo sem finalidade, contra
nossos vizinhos e além.
O significado de
Milícia se expandirá para além dos domínios localizados nas
periferias do Rio de Janeiro: seremos, o país inteiro, uma milícia
dos EUA, acompanhando-os em sua decadência até a hora mais grave do
breve império de sete décadas.
As próximas
semanas dessa crise política, ao que parece, serão decisivas para o
futuro do país e poderão produzir efeitos estruturais
irreversíveis. E parece cada vez mais provável que aqueles que
estão apostando em lucros políticos, econômicos e sociais no curto
prazo serão, em pouco tempo, engolidos pelo monstro que estão
ajudando a parir.
Fonte Outras Palavras
RESUMO DA REUNIÃO MINISTERIAL:
O BOCA PORCA NÃO TEM POSTURA NENHUMA DE PRESIDENTE.