sexta-feira, 5 de junho de 2020

OS QUE QUEREM “GANHAR TEMPO” E OS QUE NÃO TÊM TEMPO A PERDER


Ângela Carrato: Assim, enquanto a elite brasileira tenta “ganhar tempo” em função dos seus interesses, aqueles que “não têm tempo a perder”, sabem que a questão para eles é de vida ou morte. Para esses, não cabem mais adiamentos. A hora é agora.



Vi o Mundo


Por Ângela Carrato*, especial para o Viomundo

Com uma morte por covid-19 a cada minuto, o Brasil já assumiu o triste posto de um dos líderes mundiais em mortos e infectados.

Mesmo assim, o ministério da Saúde, que deveria implementar e coordenar a agenda nacional de combate à pandemia, está sem titular desde o pedido de demissão de Nelson Teich.

Milhares de vidas de brasileiros já foram perdidas e outros tantos ainda morrerão, mas nada é feito para se conter esse genocídio.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) continua guardando a sete chaves 35 pedidos de impeachment de Bolsonaro.

Pedidos formulados por partidos políticos, entidades da sociedade civil e até cidadãos comuns. Quando questionado sobre as razões de não pautar essa discussão, Maia escorrega e diz que o momento não é adequado.

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, agendou, para a próxima terça-feira, o julgamento de duas ações que pedem a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão, por irregularidades na campanha eleitoral de 2018.

Dificilmente essas ações levarão à condenação da chapa, pois não dizem respeito às fake news e sim a um ataque cibernético que um grupo de mulheres que criticava Bolsonaro durante a campanha foi alvo. Nesse caso, não há provas consistentes que liguem Bolsonaro ao ataque.

Provas mais do que suficientes de uso de fake news por parte do governo Bolsonaro, no entanto, existem.

Relatório produzido a pedido da Comissão Mista Parlamentar de Inquérito (CPMI) das Fake News identificou que 653.378 anúncios em 47 canais de notícias falsas foram pagos com verba da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) em apenas 38 dias, entre 6 de junho e 13 de julho de 2019.

Entre os canais recordistas de veiculações pela Secom estão o site “Sempre Questione”, que traz matérias sobre “múmias alienígenas escondidas em pirâmides do Egito” e os dedicados a promover a imagem de Bolsonaro, como o canal do YouTube Terça Livre TV, pertencente ao blogueiro Allan dos Santos, que recebeu farta publicidade oficial.

Allan dos Santos é também um dos 29 suspeitos de divulgar fake news contra o Supremo Tribunal Federal (STF) que foi alvo de busca e apreensão, além de ter tido seus sigilos fiscal e telefônico quebrados há pouco mais de uma semana, por determinação do ministro Alexandre de Morais.

A tomada de depoimentos está em andamento, mas não deixa de ser sintomático que os filhos de Bolsonaro tenham recrudescido nas críticas que fazem ao STF e o próprio Bolsonaro tenha dito que estão querendo criminalizar “a imprensa que me apóia”.

O problema é que essa imprensa que o apóia tem divulgado mentiras e está sendo paga com dinheiro público. O que caracteriza duplo crime.

Mesmo assim, até o momento, o ministro Alexandre de Morais reluta em tomar medidas mais duras contra esses blogueiros.

SITUAÇÃO EXPLOSIVA

No plano econômico, a situação do Brasil não poderia estar pior.

Os dados do IBGE indicam uma queda de 18,8% na atividade industrial, na passagem de março para abril desde ano, a maior registrada desde o início dessa série histórica, em 2002.

Entre os setores mais atingidos estão a indústria automobilística e a de tecidos e confecções. O resultado é que novos milhares de pessoas perderam seus postos de trabalho e agora se somam aos 12 milhões de desempregados e aos mais de 40 milhões que vivem na informalidade.

As ruas dos grandes e médios centros urbanos brasileiros são testemunhas do aumento visível da pobreza e da miséria.

Na política externa, a situação do governo Bolsonaro também é muito ruim.

Os democratas, que são maioria na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, se opõem a que o governo Trump amplie a parceria econômica com o Brasil.

Os legisladores estadunidenses citam “o desrespeito aos direitos humanos, aos direitos dos trabalhadores e ao meio ambiente” como as razões pelas quais não deve haver qualquer ampliação da parceria.

Apesar da insistência de Bolsonaro em se aproximar cada vez mais de Trump, o próprio Trump está cada dia mais complicado e vendo as chances de ser reeleito, em novembro próximo, encolherem.

A demora de Trump em reagir e tomar providências em relação ao covid-19 fez com que a pandemia se alastrasse pelos Estados Unidos.

Some-se a isso que a morte de um homem negro, George Floyd, por policiais brancos em Minneapolis, trouxe à tona todos os problemas ligados ao racismo estrutural e à desigualdade naquele país que se considera “a maior democracia do mundo”.

O resultado é que o candidato democrata, Joe Biden, segundo pesquisa da CNN, já está oito pontos à frente de Trump na corrida presidencial.

Bolsonaro e seus apoiadores obviamente estão de olho no que acontece nos Estados Unidos.

Além de Bolsonaro procurar se espelhar em Trump, ele sabe que a situação dos negros no Brasil é tão ou mais explosiva que a dos Estados Unidos, especialmente num momento que tanto aqui como lá, são os negros e os pobres, moradores de aglomerados e da periferia, os mais atingidos pelo covid-19.

Mas, ao contrário de Trump, Bolsonaro parece disposto a pagar para ver. Tanto que vetou o repasse de R$ 8,6 bilhões a governos estaduais e municipais para o uso no combate à pandemia.

Atitudes assim indicam que ele, mesmo acreditando na existência de “complôs” contra seu governo, parece seguro o suficiente de que não interessa à elite que o levou ao poder, retirá-lo de lá.

ESTÁ RUIM E VAI PIORAR

A eleição de Bolsonaro, marcada por fraudes, não foi algo que surpreendeu à elite brasileira.

Ao contrário, foi uma opção. Cansada de perder eleições democráticas, essa elite foi quem derrubou do poder, sem crime de responsabilidade, Dilma Rousseff, apoiou a condenação, sem provas, e prisão do ex-presidente Lula e a proibição para que disputasse as eleições de 2018.

Foi essa mesma elite que entre a vitória do candidato Fernando Haddad, do PT, um professor e um humanista, e Bolsonaro, então no PSL, um militar reformado, truculento e fascista, preferiu o segundo.

Preferência que diz muito. Significa que essa elite queria dar um basta nas políticas de inclusão social, no combate às desigualdades e na política externa soberana, vigentes nos governos petistas.

E o resultado do golpe está aí. Enquanto há 10 anos o Brasil estava prestes a ultrapassar a França como quinta maior potência do mundo, agora o país não fabrica mais nem respiradores e vê seu mercado interno encolher de forma drástica.

Some-se a isso que, com o governo atual, as chances de retomada do crescimento no pós-pandemia são inexistentes.

O capital externo não investirá aqui, porque não há ambiente seguro para negócios e o capital interno continuará recolhido, pois não é sua característica arriscar em situações incertas.

Uma possível retomada do crescimento teria que ser puxada pelo Estado, mas isso o ministro da Economia, Paulo Guedes, um ultraliberal convicto, não quer nem ouvir falar. Aliás, sua intenção é aproveitar a pandemia para continuar promovendo novos ajustes, na contramão de tudo o que está sendo feito no mundo.

Em outras palavras, se a situação está ruim, ela tende a piorar, com os níveis de empobrecimento passando a atingir, em cheio, também a classe média.

Daí a pergunta: por que Bolsonaro continua no poder?

O RISCO DE SE PEGAR O PRIMEIRO ÔNIBUS

Existe uma expressão inglesa “buying time” cuja tradução literal é “tempo comprado” ou “dar tempo ao tempo”.

Ela significa adiar um acontecimento iminente, na tentativa de ainda o impedir.

É exatamente isso o que a elite brasileira está fazendo em relação ao governo Bolsonaro. Ela sabe que Bolsonaro não tem mais condição de permanecer no cargo, pelo “conjunto da obra” e a incapacidade de propor algum projeto viável para o Brasil, mas está tentando adiar ao máximo a sua queda, porque ainda não encontrou uma solução que a satisfaça.

Vale dizer: uma solução que mantenha a aparência democrática e que exclua a oposição, em especial o PT, de retorno ao poder.

É dentro desse contexto que se pode entender as críticas pontuais de políticos como o governador de São Paulo, o tucano, João Dória, ou Rodrigo Maia a Bolsonaro.

É dentro desse contexto que se deve entender a profusão de manifestos e abaixo-assinados que tomou conta da cena política nacional nos últimos dias e mesmo a oposição conservadora que parte da mídia, Grupo Globo à frente, vem fazendo a Bolsonaro.

Qual o ponto que une todas essas “críticas”?

A busca por uma solução que retire Bolsonaro do poder, mas mantenha intacta a sua agenda econômica ultraliberal (retirada de direitos da maioria da população, venda do patrimônio público, perda da soberania nacional).

Dito de outra forma, a elite brasileira ganha tempo, com o objetivo de impedir que os interesses dos setores populares sejam ouvidos.

“Juntos pela Democracia e pela Vida” é um desses manifestos que critica a situação atual.

O texto é de responsabilidade de uma organização chamada Pacto pela Democracia, que tem como patronos alguns bilionários, como a Fundação Leman, de Jorge Paulo Leman, homem mais rico do Brasil, Maria Alice Setúbal, herdeira do banco Itaú, e Beatriz Bracher, mãe de Cândido Bracher, presidente do Itaú.

Estão também entre os apoiadores do movimento uma ONG dos Estados Unidos ligada às chamadas guerras híbridas, a National Endownment for Democracy.

Outro manifesto, o “Estamos Juntos”, que mereceu amplos espaços de divulgação na mídia corporativa, teve, segundo seus organizadores, esses anúncios pagos por pessoas físicas e não por empresas. Figuram entre seus signatários também Maria Alice Setúbal e Beatriz Bracher.

Em que pese esses manifestos falarem em democracia, não se referem de forma concreta aos interesses dos trabalhadores e da maioria dos brasileiros.

Razão pela qual o ex-presidente Lula, em uma sequência de tweets que publicou, deixou claro que não dá para aceitar a ideia, como querem alguns, de que Bolsonaro é resultado de um processo amplamente democrático e, mais ainda, alertou as pessoas para o risco de “pegarem o primeiro ônibus que tá passando”.

De acordo com Lula, “estão querendo reeducar o Bolsonaro, mas não querem reeducar o Guedes. Tem pouca coisa do interesse da classe trabalhadora nesses manifestos”.

Lula estava se referindo também ao editorial publicado pelo jornal O Globo, em 31/05, sob o título “Os democratas precisam conversar”, no qual a publicação líder do Grupo Globo defende o entendimento entre as diversas forças políticas, incluindo o próprio Bolsonaro.

OS QUERIDINHOS DA ELITE

Por experiência política, Lula sabe do que está falando. A história recente do Brasil encontra-se repleta de exemplos de como a elite liberal, agora ultraliberal, sob o guarda-chuva de “democrata” confundiu a opinião pública e “buying time” no que diz respeito aos seus interesses.

Foi assim, por exemplo, com o fim da ditadura civil-militar de 1964. Era para as décadas de autoritarismo terem sido concluídas com a realização de eleições diretas para presidente da República.

Mas o que fez a elite braseira? Derrotou a emenda das diretas-já no Congresso Nacional e a sucessão do último general-presidente se deu de forma indireta, via Colégio Eleitoral.

O vitorioso, Tancredo Neves, integrante da oposição moderada, representava uma solução de compromisso.

Diante de sua morte, antes mesmo de assumir, a solução encontrada pelas elites, ao arrepio da lei, foi empossar o seu vice, José Sarney que, até pouco antes, era nada menos do que o presidente do partido situacionista.

Em tais circunstâncias, o que a lei determinava era a realização de novas eleições. Mas sobre esse assunto a elite não quis nem ouvir falar.

A passagem da ditadura para a democracia se deu assim, sem que os responsáveis por arbítrios e violências de toda ordem fossem responsabilizados. O resultado está sendo sentido ainda hoje, com as defesas, por parte de alienados ou oportunistas, da “intervenção militar”.

O governo de Sarney nada mais foi do que a continuação, em trajes civis, dos 21 anos de militares no poder. E mesmo que a Constituinte, por ele convocada, tenha avançado em vários aspectos importantes para a maioria da população, ela só saiu do papel efetivamente nos governos petistas.

É importante ressaltar que na eleição de 1991, a primeira pelo voto direito para presidente desde 1960, o vencedor foi um jovem, porém representante da velha oligarquia nordestina, Fernando Collor, com o apoio da mídia corporativa brasileira, TV Globo à frente.

O Grupo Globo, aliás, teve participação fundamental contra candidatos como Lula, Leonel Brizola ou mesmo Ulysses Guimarães.

E se o Grupo Globo foi importante no processo que culminou com a renúncia de Collor, para se livrar do impeachment, seu vice, Itamar Franco, que não era exatamente um liberal, encontrou um caos tamanho no governo que não teve tempo para avançar em qualquer outra pauta que não fosse o combate à inflação.

Daí não ter havido tempo hábil para que suas diferenças com a elite brasileira aparecessem.

O primeiro governo do tucano Fernando Henrique Cardoso foi cercado por aplausos dessa elite e pelos interesses internacionais, porque ele começou a colocar em pauta a agenda neoliberal já presente em países da Europa e nos Estados Unidos.

Agenda que foi aprofundada em seu segundo governo (quem se lembra da reeleição comprada?), quando das privatizações da telefonia, da Cia Vale do Rio Doce e de centenas de outras empresas estatais.

FHC e os políticos tucanos (Dória que o diga) continuam sendo os queridinhos da elite brasileira e da Globo.

O problema é que no voto, nenhum deles conseguiu vencer Lula ou Dilma. Daí essa elite ter partido para soluções não democráticas como o golpe, travestido em impeachment, a eleição fraudada de Bolsonaro e, agora, a tentativa de “domesticar” Bolsonaro ou mesmo manter sua agenda através de um grande entendimento que, claro, exclua o PT e demais partidos de efetiva oposição.

Não é por acaso que os editoriais de O Globo, considerado “a voz do trono” da família Marinho, começam a insistir nessa tecla. Não é por acaso que jornais conservadores como os matutinos Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo vêm tentando comparar o ex-presidente Lula com Bolsonaro, como se tivessem alguma semelhança.

A tentativa de compará-los faz sentido quando se percebe que o objetivo dessa mídia é neutralizar Lula e abrir espaço para um entendimento que não leve em conta os interesses da maioria dos brasileiros.

Prova disso é que apenas a oposição conservadora – FHC, Dória, Maia e até o ex-ministro Moro – são os únicos que têm espaço garantido contra Bolsonaro nesses jornais e na própria TV Globo.

Você se lembra quando foi a última vez que a Globo entrevistou Lula?

DA POLÍTICA PARA O MERCADO

O Estado de S. Paulo nessa linha, tem ido um pouco além, publicando artigos do vice-presidente Hamilton Mourão em que ele tenta se diferençar de Bolsonaro.

Esses artigos, para além da incrível falta de sensibilidade para com os que sofrem neste momento, têm conseguido apenas deixar mais visível sua face igualmente autoritária.

Parlamento, grandes empresários e mídia corporativa são apenas algumas faces da elite brasileira.

Essa mesma elite que prefere “buying time”, dar tempo ao tempo, a Bolsonaro, enquanto não consegue uma solução que seja palatável aos seus interesses.

O sociólogo alemão Wolfgang Streeck, no livro cujo título é exatamente “Tempo Comprado, a crise adiada do capitalismo democrático”, mesmo sem se referir ao Brasil, faz uma descrição minuciosa do que estamos vivendo na economia e suas implicações na política.

De acordo com Streeck, nas democracias transformadas pelo neoliberalismo e agora pelo ultraliberalismo, não há nenhuma incompatibilidade entre o máximo de exploração e mesmo de arbítrio e o capitalismo.

Para deixar mais claro o ponto de vista do autor, se no período do pós-Segunda Guerra Mundial acreditava-se no “capitalismo do bem”, representado pelos estados keynesiasnos, essa possibilitada viu-se sepultada a partir do fim dos anos 1960.

De lá para cá, o lugar de garantia de apoio para o capitalismo moderno transferiu-se da política (massas populares, partidos) para o mercado e, nos dias atuais, atinge o clímax da financeirização.

O que explica muito do teor de alguns dos manifestos que estão circulando e a própria blindagem da mídia corporativa a Guedes.

Sem tempo a perder, pois o que está em jogo é a sua própria vida, manifestações antifascistas no Brasil começam a surgir em plena pandemia, a partir de setores que não têm envolvimento político-partidário: as torcidas organizadas de times de futebol.

A elas estão se seguindo outros setores, como o Povo Sem Medo e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) que devem ir às ruas no próximo domingo (07/6) em São Paulo.

Assim, enquanto a elite brasileira tenta “ganhar tempo” em função dos seus interesses, aqueles que “não têm tempo a perder”, sabem que a questão para eles é de vida ou morte.

Para esses, não cabem mais adiamentos. A hora é agora.

*Ângela Carrato é jornalista e pofessora do Departamento de Comunicação Social da UFMG.


O VERME VETOU OS 8,6 BILHÕES APROVADOS PELO CONGRESSO PARA A COMPRA DE EQUIPAMENTOS HOSPITALARES DO COMBATE AO VÍRUS.




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