por Luiz Carvalho e Vanessa Ramos
São Paulo – Hoje (26), a
Rede Globo de Televisão, maior emissora do país, completa 50 anos de
existência. Para os movimentos sociais que sairão às ruas Brasil afora,
uma oportunidade ímpar de exercitar a reflexão sobre o papel que exerceu
em meio século de vida.
Recentemente, a
jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG
(Universidade Federal de Minas Gerais), Ângela Carrato, apresentou um
quadro bastante didático com 10 de fatos que marcaram a atuação de um
grupo que concentra 60% do capital nos meios de comunicação no Brasil.
Poderio só comparado à da Televisa, no México, país que também sente os
efeitos negativos da ausência de democracia no acesso e distribuição da
informação.
A visão de quem já fez
parte do jornalismo global contribui decisivamente para esclarecer o que
está por trás da "vênus platinada". O jornalista Luiz Carlos Azenha –
que além da Globo trabalhou nas concorrentes SBT e Manchete e atualmente
está na Record – diz que o já falecido dono da emissora, Roberto
Marinho, não apenas fomentou o golpe militar de 1964, como se utilizou
dele para fortalecer o monopólio.
"Por meio da Embratel, a
ditadura criou, com dinheiro público, a rede física que interligou o
território nacional. A Globo, gratuitamente, tirou proveito disso. A
ditadura assentou a base material para o Jornal Nacional", explicou.
Além disso, o Código
Brasileiro de Telecomunicações, aponta o jornalista, é uma "verdadeira
selva" e a confusão burocrática faz com que não existam instrumentos
modernos para monitorar e sancionar as concessões de rádio e TV, que são
públicas.
Azenha, que trabalhou na
Globo em dois períodos distintos: nos anos 1980 e no final dos anos
1990, relata ainda a experiência de quem viveu a cobertura de uma
eleição. "Neste segundo período, quando fiz minha primeira e única
cobertura de uma campanha presidencial pela Globo de São Paulo, notei a
aplicação de dois pesos e duas medidas em algumas circunstâncias. Por
exemplo, alguns profissionais se revoltaram com o fato de que a emissora
repercutia as capas da revista Veja com reportagens contrárias ao PT,
mas não fazia o mesmo quando as denúncias eram contra o PSDB. Por isso,
fui encarregado de fazer uma reportagem que de certa forma comprometia
um político tucano. Apesar de aprovada pela chefia em São Paulo, ela
nunca foi ao ar", lembra.
Manipulações
O cenário narrado por
Azenha é confirmado pelo também jornalista Rodrigo Vianna, que trabalhou
durante 12 anos na emissora. Para ele, ao completar 50 anos, a emissora
tenta apagar seu passado e reescrever a história.
"Acho 'esquizofrênico' a
Globo querer agora parecer vítima da ditadura até porque, depois de
defender a ditadura e crescer com o regime, há muito pouco tempo
resolveu pedir desculpas. As Organizações Globo não só ajudaram a dar o
golpe de 1964, como se beneficiaram e se consolidaram (como poder
econômico) com ele", salienta.
Vianna foi demitido da
emissora na véspera do primeiro turno das eleições de 2006, que acabaram
levando o ex-presidente Lula ao segundo mandato. Ele era repórter e
cobria a editoria de política e discordou do posicionamento
'manipulador' da Globo à época
Ali Kamel
Miguel do Rosário, autor
do blog "O Cafezinho", foi condenado em fevereiro deste ano a pagar R$
20 mil ao diretor do departamento de jornalismo da Globo, Ali Kamel.
"Fiz uma matéria que criticava a Globo, mas que ele distorceu o sentido
em sua acusação para torná-la uma questão pessoal", explica.
Rosário acredita que a
falta de regulamentação do setor favorece o monopólio midiático. "Num
regime capitalista liberal, onde não há regulação, prevalece o mais
forte. E o mais forte, no caso, é a emissora que emergiu da ditadura
como um monstro."
Desproporções
Apesar de iniciativas
como a recente distribuição de um manual de conduta aos funcionários,
com instruções como a proibição de usar o nome da Globo para obter
vantagens ou a obrigação de ser imparcial, nem sempre as normas parecem
prevalecer, como constadado nas últimas eleições.
Segundo dados do
Manchetômetro, portal criado por pesquisadores da Universidade do Rio de
Janeiro, entre 1º de janeiro e 9 de agosto do ano passado, o Jornal
Nacional dedicou um total de uma hora e 22 minutos para dar notícias
consideradas desfavoráveis à candidata Dilma Rousseff (PT), enquanto
Aécio Neves teve 5 minutos e 35 segundos de notícias negativas no mesmo
período.
Leia mais:
Em memória de uma vítima esquecida do mundo que a Globo ajudou a criar em 1964.
Dodora e seu sorriso invencível
Diário do Centro do Mundo
Uma figura feminina aparece na minha mente sempre que leio a respeito do papel da Globo no golpe de 1964.
Não a conhecia até recentemente, mas me apaixonei assim que a vi.
Ela estava num documentário sobre o golpe a que assisti no ano passado.
É um trabalho rústico, uma câmara e depoimentos. E é sublime como retrato de uma época sinistra.
O documentário foi gravado em 1971, no Chile. Os autores foram dois
cineastas americanos – Haskell Wexler e Saul Landau — que estavam no
Chile para entrevistar Allende.
Eles souberam que havia um grupo de exilados brasileiros com
histórias de tortura e decidiram registrá-las com sua câmara. O grupo
tinha sido trocado pelo embaixador da Suíça no Brasil.
Surgiria, como que por acaso, “Brasil, um relato da tortura”, um
pequeno épico do cinema que não se curva aos poderosos. Eram talentosos
os americanos. Haskell posteriormente receberia dois Oscars por
trabalhos na área de fotografia de grandes produções de Hollywood.
É uma mulher que me fisga no filme, uma jovem médica que narra as
barbaridades que ela e os companheiros sofreram nas mãos dos agentes da
ditadura.
Ela é bonita, articulada, e pesquisando vejo que fascinou também os documentaristas americanos.
Ela tinha 25 anos na ocasião, e riu ao lembrar as torturas, que
narrou meticulosamente. Parecia invencível diante das violências.
“Fui colocada nua numa sala com cerca de 15 homens”, disse ela. “Fui espancada e esbofeteada.”
Seu rosto bonito ficou, contou ela, completamente deformado, conforme queriam os algozes.
Durante a sessão puseram num volume ensurdecedor “música de macumba”,
e ela lembrou que os torturadores pareciam “excitados, felizes” como se
estivessem numa festa.
A certa altura, a agarraram pelos seios e puseram uma tesoura em seu
mamilo. Pressionavam e soltavam, e ameaçavam extirpá-lo. Também diziam
que iriam matá-la.
Uma das forças do vídeo é que os entrevistados mostram como eram as
torturas, como o pau de arara. São reproduções realistas e assustadoras.
Comecei a ver, por sugestão de minha filha Camila, e não consegui
parar em quase 1 hora de conteúdo extraordinário. Fiquei perturbado como
há muito tempo não ficava.
E depois quis saber mais das pessoas. Particularmente dela: passados mais de quarenta anos, que estaria fazendo?
E então vem a parte triste. Como escreveu Machado de Assis em Dom
Casmurro quando as coisas degringolam, pare aqui quem não quer ver
história triste.
Maria Auxiliadora Lara Barcelos, este o nome daquela guerreira que
comoveu aos cineastas e a mim. Dora ou Dodora, como a chamavam.
Ela não viveu para ver o fim do horror militar.
Pouco tempo depois, como Ana Karenina, se jogou sob as rodas de um
trem. Ela estava com problemas psiquiátricos derivados da selvageria a
que foi submetida, e tinha acabado de se consultar com seu médico.
Morava, então, em Berlim.
Dois anos depois de feito o documentário, Pinochet tomou o poder no Chile, e Dora teve que partir de novo.
Primeiro foi para a Bélgica, e depois para a Alemanha Ocidental. Era
brilhante: passou em primeiro lugar entre 600 estrangeiros e conseguiu
aprovação para complementar seus estudos de medicina na Universidade de
Berlim.
Fiquei triste, quase enlutado, ao saber do que ocorreu com ela. Já
imaginava entrevistá-la, e especulava sobre como ela estaria hoje.
Conservaria vestígios da beleza sobranceira e altiva do passado?
Num voo mental, penso que se ela tivesse nascido na Escandinávia,
hoje seria uma avó, cheia de histórias para contar aos netinhos.
Fantasio-a de bicicleta em Copenhague, feliz entre pessoas que são
felizes porque aquela é uma sociedade como prescreveu Rousseau: sem
extremos de opulência e de miséria.
Mas ela nasceu e cresceu na terra da iniquidade, que combateu com
coragem assombrosa e idealismo inexpugnável. Não há em sua fala vestígio
de remorso por ter caminhado o caminho que escolheu.
Em Laura, o filme clássico de Preminger, o detetive se apaixona pela
foto de uma mulher assassinada. Como que me apaixonei por Dora ao vê-la
no documentário.
Fico tolamente satisfeito quando minha filha Camila me conta que,
pesquisando, descobriu que Dilma prestara tributo àquela brasileira
indomável.
Em fevereiro de 2010, quando o PT confirmou a candidatura de Dilma
para a presidência da república, Dilma disse em seu discurso: “Não posso
deixar de ter uma lembrança especial para aqueles que não mais estão
conosco. Para aqueles que caíram pelos nossos ideais. Eles fazem parte
de minha história. Mais que isso, eles fazem parte da história do
Brasil.”
Dilma citou três pessoas. Uma delas era Dodora. “Dodora, você está aqui no meu coração.”
E no meu também.
E é nela que penso quando reflito sobre o papel da Globo no golpe.
E nela projeto todos os outros tombados.
A Globo ficará eternamente impune – rica e impune — pelos
assassinatos que indiretamente promoveu ao abrir as portas para a
ditadura?
Nem um miserável pedido de desculpas será endereçado à memória de Dodora?
Ninguém a protegeu em vida, que ela ceifou ao se atirar sob as rodas de um trem nas remotas terras germânicas.
E a opulência impeninente da Globo em seu conquentenário mostra que também na morte Dodora continua desprotegida.
Roberto Marinho virou bilionário com o mundo que ele se empenhou
tanto por moldar, o das botas e das metralhadoras assassinas, e Dodora
só conseguiu escapar de tudo sob as rodas de um trem.
Tinha 31 anos.
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