Após o texto de 2013 que denunciava a “cultura do descarte” e do esbanjamento dos países ricos, a imprensa conservadora dos Estados Unidos havia definido Francisco como “Papa marxista”. Amanhã, tornar-se-á o “Papa ecologista”, louvado por uns, detestado pelos outros.
"Certamente se poderá dizer que os predecessores do Papa Francisco foram totalmente mudos sobre o argumento. Mas Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI ligavam os desafios ecológicos à esfera da 'moral', ou seja, dos interrogativos sobre a família e sobre a bioética", escreve Henri Tincq, jornalista, em artigo publicado por Slate, 17-06-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo:
Do Unisinos.
Como explicar que um Papa, pela primeira vez, fala de ecologia num
documento do “magistério” da Igreja? O Papa é o chefe espiritual (e
político) de mais de um bilhão de homens e mulheres católicos em todos
os continentes. Compartilha, com o outro bilhão de cristãos
(evangélicos, protestantes, anglicanos, ortodoxos), a narração bíblica
da criação (no Gênesis), que impõe ao homem dominar e proteger a terra e
todos os frutos de uma natureza criada por Deus.
Da noite dos tempos, o Papa intervém, em tempo oportuno (e com
frequência inoportuno!), nos afazeres terrestres, fala de tudo o que diz
respeito à humanidade, sua grandeza e suas fraquezas, condena as
guerras e a opressão, exalta os pobres, milita “pela vida”, prega a
favor da justiça social, por um mundo mais justo, um gênero humano mais
solidário. E precisamos esperar este dia 18 de junho de 2015 para que um
Papa publicasse, finalmente, uma encíclica, quase inteiramente escrita
por seu próprio punho, dedicada ao ambiente, à “salvaguarda da Criação” e
daquela que com razão define “a casa comum”, com as relações entre os
seres vivos num mundo vivo, as ameaças ecológicas e climáticas que pesam
sobre o futuro do planeta e sobre o destino da humanidade.
Tomada de consciência
Alguns o deplorarão, como aqueles bons católicos tradicionalistas
(não necessariamente integralistas) que ainda identificam a ecologia com
uma batalha dos “esquerdistas”, dos filhos do ’68 e do Larzac. São a
favor de uma “ecologia humana” (defesa da vida, da lei natural, da
família, luta contra o aborto e o matrimônio para todos), mas desconfiam
de uma “ecologia ambiental e global”. O Papa será também criticado – e a
coisa já começou nos Estados Unidos – por todos os conservadores
céticos sobre as causas das mudanças climáticas, para os quais o
aquecimento não é, em primeiro lugar, o resultado da atividade humana e
social, mas de dados puramente naturais.
Mas muitos outros ficarão bem felizes com esta (tardia) tomada de
consciência na cúpula da Igreja. Todos aqueles, certamente, crentes e
ateus, que, no mundo militante, estão na vanguarda das batalhas
ecológicas. Também todos aqueles que, nas comunidades cristãs, têm uma
experiência direta, em particular no mundo rural, no qual se protege –
ou se destrói – o elo com a vitalidade dos seres da natureza. Enfim,
todos aqueles que compartilham desta sensibilidade cristã ao tema
bíblico da “salvaguarda da Criação”, indissociável das outras lutas
evangélicas pela “paz” e a “justiça”. Sobre isto, os cristãos
protestantes e ortodoxos sempre estiveram mais na frente dos católicos.
Desde 1990, o Conselho mundial das Igrejas (com sede em Genebra) reunia
em Seul uma assembleia geral sobre o tema “Justiça, paz e salvaguarda da
Criação”. Os católicos não estavam presentes. A eclipse, sobre este
tema, da doutrina católica, demasiado presa apenas pela “ecologia
humana”, iludiu por muito tempo os teólogos da vanguarda. Como o
patriarca ortodoxo de Constantinopla, chamado o “patriarca verde”, está
na chefia de muitas associações de defesa do ambiente.
Certamente se poderá dizer que os predecessores do Papa Francisco
foram totalmente mudos sobre o argumento. Mas Paulo VI, João Paulo
II, Bento XVI ligavam os desafios ecológicos à esfera da “moral”, ou
seja, dos interrogativos sobre a família e sobre a bioética. Para eles, a
“degradação” do mundo era uma constatação entre as outras, consciente
ou não, do projeto de Deus para a humanidade e para a Criação. Em sua
encíclica sobre a “caridade” (Caritas in veritate [Caridade na
verdade] de junho de 2009, Bento XVI punha em discussão os entusiasmos
de uma globalização que perturba todos os esquemas de desenvolvimento,
os modelos econômicos e as estruturas sociais até as “bases” materiais
da existência do planeta. Mas defendia em primeiro lugar uma “ecologia
do homem”, no qual a liberdade e a responsabilidade individual se
articulavam com o desenvolvimento. “Existe uma ecologia do homem”,
sublinhava ele ainda em 2011, diante do Bundestag em Berlim.
Ecologia global
O Papa atual ultrapassa um novo limiar. Passa da ecologia do homem à
ecologia global. Não é por nada que ele escolheu, na tarde de sua
eleição, o nome de Francisco, alusão a Francisco de Assis, santo patrono
dos ecologistas, símbolo de fraternidade universal, que dedicou sua
vida à reconciliação de todo o mundo criado, terra e céu Acumular bens
era para ele uma loucura. Francisco de Assis percorria as estradas,
mendigava o seu pão, pregava a conversão. Antes de morrer, compôs o
famoso Cântico das criaturas, universalmente conhecido, no qual
convidava o “irmão Sol” e “nossa mãe Terra” e todas as criaturas a
louvarem Deus.
O título da encíclica do Papa Francisco, “Louvado seja”, é inspirado
neste Cântico das criaturas de Francisco de Assis. O Papa
Francisco – Jorge Mario Bergoglio – vinha de um continente, a América
Latina, no qual as urgências ecológicas estão entre as mais graves. Já
tinha mostrado sua grande sensibilidade aos problemas do ambiente por
ocasião da conferência dos bispos latino-americanos de Aparecida, no
Brasil, em 2007. “Eu ouvia os bispos brasileiros falarem do
desflorestamento da Amazônia”, contará ele mais tarde. Como arcebispo de
Buenos Aires, apresentou recursos diante da Corte suprema da Argentina
para bloquear empresas de desflorestamento no norte de seu país. Hoje se
diz em Roma que, para a redação da encíclica, ele consultou padres
empenhados em todas as lutas da terra da Amazônia.
Mas, não basta. Tornado Papa, o bispo jesuíta latino-americano fez da
luta à pobreza o objetivo prioritário de seu pontificado. A crítica
violenta do “neocapitalismo selvagem”, que formula regularmente, do
“neocapitalismo selvagem”, do modelo econômico ultraliberal e
produtivista, do acúmulo de riquezas improdutivas, não é nova no
discurso da Igreja. Desde a encíclica “Rerum novarum” do Papa Leão
XIII – em 1891 – a Igreja produziu um corpus de “doutrina social”
sólido, que denunciava vigorosamente as desigualdades sociais,
respeitado e seguido por gerações inteiras de responsáveis políticos,
patronais, sindicais, associativos. Mas, pela primeira vez – e é a
novidade da encíclica publicada no Vaticano aos 18 de junho – a Igreja
menciona as consequências, em termos ecológicos, traduzidas em outras
tantas ameaças para o inteiro planeta, de sua radical contestação dos
modos de produção, distribuição e consumo. Após o texto de 2013 que
denunciava a “cultura do descarte” e do esbanjamento dos países ricos, a
imprensa conservadora dos Estados Unidos havia definido Francisco como
“Papa marxista”. Amanhã, tornar-se-á o “Papa ecologista”, louvado por
uns, detestado pelos outros.
Fonte Diário do Centro do Mundo
Leia também:
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Fonte Diário do Centro do Mundo
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Ecologia integral. A grande novidade da Laudato Si'. "Nem a ONU produziu um texto desta natureza''. Entrevista especial com Leonardo Boff
O conceito de ecologia integral é "o ponto central da construção
teórica e prática da Laudato Si". Receio que ela não seja entendida
pela grande maioria, colonizada mentalmente apenas pelo discurso
antropocêntrico de ambientalismo, dominante nos meios de comunicação
social e infelizmente nos discursos oficiais dos governos e das
instituições internacionais como a ONU. Como o novo paradigma sugere,
todos formamos um grande e complexo todo", afirma o teólogo e escritor.
"A visão da ecologia integral
é sistêmica, integra todas as coisas num grande todo dentro no qual
nos movemos e somos. Deste nexo de relação de todos com todos, o Papa o
faz derivar de um dado teológico. Deus-Trindade é por essência relação
eterna e simultânea entre as três divinas Pessoas. Se Deus-Trindade é
relação, então tudo no universo é também relação", comenta Leonardo Boff ao analisar, em entrevista concedida à IHU On-Line por email, a Carta Encíclica Laudato Si' de Papa Francisco sobre o cuidado da casa comum, publicada na manhã de hoje, 18-06-2015.
Segundo o teólogo, para o Papa Francisco, "não vale o motto norte-americano: um só mundo - um só império. Mas um só mundo e um só projeto comum".
Leonardo Boff ressalta que o "Papa assume a metodologia que ele mesmo fez incluir explicitamente no documento de Aparecida:
ver, julgar, agir e celebrar. Este método tem a vantagem de partir
sempre de baixo, das realidades concretas, dos desafios reais e não de
doutrinas a partir das quais se fazem deduções, geralmente abstratas e
pouco mordentes quando referidas aos temas suscitados".
E lembra uma frase de São Tomás de Aquino: "um erro
no conhecimento do mundo pode nos induzir a um erro no conhecimento de
Deus. Tudo está em relação. As ciências a seu modo servem ao Senhor de
todas as coisas".
"O valor desta encíclica
- continua - não se mede apenas por aquilo que ela propõe, mas pelo
ensinamento dos demais bispos espalhados pelo mundo inteiro. Isso também
constitui uma novidade deste pontificado, em tantos pontos tão inovador
e surpreendente".
E conclui lembrando "a frase humorística de Chesterton: estamos todos no mesmo barco e todos estamos enjoados. Todos não. Seguramente não o Papa Francisco".
Leonardo Boff é teólogo, filósofo e autor de uma imensa obra sobre temas ambientais. Desta obra, citamos Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres, recentemente reeditada.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a novidade da encíclica Laudato si'?
Leonardo Boff - A absoluta novidade consiste em que a
encíclica assume o novo paradigma contemporâneo segundo o qual tudo
forma um grande todo com todas as realidades interconectadas,
influenciando-se umas às outras. Isso faz superar a fragmentação dos
saberes e confere grande coerência e unidade ao texto. Nem a ONU produziu um texto desta natureza.
IHU On-Line - Qual é a estrutura lógica da Laudato si'? Quais
são as teses que o Papa defende nesta encíclica e em que consiste sua
argumentação central?
Leonardo Boff - O Papa assume a metodologia que ele mesmo fez incluir explicitamente no documento de Aparecida: ver, julgar, agir e celebrar.
Esse método tem a vantagem de partir sempre de baixo, das realidades
concretas, dos desafios reais, e não de doutrinas a partir das quais se
fazem deduções, geralmente abstratas e pouco mordentes quando referidas
aos temas suscitados. O método obriga-nos a ver a incorporação dos dados mais seguros das ciências e compor o quadro real das questões mais relevantes.
No julgar
se processam dois movimentos: um científico-analítico e outro
teológico. Nisso o Papa foi mestre: desmascara as explicações ilusórias
de certo tipo de ciência intrassistêmica, onde aparece seu caráter
ideológico, geralmente em benefício do mercado e dos grupos dominantes
que consideram as contradições de ordem social e ecológica como
externalidades que não entram na contabilidade dos negócios. É nesse
ponto em que se revelam os impasses da atual situação e sua incapacidade
de apresentar qualquer solução, a não ser mais do mesmo.
A parte do julgar teológico é mais fácil porque aí
se manejam as categorias já conhecidas pela teologia. Mesmo nesta parte
faz as correções necessárias aos reducionismos feitos na leitura da
posição do ser humano dentro da criação, não como dominador, mas como
cuidador e guardador da herança recebida de Deus. Explora os momentos
bíblicos positivos ligados à criação e oferece de forma bela o exemplo
de Jesus em relação para com os vários momentos da natureza, dos
pássaros, das flores, os campos, as colheitas.
Na parte do agir, cobra dos estados políticas globais já que o problema é global. Para ele não vale o motto
norte-americano: um só mundo - um só império. Mas um só mundo e um só
projeto comum. Enfatiza os pequenos passos que vêm de baixo, mas que
trazem as sementes do novo.
Na parte do celebrar, se estende sobre a conversão ecológica
e sobre a espiritualidade. Esta não se deriva tanto de doutrinas, mas
das mensagens e inspirações que os caminhos espirituais apresentam para
uma adequada relação para com a criação, mais que para com a natureza. É
de se notar a pedagogia desenvolvida pelo Papa: nunca dá proeminência
ao aspecto sombrio da realidade, mas enfatiza a capacidade humana de
superar dificuldade e encontrar soluções benfazejas. Em todas as
questões, os pobres estão presentes, e sabe associar o grito da Terra
com o grito dos pobres, coisa que se acentua muito na reflexão
latino-americana.
IHU On-Line - Quais os principais conceitos teológicos da
Laudato si' e como eles se relacionam com a teologia mais geral do Papa
Francisco?
Leonardo Boff - O principal conceito teológico é ver
não tanto a natureza mas a criação. Ela remete ao Criador e é expressão
de um ato de amor. Cita a bela frase do livro da Sabedoria
que "Deus é o soberano amante da Vida" (11,26). Depois o conceito de
encarnação pela qual o Filho não assumiu simplesmente a natureza humana,
mas a matéria do mundo e o próprio mundo, referindo-se a Teilhard de Chardin, que desenvolveu esta visão cósmica. Insere Cristo no mistério da criação, citando as epístolas de Efésios e Colossenses.
A ressurreição representa a transfiguração de todo o universo. Vê o
mundo não como algo a se resolver, mas a se admirar e louvar.
Deus-Trindade é relação eterna, por isso todas as coisas são sua
ressonância e vivem sempre relacionadas.
IHU On-Line - A que visão de mundo o Papa está, de certo
modo, se opondo? E que visão de mundo ele sugere aos leitores da Laudato
si'?
Leonardo Boff - Coerente com sua ecologia integral,
vê o mundo como ordens abertas umas às outras, todas interconectadas, o
que supõe uma visão evolucionista do universo, sem dizer o nome e entrar
nesta questão. Realça, sim, a singularidade do ser humano, portador de
sinais da divindade com uma missão ética de se responsabilizar pela
criação. Vê o mundo como casa comum, o que sugere um sentido de
familiaridade.
Inspira-se em São Francisco
para relembrar a irmandade entre homens e mulheres, entre todos os
seres, também o irmão sol, a irmã lua, o irmão rio e todos os demais
seres. Aqui alça seu voo poético-místico. A visão do Papa é sempre
positiva e tenta resgatar o que de bom existe. Mas é rigoroso na crítica
das agressões que infligimos à casa comum, aos milhões de pobres que
são desatendidos e é contra a cultura do consumo. Propõe a sobriedade
compartida.
IHU On-Line - Na parte que fala da "raiz humana da crise
ecológica”, o Papa menciona que a crise é consequência do
antropocentrismo moderno, chamando atenção também para os malefícios do
relativismo. Como avalia a tese de que a causa da crise ecológica tem
como base uma crise humana?
Leonardo Boff - Para o Papa a raiz da crise
ecológica reside na tecnocracia. Distingue-a da tecnociência que tantos
benefícios nos trouxe. Mas ela degenerou em tecnocracia, uma espécie de
ditadura da técnica com a pretensão de resolver todos os problemas
ecológicos. Com justeza critica esta visão porque ela isola os seres que
estão sempre entrelaçados. Ao dissociá-los pode produzir mais
malefícios que benefícios. Neste contexto aborda o antropocentrismo, pois a tecnocracia é arma de dominação do ser humano sobre os outros e sobre a natureza.
Parte da ilusão de que as coisas apenas se ordenam ao uso humano,
esquecendo que cada ser possui um valor intrínseco, louva a Deus a seu
modo e nos traz uma mensagem específica, pois é único no universo.
O antropocentrismo afasta o ser humano da natureza; não se sente
parte dela e se sobrepõe a ela como forma de dominação, quebrando a
fraternidade universal. Por isso que o simples ambientalismo permanece
sempre antropocêntrico, pois vê apenas o ser humano, o seu bem-estar e
não o bem comum de todos os demais seres, habitantes da casa comum.
IHU On-Line - Como a degradação do planeta dialoga com os
excluídos – os pobres, os idosos, as vítimas da financerização da vida
–, sempre tão citados nos discursos de Francisco? De que forma o Papa
estabelece conexão entre a degradação humana e a do planeta?
Leonardo Boff - Na sua ecologia integral vê todos os
fatos e fenômenos interligados. Ofender a Terra é ofender o ser humano
que também é Terra, como diz o Papa, citando o Gênesis.
A voracidade produtivista e consumista produz duas injustiças, uma
ecológica, degradando os ecossistemas, e outra social, lançando na
pobreza e na miséria milhões de pessoas. O Papa denuncia essa conexão
causal. Por isso propõe uma mudança de paradigma no relacionamento entre
todos, que seja mais benevolente para com natureza e mais justo para
com os seres humanos e todos os demais seres que habitam a casa comum.
IHU On-Line - Em que consiste o conceito de ecologia integral, proposto pelo Papa na Laudato si'?
Leonardo Boff - Esse me parece o ponto central de
sua construção teórica e prática acerca da ecologia. Receio que ela não
seja entendida pela grande maioria, colonizada mentalmente apenas pelo
discurso antropocêntrico de ambientalismo dominante nos meios de
comunicação social e infelizmente nos discursos oficiais dos governos e
das instituições internacionais como a ONU. Como o novo
paradigma sugere, todos formamos um grande e complexo todo. Há uma rede
de relações que perpassam todos os seres, ligam e religam todas as
ordens. O Papa repete como um ritornelo que tudo está em relação, que
todos os seres, mesmo os menores, estão envolvidos em laços de conexões.
Nada existe fora da relação.
Isso implica entender que a economia tem a ver com a política,
educação com a ética, ética com a ciência. Todas as coisas relacionadas
se entreajudam para existir, subsistir e continuar neste mundo. Essa
visão é absolutamente nova nos discursos do magistério, ainda refém do
velho paradigma que separava, dicotomizava, atomizava e dividia a
realidade em compartimentos. Em função desta visão distorcida, para cada
problema tinha a sua solução específica sem dar-se conta de sua
incidência nas outras partes que podia ser maléfica.
A visão da ecologia integral é sistêmica,
integra todas as coisas num grande todo dentro do qual nos movemos e
somos. Deste nexo de relação de todos com todos, o Papa o faz derivar de
um dado teológico. Deus-Trindade é por essência relação eterna e
simultânea entre as três divinas Pessoas. Se Deus-Trindade é relação,
então tudo no universo é também relação.
IHU On-Line - O texto da encíclica também traz concepções do
laicato. Como as ideias das ciências estão presentes na encíclica? Qual
a intenção de Francisco nesse movimento de escuta às ciências?
Leonardo Boff - O Papa Francisco
respeita e escuta as ciências porque elas lhe trazem a real situação
ecológica do mundo. Precisamos ouvir o que elas nos têm a dizer. Sem sua
contribuição a Igreja teria um olhar vesgo e uma prática sem eficácia. O
mundo laico é o que cultiva especialmente o saber científico. Eles
devem ajudar a comunidade cristã a definir os melhores caminhos. Aqui
vale lembrar uma frase de São Tomás de Aquino: um erro
no conhecimento do mundo pode nos induzir a um erro no conhecimento de
Deus. Tudo está em relação. As ciências a seu modo servem ao Senhor de
todas as coisas.
IHU On-Line - Críticos ao texto de Francisco alegam que o
Papa não foi neutro nas considerações sobre o tema. Teria ouvido apenas
quem acredita nos efeitos do aquecimento global e não a vertente da
ciência que é mais cética a essa visão. Como avalia esse posicionamento
de Francisco?
Leonardo Boff - O Papa simplesmente manda ver a
realidade que está ao nosso redor. Aí notamos a devastação da casa
comum, o maltrato da natureza e especialmente dos mais vulneráveis. Não
precisamos de muita ciência para nos darmos conta de que tais
iniquidades são fruto da atividade irresponsável do ser humano.
Agredimos de tal forma a Terra, que ela perdeu sua sustentabilidade.
Para repor o que dela tiramos num ano, ela precisa de um ano de
trabalho. O Papa Francisco não discutiu com a opinião
divergente, porque hoje já foi desmoralizada pela comunidade científica e
é refutada pelos próprios fatos, que são os eventos extremos que
ocorrem em todas as partes do planeta.
IHU On-Line - A Encíclica cita trechos das encíclicas de
Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI, acerca da ecologia e de outros
temas, como economia e desigualdades. Como as encíclicas anteriores se
relacionam e dialogam com a Encíclica de Francisco?
Leonardo Boff - Os pronunciamentos dos Papas
anteriores nunca foram ao ponto axial e sistêmico do problema, que é o
nosso modo de habitar a casa comum que nos está trazendo incontáveis
desconfortos a nós e à casa comum. Mas o faz para honrar seus
predecessores. Não pode, entretanto, passar por alto o fato de o Papa
valorizar as contribuições das inúmeras conferências nacionais e
continentais, das mais poderosas, como a dos USA, até a mais singela, como a do Paraguai ou da Patagônia. Aqui se mostra o exercício da colegialidade que o Papa disse querer reanimar.
Diria que o valor desta encíclica não se mede apenas por aquilo que
ela propõe, mas pelo ensinamento dos demais bispos espalhados pelo mundo
inteiro. Isso também constitui uma novidade deste pontificado, em
tantos pontos tão inovador e surpreendente.
IHU On-Line - O próprio Francisco destaca que o tratamento do
tema da ecologia não é novidade num papado. No entanto, no que essa
manifestação de Bergoglio se diferencia dos papas anteriores?
Leonardo Boff - Os Papas anteriores abordavam
ecologia pontualmente. Agora é de forma sistemática dentro de uma nova e
corajosa abordagem sistêmica no quadro do novo paradigma, construindo,
já há quase um século, a partir das ciências da vida e da Terra, da nova
cosmologia, da fisica quântica e da nova biologia. Nisso o Papa é
absolutamente inovador.
IHU On-Line - Alguns teólogos têm chamado atenção para o fato
de que a Encíclica não faz referência às grandes religiões orientais,
como hinduísmo, budismo, taoísmo. Na sua avaliação, quais as razões de
essa questão não ter sido contemplada na Encíclica de Francisco?
Leonardo Boff - Considero um vazio da encíclica,
pois ela se dirige para toda a humanidade e teria feito bem se tivesse
honrado a sabedoria oriental, tão rica de perspectivas ecológicas. Não
sei as razões. Mas creio que a reservou para quando retomar o tema no
contexto do diálogo inter-religioso.
IHU On-Line - Há uma intenção especial no fato de o Papa ter
publicado a Encíclica seis meses antes da realização da COP-21, em
Paris? De que forma o documento recoloca na agenda pública o debate
sobre o meio ambiente?
Leonardo Boff - A encíclica é providencial,
especialmente quanto ao método sistêmico e no arco de uma ecologia
integral que sempre esteve ausente nestes encontros oficiais, em alguns
dos quais eu mesmo participei. Não se faz a mínima ideia de uma visão
global, como se ainda não tivessem descoberto a Terra, apenas pedaços
dela, onde radicam os interesses nacionais que sempre predominam sobre
os universais. Se não tomarem a sério uma visão de uma ecologia integral,
os encontros redundarão em fracasso como até agora tem acontecido.
Todos estão num voo cego e não sabem para onde vão. Apenas querem
preservar seus interesses nacionais e esquecem os globais. Vale a frase
humorística de Chesterton: estamos todos no mesmo barco e todos estamos enjoados. Todos não. Seguramente não o Papa Francisco.
IHU On-Line - De que forma acredita que o texto do documento
apostólico deva ecoar para além dos muros do Vaticano, na Igreja em todo
o mundo? E fora da Igreja, quais devem ser os impactos?
Leonardo Boff - Suponho que os impactos serão
enormes pela amplitude da abordagem e especialmente pela perspectiva
nova (para a maioria) de uma ecologia integral, válida
para todo o planeta, para seus habitantes humanos ou não. Desta vez não
dispomos de uma arca de Noé, que comportava somente alguns. Desta vez
devemos salvar-nos todos.
IHU On-Line - Que tipo de sugestões o senhor enviou ao Papa
durante o período em que ele escrevia a encíclica? Quais dessas
contribuições foram incorporadas ao texto?
Leonardo Boff - Esta pergunta me causa
constrangimento. O Papa possui seu corpo de peritos e consulta muita
gente. A encíclica é dele e não dos colaboradores. No que se refere à
petição do Papa Francisco, enviei, através do
embaixador argentino no Vaticano - senão há o risco de que não chegue -,
vários materiais e livros, pois já há 30 anos trabalho intensamente
esta questão ecológica de forma integral (fiz um dvd para uso popular
sobre as quatro ecologias, onde a última era a ecologia integral) e
aprofundei especialmente o tema do cuidado, da casa comum, da ética e da
espiritualidade. Se o Papa fez uso ou não desses materiais não cabe a
mim dizer. Fiz a minha parte como um simples servo inútil, como diz o
evangelho.
(Por Patricia Fachin e João Vitor Santos)
Fonte Instituto Humanitas Unisinos
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