Espera-se coragem, responsabilidade política e grandeza moral de toda a esquerda, espera-se que todos digam já, agora, “não passarão”. Eles podem bater a nossa carteira que está no bolso. Mas não permitamos que batam a nossa carteira espiritual: a única luta que se perde é a luta que se abandona.
Do Viomundo
Por Conceição Lemes e Patrick Mariano
Os seis primeiros meses de 2015 foram marcados pelo rebaixamento de direitos conquistados duramente durante décadas.
Por exemplo, os projetos da terceirização da atividade-fim e de
redução da maioridade penal aprovados na Câmara, por enquanto. O ajuste
fiscal que diminuiu direitos trabalhistas. Isso sem falar no projeto do
senador José Serra (PSDB-SP), que implica abrir a operação do pré-sal,
hoje exclusiva da Petrobras, às petroleiras estrangeiras.
Somado a isso, há uma escalada autoritária em matéria penal.
A Constituição da República está sendo desrespeitada na caradura por quem deveria zelar pela sua aplicação responsável.
Vemos isso nas ações do juiz Sérgio Moro e dos procuradores atuando
na Operação Lava Jato. Também na Câmara dos Deputados, onde o seu
presidente, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), está passando por cima de cláusulas
pétreas da Carta Magna brasileira.
Ao mesmo tempo, testemunhamos o acovardamento do PT, que por vezes
adota posturas dúbias, quando não em franca oposição às suas bandeiras
históricas, completamente divergentes das ações do governo.
Conversamos sobre constatações com o jurista Marcio Sotelo
Felippe, ex-procurador geral do Estado de São Paulo e membro da Comissão
da Verdade da Ordem dos Advogados do Brasil Federal — a OAB-Nacional.
Viomundo — Conquistas históricas e o Estado Democrático de Direito estão sendo mesmo desmantelados?
Marcio Sotelo – O Estado Democrático de Direito é uma construção em curso.
Temos uma Constituição que diz que a dignidade humana é fundamento da
República. Porém, um olhar para o sistema prisional, que amontoa seres
humanos em condições abjetas, por exemplo, nos leva a concluir que a
eficácia desse princípio muitas vezes se reduz a tinta no papel.
As consequências são tremendas. A violência do Estado gera mais
violência, que gera mais repressão e mais violência do Estado. E, assim,
caímos num círculo vicioso cujo resultado será a barbárie, encoberta
por um manto de normas ineficazes, formais e uma aparência enganosa de
Estado de Direito.
O que estamos assistindo é uma ofensiva de direita para revogar as
poucas garantias fundamentais que temos e o patrimônio público, como na
questão do pré-sal. Direitos trabalhistas estão sob ameaça. O ajuste
fiscal rebaixa as condições de vida dos excluídos.
De fato, a democracia — em seu conceito real, que implica valores, direitos e princípios — está sob ataque.
Figuras vulgares e oportunistas, como Cunha [Eduardo Cunha] e Renan
[Renan Calheiros], são armas desse ataque. Eles têm poder porque
forças sociais lhes dão suporte. Ninguém consegue mais de 300 votos no
Parlamento para emendar a Constituição porque é “esperto”. É a luta
social que explica esse cenário. É preciso colocar as coisas na
perspectiva correta. O que estamos vendo é a velha luta de classes.
Viomundo – Existe algum paralelo ao que estamos assistindo?
Marcio Sotelo – Existe, sim. É a velha luta de
classes, como já dissemos. A ofensiva do grande capital, a escalada da
burguesia predatória, ganhou nova forma com o neoliberalismo. Ela
necessita rebaixar a democracia, cercear liberdades democráticas, que
são fundamentais para a resistência dos debaixo, para acelerar o
processo de acumulação.
O neoliberalismo tem uma tática. Antes de mais nada, precisa destruir
a democracia. Pinochet e Tatcher, cada um a seu modo, mostraram isso.
Tatcher atacou selvagemente o sindicalismo inglês e o imobilizou. As
privatizações na Rússia sob Ieltsin, que entregaram por alguns mil
dólares imenso patrimônio público que valia centenas de milhões de
dólares, somente foram possíveis com um golpe e repressão.
O passado ilumina o futuro. Aqui, certas conquistas sociais e
garantias democráticas são obstáculos à sanha de acumulação. Por isso,
estão sob ataque.
Viomundo – E na história do Brasil?
Marcio Sotelo — Políticas sociais regressivas
sempre existiram. O século XX viu o fascismo. Aqui a ditadura militar
aniquilou direitos fundamentais e garantias trabalhistas O que vemos
agora é uma dominação de tipo novo, preservando aparência democrática,
mas ganhando consciências por meio de conceitos como a superioridade do
mercado, a meritocracia, a ideia de que direitos sociais são um entrave à
circulação de riquezas.
O Chile de Pinochet [Agusto Pinochet] foi o laboratório econômico,
implementando essas medidas sob uma ditadura. A Inglaterra de Tatcher
[Margareth Tatcher], o segundo laboratório, aplicando essa política não
sob uma ditadura, mas sob as velhas formas parlamentares
representativas. Esse é o modelo aplicado aqui, sem ditadura. E
quando golpes são dados, o modelo é o paraguaio: suaves golpes
jurídicos. Nada de novo no front, a não ser a forma de dominação.
Viomundo — Nós estamos assistindo a Constituição da República
ser desrespeitada a todo e a direito. Ao mesmo tempo, vemos a política
dúbia do PT. Suas bandeiras históricas são divergentes das ações do
governo. Qual o efeito simbólico dessa postura?
Marcio Sotelo — A opção, certamente mais cômoda,
para os governos de centro-esquerda que tivemos, foi estabelecer algumas
políticas públicas que deram algum poder de consumo a parcelas da
população que praticamente não o tinham. Só. Deu-se por feliz com isso.
Não mobilizou, não organizou, não conscientizou. Não construiu uma base
social de apoio. Ou seja, ganhar votos, ganhar eleições, ser governo,
mas renunciar a ser poder real. Isso não seria pedir o impossível.
Um simples exemplo: Cristina Kirchner teve a coragem política de
enfrentar a mídia conservadora com a ley de medios. Há um mínimo que se
espera de um governo de esquerda. Algumas pautas progressistas para pelo
menos honrar o nome da rosa: ser esquerda.
No campo dos direitos humanos, o que tivemos? Nenhuma política
pública para enfrentar a chaga das torturas, da violência policial, para
mudar essa realidade brutal da repressão a negros e pobres, para
minimamente humanizar o sistema prisional. Omissão, completa e absoluta.
A triste conclusão é que querem ser governo, mas não poder. As velhas
estruturas de poder ficaram intactas, mas “sob nova gerência”. Mas os
donos do poder preferem ter a própria gerência, o que explica o processo
em curso de derrubada da presidenta, que poderá, sim, ocorrer. O efeito
simbólico disso será que nada pode mudar. Uma derrota estratégica
tremenda para a esquerda.
Viomundo — Na questão da maioridade penal, o governo Dilma
tentou uma aliança com o PSDB do senador José Serra e do governador de
São Paulo, GeraldoAlckmin, em troca do aumento do prazo de internação.
Na sexta-feira, Alckmin deu uma entrevista salientando a
constitucionalidade da proposta de Eduardo Cunha e que ela complementa a
que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Negociar
direitos fundamentais não contribui para confundir o papel histórico da
esquerda que sempre se pauta pela ampliação deles?
Marcio Sotelo — Antes de mais nada, uma palavra
sobre a questão da maioridade penal. Até as paredes das faculdades de
Direito sabem que a imputabilidade diz respeito ao sujeito da conduta,
não ao crime. Não importa que crime foi praticado. Se o sujeito é
inimputável, é inimputável pela ausência de racionalidade ou por
imaturidade da razão.
Se assim é para um crime, assim é para todos. Espanta a indigência
que leva mais de 300 congressistas a votar uma coisa dessas. Nem se
deve dizer que é inconstitucional. Há uma questão prejudicial para
podermos entrar no campo da constitucionalidade: o nonsense.
Se é nonsense, nem ingressa na esfera lógica da discussão jurídica.
Não podemos permitir que a direita transforme nossa existência naquela
frase do Macbeth: uma história tonta contada por um idiota.
Viomundo – O que achou dessa negociação do governo Dilma com o PSDB na questão dos menores?
Marcio Sotelo — Se Dilma renunciou a ser poder para
ser apenas governo, vale o que vier. Vale tudo. Nessa altura, intimidada
pela reação e querendo salvar seu mandato, nada deve nos surpreender.
Mas poderia ela refletir sobre esta questão: “de que adianta ganhar o
mundo inteiro e perder a sua alma?”
Viomundo — Na ausência de uma força política de esquerda
capaz de hegemonizar a reação, como o senhor avalia o papel do PT diante
desse quadro histórico. Como reagir ao avanço da escalada autoritária?
Como despertar o governo Dilma e o Partido dos Trabalhadores dessa
letargia e conservadorismo preocupantes?
Marcio Sotelo — O PT não é só Dilma e não é só o
ambíguo Lula. Há admiráveis combatentes do povo em suas fileiras ou
entre seus apoiadores. Há gente com passado respeitável de lutas
populares que precisa reagir. Mas essa reação não pode se limitar à luta
para salvar o mandato de Dilma, sem ir a fundo na crítica às escolhas,
ações e omissões do PT em seus sucessivos mandatos. Não pode se limitar à
estreiteza partidária.
É preciso construir já uma força política capaz de hegemonizar a
reação contra a escalada fascista ou direitista. Com outros partidos de
esquerda, com segmentos democráticos, extraparlamentares, com o povo
(não a classe média filofascista) nas ruas. Pode-se agora salvar a luta
democrática nesta geração ou deixar uma herança maldita para a geração
seguinte e um atraso de décadas, que provocará mais sofrimento social,
mais miséria, mais violência.
Espera-se coragem, responsabilidade política e grandeza moral de toda
a esquerda, espera-se que todos digam já, agora, “não passarão”. Eles
podem bater a nossa carteira que está no bolso. Mas não permitamos que
batam a nossa carteira espiritual: a única luta que se perde é a luta
que se abandona.
Fonte Viomundo
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