A estética fascista alterou-se de seu modelo típico do caso italiano e alemão e hoje encontra forma de expressão em outro nível, em escala global, essencialmente conectado com a cultura capitalista globalizada estimulada pelo financismo internacional.
Professor universitário
Doutor em filosofia do direito
Doutor em filosofia do direito
Os sistemas políticos formalmente idênticos não são iguais, e nos
diversos momentos históricos eles encontram formas de aparição que
preservam os seus elementos essenciais, e tratam de encontrar elementos
específicos eficientes para mascarar a sua pior face. Assim a audiência
se distrai e as velhas formas de dominação e subjugação do humano
expandem seus espaços, uma e outra vez mais, para afirmar a sua
condição. Para além dos modelos clássicos do fascismo, o italiano e o
alemão, devemos ter em perspectiva a possibilidade de novas formulações,
e o que é ainda menos perceptível para tantos é a atualidade da leitura
de Walter Laqueur de que “The historical record shows that fascism
(like terrorism) could succeed only in a liberal democratic system”.
O fascismo do primeiro quarto do século XIX era
político-étnico-redentor, enquanto o de hoje, eminentemente
econômico-relativista, mas o seu processo de radicalização o conduz ao
indiferentismo relativamente ao indivíduo. O programa fascista
mussoliano publicado em 6 de junho de 1919 defendia a guerra
revolucionária, e isto hoje, a retórica fascista repele no plano das
relações internas de cada Estado mas, paradoxalmente, não apenas permite
como estimula o massacre humano sob circunstâncias de desarme e a
insistência no valor da paz social. Esta lógica está permeada pela
eliminação da percepção do trabalhador enquanto classe, posicionados sob
o signo do discurso único e sem margem para o dissenso. O fascismo é,
portanto, como diz Roger Griffin, um “[…] antimovimiento: antimarxista,
antiliberal, anticultura, antiprogreso, y, por tanto, antimoderno”.
O fascismo de Benito Mussolini não alcançou o poder sem que tivesse
um forte e decidido apoio das elites da época, mas que tampouco teria
sido suficiente não fosse também contar com o apoio ou a mera omissão de
importantes segmentos da população como diz Robert Paxton, e é mesmo
apenas sob tal condição que o fascismo pode prosperar. Sobre as
condições para a prosperidade do fascismo Paxton é claro: “Os acessos do
fascismo no poder exigiam também uma ampla cumplicidade entre os
membros do establishment: magistrados, policiais, oficiais do exército,
homens de negócios”. Definitivamente, o triunfo do fascismo revelou quão
indispensável foi a aquiescência ou a omissão de um conjunto de homens e
mulheres que, logo, pagam com o seu próprio sangue pela escolha feita.
Nestes cenários a omissão é tão responsável pelo recrudescimento das
forças do fascismo quanto aquelas que positivamente se empenham em seu
favor. Neste sentido Paxton reforça que as “[…] autoridades religiosas e
civis e a oposição civil não agiram de modo a pôr freio a Hitler […]”, e
esta inércia em face do avanço da barbárie em suas diversas formas de
aparição histórica terminam por comprometer extensamente as vias do
futuro. O tempo histórico para frear o mal precisa ser antecipado
razoavelmente em conexão com a disposição firme para o agir, sobretudo
quando a curva se aproxima perigosamente e o tempo da frenagem demanda
rapidez de reflexos. Isto não foi o que ocorreu na Alemanha, e quando já
corria o ano de 1938 círculos de homens bárbaros, em face da acomodação
geral, foram se sentindo progressivamente mais à vontade para planejar e
executar o genocídio sem precedentes, mesmo nas circunstâncias sociais e
políticas de um país que pode ser reconhecido como sofisticado e
civilizado. O grave equívoco em que incorrem diferentes povos é o de
supor que qualquer nível civilizatório não é suscetível de regressão, de
que os estágios civilizatórios podem ser concebidos como estabilizados,
hipostasiados, quando, em realidade, a manutenção e sofisticação dos
níveis civilizatórios dos povos requer constante atenção e intervenção
por parte dos povos, sem o qual, simplesmente, não será mantido e se
perderá.
O capital enfronhou-se intimamente com o processo de consolidação do
fascismo na Europa da primeira metade do século XX. À raiz deste
processo Michael Mann comenta que os industriais italianos teriam
entrado em pânico quando os trabalhadores demonstraram sua força
ocupando fábricas em 1920, o que prenunciava um cenário de capacidade de
demandar melhorias econômicas em seu favor. O fascismo se constituiu
historicamente como resposta direta ao avanço da cultura política
socialista. Quando o capital sentiu a correlação de forças ligeiramente
em seu desfavor, malgrado o aparato de Estado sempre operante em seu
apoio, então, saltou à cena a possibilidade de financiar grupos capazes
de empregar a violência, instante em que o fascismo apresentou-se como
alternativa. A ameaça ao sistema, à propriedade ou ao nível de
lucratividade sempre foi estímulo suficiente para que o capital reagisse
unido aos atores políticos capazes de empreender quaisquer variantes da
violência, da bruta à simbólica, sob o suposto fim de garantir a ordem e
a segurança, quando o que virtualmente está na mira é a instituição de
uma harmonia autoritária.
Ontem no caso italiano foi a pressa pelo armamentismo e implementação
de políticas modernizadoras perpassadas, enquanto no caso alemão era
evidente o viés redentor-racial operando em sintonia com a implementação
da barbárie. O fascismo contemporâneo também tem pressa, mas de outro
tipo, a saber, por implementar políticas econômicas financistas, mas que
igualmente desconsideram de forma absoluta homens e mulheres e, nesta
medida, patrocinam o sofrimento humano. Contudo, este movimento não pode
ser realizado a seco, senão que requer um importante movimento de
obscurecimento das reais tensões que a modernidade e a técnica trazem
consigo. É preciso disseminar e persuadir a sociedade de que inexistem
classes e, portanto, a possibilidade de luta entre elas já é elemento da
história. Assim, já não subsistiriam ideologias conflitantes, mas tão
somente uma única, alimentada pelo financismo, que segue sua caminhada
de braços dados com as práticas fascistas, cuja preocupação central é a
produção e concentração da riqueza.
Hoje a lama verborrágica corrosiva do fascismo se espalha e surte
efeitos sem que a sua carga explosiva seja perceptível a tantos incautos
que em face das contradições e das perversidades do parlamento terminam
por embarcar alegremente na virulenta retórica que destila o seu
corrosivo veneno. É confirmada a hipótese de Laqueur de que o fascismo
age como ácido crítico do parlamento, um lugar inservível em que os
debates são inconclusivos e os políticos deixam transparecer não apenas a
sua fraqueza como as da própria instituição. É justamente ao
neutralizar a política e as suas formas que o fascismo galvaniza o apoio
das massas e se fortalece, o que não poderia ocorrer sem a prévia
destruição dos meios de organização do trabalhador e do mundo do
trabalho e as suas formas de defesa.
Mas se deparamos com um mundo real em que homens e mulheres são
destituídos de sua dignidade, uma vez mais, se torna relevante e atual a
pergunta de Laqueur sobre o motivo que leva as massas a sentir atração
pelo fascismo. Uma das forças de atração popular está no propósito
supostamente purificador que o fascismo conteria, e talvez ilustrativo
desta capacidade sedutora seja a justificação de um dos muitos
indivíduos que buscaram a adesão às tropas de assalto
nacional-socialistas (SA/Sturm Abteilung): “Entrei para a SA para apoiar
meu líder e a Alemanha na batalha contra o comunismo e o SPD, traidores
do povo e da pátria, e para apoiar a erradicação desses parasitas, até o
fim, ainda que custe minha vida”. Estava aberta a trilha para a
radicalização, espaço em que já não seria possível a superveniência de
uma organização política em que a diversidade pudesse encontrar vez,
espaço ou voz, senão que a cultura do puro ódio patrocinaria a
eliminação dooutro, o comunista, o judeu, os homossexuais, ciganos e
outros tantos grupos.
Malgrado não devamos considerar como universais os motivos que
inspiram o fascismo, isto sim, é necessário considerar o contexto
histórico de cada uma de suas manifestações. Fenômeno complexo, podemos
encontrar uma de suas causas concorrentes nas crises econômicas e em um
profundo desencantamento alimentado à época, facilitador para a simpatia
com a resposta extremamente fácil que o fascismo oferece, a saber,
atalhos resolutivos pautados pela violência, pois como recorda Paxton,
“O fascismo não se baseia de forma explícita num sistema filosófico
complexo, e sim no sentimento popular sobre as raças superiores, a
injustiça de suas condições atuais e seu direito a predominar sobre os
povos inferiores”.
Naquela quadra da história a facilidade da resposta fascista à crise
englobou a crítica ao parlamento, enquanto hoje o fascismo se apresenta
casado a uma versão neoliberal-capitalista, não preservando neste
conceito de neoliberalismo operante a típica via protetora dos direitos
individuais políticos.[
[1] O fascismo contemporâneo se constitui em íntimo diálogo com a
modernização e o mundo da técnica, não raro utilizando a sua
implementação como pretexto para neutralizar políticas públicas típicas
das funções básicas de Estado, revelando neste momento a intersecção
precisa do neoliberalismo com o fascismo. Para um fascista o punho é
sempre a forma de comunicação por antonomásia, e esta é a resposta que
os fascistas que se avolumam no cenário político brasileiro começa a
apresentar tanto para a esquerda-progressista como para os
liberal-conservadores que distraídos andam de braços dados com a
teologia político-jurídica tão útil aos objetivos inquisitoriais. Ter
ciência dos desdobramentos destas circunstâncias nesta encruzilhada
histórica já não basta, pois as consequências da omissão já nos foram
apresentadas. A tarefa prioritária e inarredável destes dias é a ação.