O ex-presidente Lula está preso desde o dia 7 de abril. A elite branca havia digerido mal a eleição desse sindicalista, assim como a de sua sucessora, Dilma Rousseff, presa durante a ditadura militar. Estaria o Brasil revivendo o pior de sua história?
Por Diogo Sardinha, filósofo português,
ex-presidente do Colégio Internacional de Filosofia
Assim
que a ordem para prender Lula da Silva foi dada pelo juiz de primeira
instância, em 5 de abril, milhares de pessoas se dirigiram à sede do
sindicato dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo, cidade industrial
nos arredores de São Paulo, formando uma barreira protetora ao redor do
ex-presidente brasileiro. Em outras cidades, atos de apoio foram
rapidamente organizados, filmados ao vivo e transmitidos pela Internet.
Para
quem se pergunta se Lula é realmente o líder corrupto que os tribunais
condenaram, deve-se notar que, em um país como o Brasil, a justiça,
infelizmente, não tem nada de justiça. Assim como não são iguais entre
si no acesso à saúde, à educação e à moradia, os brasileiros não são
iguais perante a lei. Igualdade é um conceito ausente no país. E as
diferenças de raça, classe, sexo, são profundas demais ainda para
garantir a imparcialidade das instituições. Se isso é verdade de maneira
geral, é ainda mais quando se trata de Lula. Por ser o único
sindicalista eleito e reeleito presidente em eleições livres, ele atrai
todos os tipos de paixões, de grande admiração ao ódio visceral. Agora,
mesmo um dos mais virulentos editorialistas de direita quando se trata
do Partido dos Trabalhadores de Lula, Reinaldo Azevedo, reconhece que o
ex-chefe de Estado é “vítima de um processo de exceção”.
Não
foi apenas sua eleição que o subconsciente da elite branca e masculina
nunca foi capaz de assimilar. Ela não suportou a eleição de uma mulher
para a presidência do país, Dilma Rousseff, presa durante a ditadura,
torturada pelos militares, mulher incorruptível que foi ultrajada, e
cuja queda foi precipitada exatamente por sua intransigência em lidar
com deputados e senadores desonestos. Foi com lágrimas nos olhos que, em
2014, ela apresentou o relatório da Comissão Nacional da Verdade,
esforçando-se para explicitar alguns dos tantos não-ditos e das
violações de direitos cometidos pelo regime militar (1964-1985). Dilma
foi uma das grandes apoiadoras desta comissão. Como Lula, ela tornou-se
alvo da grande mídia, especialmente do conglomerado Globo, que, ao ser
instaurada a ditadura militar, 54 anos atrás, saudou o golpe como a
restauração da ordem e democracia.
O
resultado disso tudo é que o Brasil é um país dilacerado. No mês
passado, Lula, Dilma e o PT saíram em uma caravana pelos três estados do
sul, os menos favoráveis %u20B%u20Ba eles. Aqui e ali, líderes dos
partidos aliados se juntaram a eles em atos públicos. Onde quer que
parassem, uma multidão entusiasmada se reunia. No entanto, à beira da
estrada, alguns manifestantes jogaram ovos e depois pedras contra a
caravana, às vezes sob o olhar complacente da polícia. Alguns se
organizaram em milícias protofascistas e agrediram verbal e fisicamente
os apoiadores de Lula. Em seguida, tiros foram disparados contra o
ônibus em que a imprensa viajava acompanhando a caravana. No mesmo dia
do ataque, Geraldo Alckmin, governador do estado de São Paulo e
candidato derrotado por Lula na eleição presidencial de 2006, reagiu:
"Eles colhem o que plantaram". No dia seguinte, pressionado por seus
correligionários e como "bom democrata", ele retificou: "Todas as formas
de violência devem ser condenadas". Tarde demais. Seu pensamento mais
profundo já havia sido revelado.
Ódio político
Na
Internet, por outro lado, o discurso de ódio não está sujeito a nenhuma
correção ou sanção, como mostra a enorme quantidade de comentários
violentos postados e nunca moderados. Esse discurso também se
materializa em insultos contra artistas, como ocorreu com Chico Buarque.
O notável cantor e compositor, também ex-exilado da ditadura e apoiador
de Lula, disse durante um show em dezembro que moradores do Leblon,
bairro rico do Rio onde mora, às vezes gritam quando ele passa: "Viado,
vai pra Cuba! Vá passear em Paris!”. Nada disso o impediu de se sentar
novamente ao lado de Lula, diante de uma multidão que lotou o Circo
Voador, em sua última reunião de apoio no Rio, no dia 2 de abril.
Ainda
que o ódio político – de classe, de raça, de sexo – não seja o único
motor desta história, faz muitas vítimas. A mais conhecida é, sem
dúvida, a vereadora Marielle Franco, de 38 anos, negra, da favela,
esperança da política popular, executada no mês passado em sua cidade, o
Rio de Janeiro, capital de um estado do Rio controlado, já na época do
assassinato, pelo exército, por decisão do presidente Temer. Sua
execução, cujos responsáveis podem nunca ser identificados, foi a
primeira do gênero, e ganhou repercussão internacional.
Diante
das explosões de ódio, Lula respondeu que seu partido não vai oferecer a
outra face àqueles que os atacarem. O partido deu queixa contra os
agressores já identificados. O ex-presidente também reiterou que o ódio
só leva à destruição. Ele se colocou na posição de um possível
conciliador, como nos anos 2000, e um pouco como Mandela antes dele, na
África do Sul. Mas a hora do apaziguamento ainda não parece ter chegado.
Hoje, no Brasil, é obrigatório escolher um lado.
Os
onze juízes do Supremo Tribunal Federal entenderam bem isso. Na véspera
do julgamento final do caso, o Chefe do Estado-Maior do Exército
tuitou: “O Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os
cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à
paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões
institucionais”. Os militares sentem-se à vontade para tomar posições
públicas em questões políticas ou judiciais, e Temer considerou que a
manifestação demonstra apenas "liberdade de expressão".
Lula
foi preso no sábado, o mesmo local onde, em 1980, agentes da ditadura
militar o capturaram. O país está num impasse ainda mais grave. E se
sabemos como ele poderia sair do impasse com dignidade – com o respeito
das regras da já tão degradada democracia
representativa – ninguém parece ter certeza se essa via ainda está
aberta. Mesmo atrás das grades, a influência de Lula continuará a ser
uma ameaça para essas elites corruptas e terá grande peso nas próximas
eleições. Haveria outra solução trágica, que conhecemos muito bem: o
assassinato de Lula e a instauração de uma ditadura militar que
colocaria "todos em seu devido lugar". Tal fim não é inevitável, mas não
é mais algo impensável. Se a gangue criminosa que está no poder
chegasse a tal extremo, o Brasil seria jogado de volta aos piores
momentos de sua história. E toda a América Latina entraria num longo
inverno dos povos.
Tradução de Clarisse Meireles