Quando um governo ilegítimo e fraco - e nada pode ser mais fraco e inerte que o governo de um presidente meramente decorativo - decide adotar medidas de força, deixam de existir limites para o avanço da crise
Carta Maior
Por Eric Nepomuceno
Em quatro dias de tensão máxima, entre terça e sexta-feira (de 22 a 25/5), Michel Temer conseguiu algo insólito: deixou de ser um presidente ilegítimo para assumir definitivamente o rol de presidente decorativo. Ou, como disse alguém, um ex-presidente em exercício.
Até
os seus capangas no Congresso o atropelaram de forma impressionante.
Supostos aliados o criticaram sem cerimônia ou respeito. Num primeiro
momento, assumiram o mando numa espécie de parlamentarismo de última
hora, e tentaram diminuir para sempre sua figura, adotando medidas de
uma torpeza ímpar para solucionar a crise surgida a partir da greve dos
caminhoneiros.
Outra
façanha de Temer, que fez que seu isolamento alcançar níveis olímpicos,
foi aplicar com talento único sua absurda capacidade de ridículo. Na
última quinta-feira (24/5), enquanto a situação chegava à beira do
abismo, o presidente estava no interior do Rio de Janeiro, numa
cerimônia de expressão nula, para prestigiar a entrega de automóveis aos
conselhos tutelares de menores. Sem pestanejar, afirmou a uma plateia
atônita que aquele era “o acontecimento mais relevante” da jornada.
Naquela
altura, em Brasília, ocorriam coisas que, para sua limitadíssima visão
da realidade, eram menos importantes. Por exemplo, uma reunião de vários
de seus ministros com os principais dirigentes dos sindicatos patronais
de transportes, que atuavam pelas costas dos motoristas autônomos e que
representam somente um terço do total de caminhoneiros existentes no
país. Tentaram (e conseguiram) fechar um acordo, que, no fim das contas,
não foi suficiente para acabar com a paralisação das estradas.
Enquanto
isso, o aeroporto da capital brasileira informava que só permitiria o
pouso de aeronaves com combustível suficiente para partir sem precisar
se abastecer no local. Em todo o país se registravam imagens de um caos
que se tornava cada vez maior. No Rio, a circulação de ônibus caiu pela
metade. Em Recife, capital de Pernambuco, formaram-se filas enormes nos
postos, que se estendiam por até dez quadras. Há bloqueios nas estradas
de 25 estados, num total de mais de 550 cortes realizados por
caminhoneiros autônomos. Nas gôndolas e prateleiras dos supermercados
faltam verduras, legumes, carne e leite, e quando há, os preços chegam a
ser até cinco vezes mais caros que na semana passada.
Contudo,
para Michel Temer nada disso é mais importante que a solenidade de
entrega de uns 600 automóveis, que na verdade eram a metade do que o seu
desgoverno havia prometido aos transportadores.
A
decisão de convocar as Forças de Segurança – leia-se, basicamente, o
Exército – para desmobilizar os caminhoneiros parados em todo o país
tampouco foi decisão sua: partiu do general Sergio Etchegoyen, um duro
entre os mais duros, que comanda o Gabinete de Segurança Institucional,
órgão que Dilma Rousseff havia extinto e que Temer ressuscitou.
Outro
general, Joaquim Luna – o primeiro militar a se sentar na cadeira de
ministro da Defesa desde que a carteira foi criada por Fernando Henrique
Cardoso, há 20 anos –, assegurou que as Forças de Segurança atuariam
“com energia”.
Sempre
caminhando no rumo de expandir a crise ao máximo, Temer assinou, na
tarde de sexta (25/5), um texto que foi entregue aos uniformados: o
Decreto de Garantia da Lei e da Ordem, que tem duas funções: a primeira é
liberar o Exército para impedir “atos que atentem contra a ordem
pública”. Que tipo de ato? Ninguém sabe, exceto os casos óbvios de
atirar pedras a soldados. A segunda é assegurar, com um dispositivo
legal, que tudo o que se fizer para cumprir a missão até o dia 4 de
junho (quando expira a validez do decreto). Por “tudo o que se fizer”
entende-se: tudo o que a tropa fizer contra a população.
Quando
um governo ilegítimo e fraco – e nada pode ser mais fraco e inerte que o
governo de um presidente meramente decorativo – decide adotar medidas
de força, deixam de existir limites para o avanço da crise.
A
capacidade extraordinária de Michel Temer e seus bucaneiros de
impulsar, e em velocidade recorde, o desmonte das políticas dos últimos
30 anos – inclusive anteriores ao governo de Lula da Silva, embora
consolidadas ampla e infinitamente por ele – foi o que provocou o caos
que estamos vivendo.
Entregar
um patrimônio nacional como os campos dos Pré-Sal, outrora nas mãos da
estatal Petrobras, diretamente às empresas estrangeiras, teve
consequências alucinantes.
Ao
longo dos oito anos de Lula da Silva, o preço dos combustíveis teve
oito aumentos. Nos dois anos de Temer, já são 229. Isso mesmo: 229.
Por
que Lula, e logo Dilma, trabalharam para conter esse preço? Para não
pressionar a inflação, e para incentivar o crescimento da atividade
econômica. Para que Temer e quadrilha permitiram uma série absurda de
aumentos dos preços? Para atender aos interesses dos seus patrões
nacionais e globais.
Ainda
na noite de sexta-feira (25/5), o pegajoso ministro da Segurança
Pública – um ex-militante de esquerda, que, como costuma ocorrer com
esse tipo de sujeito, não só se debandou para a direita como inclusive
para aquela mais agressiva e reacionária – dizia solenemente que quase
metade dos cortes de estrada já haviam desaparecido.
Entretanto, não desapareceu o risco de que os generais se encantem com a possibilidade de seguir com a série de intervenções.