terça-feira, 17 de setembro de 2019

UMA CONSPIRAÇÃO ENTRE JUDICIÁRIO E MINISTÉRIO PÚBLICO PARA DESTRUIR A DEMOCRACIA


Exclusivo, artigo de Luís Felipe Miguel em Relações Obscenas: É com o nome de ‘Conspiração Lava Jato’ que operação passará à história; leia íntegra 





O livro Relações Obscenas — As revelações do The Intercept/BR, da editora Tirant Lo Blanch, está sendo lançado em todo o Brasil.

A estreia ocorreu em Curitiba (PR), em 10 de setembro.

Nesta terça-feira, 17/09, acontece em Belo Horizonte, na Faculdade de Direito da UFMG, às 18h30 (veja ao final a lista dos lançamentos confirmados).

No dia 1º de outubro, será em São Paulo, durante o  debate “A Mídia e as Relações Obscenas da Lava-Jato”, promovido pelo  Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé.

O advogado Wilson Ramos Filho, o Xixo, a jornalista Maria Inês Nassif e o linguista Gustavo Conde dividirão a mesa. O evento começa às 19h.

Antes que alguém pergunte, Maria Inês antecipa: não haverá um lançamento oficial.

“Optamos por lançar o livro no maior número de cidades. A intenção é aproveitarmos todos esses eventos para debater, em todo o país, a fraude judicial que é a Lava Jato, comprovada pela série de reportagens do Intercept Brasil — a VazaJato”, observa.

Wilson Ramos (advogado trabalhista), Maria Inês Nassif (jornalista), Hugo Cavalcanti Melo Filho (juiz do trabalho) e Miriam Gonçalves são os organizadores do livro.

A obra de 431 páginas, com prefácio do jornalista Fernando Morais, é dividida em cinco partes escritas por mais de 60 autores.

Entre eles, o cientista político Luís Felipe Miguel, que assina o artigo Conspiração Lava Jato, que o Viomundo reproduz com exclusividade.


CONSPIRAÇÃO LAVA JATO

Luis Felipe Miguel*

Para quem acompanha a política brasileira dos últimos anos, os documentos revelados por The Intercept Brasil têm mais sabor de confirmação do que de revelação.

Restavam poucas dúvidas sobre a motivação política da Lava Jato ou sobre o comportamento anti-ético do juiz Sergio Moro.

Vendida pela mídia e pela direita em geral como a maior operação de combate à corrupção da história, a Lava Jato é, ela própria, profundamente corrupta.

Seu objetivo central nunca foi combater desvios, mas sim retirar o Partido dos Trabalhadores do poder, pelos meios que fossem necessários, interrompendo suas tímidas políticas sociais compensatórias.

Agora, essa conclusão não é mais uma mera especulação, ainda que sustentada em evidências. Está comprovada.

A Lava Jato não foi capaz de garantir a eleição de Aécio Neves em 2014, mas permitiu a deflagração do golpe de 2016, abriu as portas para a criminalização do PT e da esquerda, colocou Lula na prisão e fez do amigo de milicianos Jair Bolsonaro o novo presidente da República.

Seu saldo líquido é o recuo das instituições democráticas e do império da lei, a obsolescência da Constituição de 1988, a degradação dos três poderes, a maior vulnerabilidade da república a grupos criminosos, a retirada de direitos, a perda da soberania nacional e o aumento da vulnerabilidade social.

O nome com que a operação passará à história, não resta mais dúvida, é “Conspiração Lava Jato”.

Os documentos que estão sendo publicados indicam com clareza que Moro, os desembargadores do TRF-4 e os procuradores conspiraram no sentido preciso da palavra – para prender Lula e para influenciar resultados eleitorais.

Para o campo democrático, as novas informações redimensionam a campanha pela libertação de Lula.

A vinculação da corrupção do Judiciário com os demais retrocessos que ocorreram no país tornou-se ainda mais gritante. E a ilegitimidade da eleição de 2018 também não tem mais como ser escondida.

Entendido como bandeira que sintetiza a denúncia do ataque às instituições democráticas, o “Lula livre” deve representar não só a defesa da liberdade do ex-presidente e de todos os outros presos políticos, como também a oposição ao golpe e às políticas que ele implementou – e, enfim, a exigência de anulação do pleito do ano passado.

Para a extrema-direita, pouco muda. O cinismo, que ela se habituou a praticar no debate público, já está a pleno vapor.

Nas mídias sociais, robôs e robotizados reagiram às reportagens do The Intercept Brasil com falsificações primárias que visam sobretudo desmerecer o jornalista Glenn Greenwald e seu marido, o deputado David Miranda – tão primárias que fica claro que a única motivação por trás do auto-intitulado “Pavão Misterioso” é alimentar a militância bolsonarista com factoides que afastem o risco de que ela se confronte com a realidade.

Outra reação comum é a repetição de frases como “Lula tá preso, babaca”.

No contexto, a frase é uma confissão de culpa e revela o universo mental deste grupo: a política é um vale-tudo e, se Moro e Dallagnol desrespeitaram as regras básicas da ética e da lei para prejudicar seus adversários, ainda mais “heróis” eles são.

Quem ficou em maus lençóis mesmo foi o amplo setor do lavajatismo que se quer “civilizado” – aqueles que não desejavam se confundir com Bolsonaro, que não queriam se comprometer com o desmonte da democracia brasileira, mas ficavam satisfeitos com a criminalização do petismo e incorporaram a versão do “combate sem tréguas à corrupção” como justificativa.

É um amplo grupo, que inclui parte da cúpula do Judiciário e parte da grande imprensa; políticos conservadores que se projetam como respeitáveis, como Fernando Henrique Cardoso e Marina Silva; e também o udenismo de ultraesquerda.

Para estes, chegou a hora da verdade. Ou mandavam publicamente os escrúpulos às favas ou teriam que romper sua conivência com a conspiração.

No início relutantes, os meios de comunicação corporativos acabaram tendo que noticiar o vazamento, mesmo que de forma tímida e enviesada.

Alguns deles firmaram parcerias com The Intercept Brasil. A tentativa de minimizar o episódio, emblematizada pela reação inicial de Fernando Henrique Cardoso (”tempestade em copo d’água”), logo mostrou fôlego curto; o próprio ex-presidente foi envolvido nos diálogos e teve que passar à defensiva.

A natureza dos crimes cometidos por Moro, Dallagnol e seus cúmplices faz com que eles, ainda que não pareçam tão espetaculosos para os desavisados, sejam imediatamente identificados como gravíssimos nos meios jurídicos.

É aí que os “isentos” se apresentam, para sugerir um caminho. Trata-se de afastar Moro, mas manter de pé suas decisões.

Como escreveu um colunista da Folha de S. Paulo, Hélio Schwartsman, embora esteja demonstrado que “o ex-juiz e os procuradores estabeleceram uma relação de proximidade absolutamente inadequada, que dá substrato à suspeita, desde sempre levantada pela defesa do ex-presidente, de que Moro não atuava com imparcialidade”, os julgamentos não devem ser anulados, já que “não há sugestão de que Moro e os procuradores tenham interferido na realidade fática das provas”.

Se o raciocínio tivesse lógica, poderíamos abolir a magistratura: a “realidade fática das provas”, por si só, condenaria ou absolveria. Mas, na verdade, a “realidade fática das provas” exige interpretação; por isso é que se cobra imparcialidade do juiz. Quando esse juiz colabora com um dos lados, não há como salvar o processo.

Outro colunista do mesmo jornal, Pablo Ortellado, advertiu para o “falso dilema”.

Diz ele: “No jogo amarrado da polarização, o público é levado a escolher entre o atropelo do devido processo legal e a impunidade pura e simples“. Em vez disso, seria “preciso articular uma posição independente na qual se reconheça a gravidade do que foi revelado pela Operação Lava Jato, a atribuição da responsabilidade política de quem governava durante o período e a necessidade de que a investigação e o julgamento dos ilícitos aconteçam dentro dos parâmetros da lei e da Constituição”.

São palavras bonitas, mas carentes de sentido. O que foi revelado na Lava Jato é indissociável de seus métodos. Se o julgamento estava enviesado, se havia predisposição para condenar mesmo com evidências frágeis e impermeabilidade aos argumentos da defesa, não há caminho possível exceto a anulação do processo.

No texto, o autor ridicularizou o fato de que a esquerda apresenta os diálogos publicados no Intercept Brasil como provas cabais “da parcialidade da Lava Jato, do caráter político do julgamento do ex-presidente Lula e de que o impeachment de Dilma Rousseff foi efetivamente um golpe parlamentar”.

Ele pode falar à vontade em “disputa de narrativas”, mas não muda o fato de que, sim, os diálogos provam tudo isso.

No Twitter, Ciro Gomes escreveu:

“Antes que as paixões contra ou a favor do ex-presidente Lula – o mais notável atingido pela Lava Jato – venham aqui defender cegamente seus interesses, lembrem-se de Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima, Palocci… todos esses poderão se beneficiar com o que está acontecendo”.

Portanto, a manutenção de “homens maus” presos compensaria a violação de todas as regras do correto processo judiciário.

Falando para um público diferente, ele admite que a prisão de Lula pode ser injusta, mas na essência sua postura não difere do amoralismo da extrema-direita punitivista.

Os diálogos publicados até agora mostraram com clareza uma conspiração entre Judiciário e Ministério Público para condenar Lula.

Caso mostrem trama igual contra outras pessoas, as condenações precisam também ser revogadas.

Ao contrário do que Ciro insinua, a campanha “Lula livre” não se baseia numa suposta imunidade do ex-presidente, mas na defesa do direito de defesa e das regras do justo processo penal.

Também a ex-ministra Marina Silva se manifestou. Uma longa nota, com ênfase em evitar que “possíveis erros sirvam de pretexto para desconstruir a luta anticorrupção”, mostra que a opção é também afastar ou até punir Moro e Dallagnol, mas manter Lula preso. A “luta anticorrupção” é alçada à posição de valor máximo; em nome dela, todos os direitos podem ser atropelados.

O caminho sugerido é esse: punir os punitivistas para manter o punitivismo. Isso não serve para o campo democrático.

É preciso restaurar a vigência dos direitos e das garantias. É preciso anular as condenações tendenciosas e injustas. E é preciso desmitificar o discurso do “combate à corrupção”, que convenientemente esquece o caráter estrutural da relação entre capital e Estado e serve apenas para destruir a democracia.

Esse é outro ponto central. Quando a Lava Jato eclodiu, muita gente a apoiou de boa fé. Os vieses da operação eram evidentes a qualquer olhar um pouco atento, mas era possível admitir o discurso de que, cedo ou tarde, a “limpeza” iria alcançar todos.

Desde o começo, os métodos eram, digamos, heterodoxos, mas também era fácil aceitar que um tanto a mais de “pressão” era o preço a pagar para romper o ciclo de impunidade.

Mesmo à esquerda, colava a ideia de que a corrupção – sempre vista como um problema do caráter de alguns indivíduos, não um elemento sistêmico da relação entre capital e política – era o maior problema nacional.

Poucos se preocupavam em analisar as afinidades eletivas entre a Lava Jato e o discurso antipolítico, que tornaram a operação instrumental seja para o desmonte das empresas estatais, seja para o avanço da extrema-direita. Era grande o custo de ser contra a Lava Jato: era como ser a favor da corrupção.

Políticos à esquerda saudavam com entusiasmo a operação. Alguns de fato podiam acreditar na retórica da “limpeza geral” do sistema político. Outros antecipavam a derrocada do PT e sonhavam com herdar o espólio – o nome de Luciana Genro é apenas o primeiro da lista.

Mas mesmo petistas sentiam que o custo de criticar os heróis do momento era alto demais e adotavam um discurso público conciliador. Não foram poucas as declarações de Fernando Haddad, já como candidato em 2018, garantindo apoio à Lava Jato e mesmo elogiando o juiz de primeira instância: “Em geral, Sergio Moro fez um bom trabalho”.

Por convicção, por ingenuidade ou por oportunismo, muitos abriram as portas para o discurso punitivista e, assim, para a derrocada do Estado de direito e da democracia.

Mas, depois das reportagens de The Intercept Brasil, só os cínicos são capazes de defender a Lava Jato.

O mais ativo porta-voz do autoritarismo iliberal no STF, o ministro Luiz Roberto Barroso deu uma declaração pública de transparente clareza:

“A corrupção existiu e precisa continuar a ser enfrentada, como vinha sendo. De modo que tenho dificuldade em entender a euforia que tomou os corruptos e seus parceiros [com as revelações do conluio entre juiz e procuradores]”.

O que Barroso está dizendo é que o respeito às regras do processo penal, ao direito de defesa e à imparcialidade judiciária não é apenas uma bobagem, mas uma forma de leniência com a corrupção.

Trata-se de punir os “maus” e pronto – e, na ausência do julgamento correto, sabemos quem são os “maus” graças à opinião publicada…

Pouco separa Barroso dos brados de “deporta Greenwald” que ecoam nas redes sociais, vindos da extrema-direita em fúria. Que esta mentalidade tenha assento na máxima corte brasileira, aquela que deveria proteger a Constituição, é um sintoma grave da situação que atravessamos.

A pusilanimidade do campo democrático na defesa dos princípios que o caracterizam, sua capitulação diante do discurso fácil e interessado da mídia e sua falta de disposição em fazer a disputa das narrativas são corresponsáveis pelo peso que o punitivismo autoritário ganhou no Brasil.

Mas não há conciliação possível: é uma visão que aponta inequivocamente para o fascismo.

*Luís Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor titular do Ins- tituto de Ciência Política da Universidade de Brasilia (UnB) e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê).