"Este belo artigo de Frei Betto sobre Ernesto Cardenal apresenta o
que pode ser um cristão lididamente atual e comprometido com um mundo a
transformar até que o amor impere de vez. Foi monge da linha de Thomas
Merton, místico e genial poeta. As circunstâncias fizeram-no
revolucionário contra a feroz ditadura de Somoza da Nicaragua. E soube
unir mística e luta, oração e compromisso político. Sofreu
incompreensões por parte das autoridades romanas até ser suspenso a
divinis. O Papa Francisco entendeu o equívoco e logo lhe restituíu o uso
de ordens. Vivia no meio dos pobres e pescadores. Com eles fazia
círculos bíblicos, comparando página da vida com página da Bíblia. E dai
resultava um novo cristão com nova consciência. Vale a pena ler esse
belo artigo que honra o autor e honra o homenageado". (Leonardo Boff)
leonardoBOFF.com
Por Frei Betto
Em 1987, Afonso Borges promoveu, como primeira atividade do Projeto
Sempre Um Papo, de Belo Horizonte, o lançamento do meu romance O dia de
Ângelo, no restaurante La Taberna, em Belo Horizonte. Contei a Afonso
que, ano seguinte, Ernesto Cardenal iria a Minas. Afonso o convidou para
proferir conferência no Cabaré Mineiro, restaurante que, de cabaré, só
tinha o nome, e passara a receber o Sempre Um Papo. Cardenal, ex-monge
trapista, reagiu: “Mas num cabaré?…”
Encontrei Cardenal, pela primeira vez, em 1978, em sua trincheira de
guerrilheiro Sandinista: os fundos de uma das seis livrarias que
circundavam a Universidade Nacional da Costa Rica. Já o admirava por sua
obra. Seu En Cuba, relato de viagem à ilha em 1970, havia passado de
cela em cela em meus tempos de cárcere em São Paulo, entre 1969 e 1973.
Filho de uma das famílias mais ricas da Nicarágua, Cardenal preferiu
não seguir o caminho de seu irmão Fernando, que ingressou na Ordem dos
jesuítas. Em 1957, o jovem poeta tornou-se monge trapista nos EUA.
Durante dois anos, teve como mestre de noviço o místico e escritor
Thomas Merton. Ao deixar a vida monástica, estudou teologia em Medellín
e, em 1965, foi ordenado sacerdote em Manágua. Identificado com a
Teologia da Libertação, passou a viver na paradisíaca Ilha de
Solentiname, no lago ao sul da Nicarágua, onde partilhava a vida
comunitária de pescadores e camponeses.
Ernesto nada tinha da figura estereotipada de um revolucionário.
Baixa estatura, ombros largos e um jeito tímido de se aproximar das
pessoas, olhos vivos por trás das lentes brancas acima do sorriso suave,
dir-se-ia tratar-se de um monge ingênuo e despreocupado não fosse a
boina azul, semelhante à do Che, derramando cachos prateados sobre as
orelhas e a nuca. Sua jaqueta verde, sobre a bata branca, assemelhava-se
à dos oficiais cubanos.
Sua função na Frente Sandinista era viajar pelo mundo a fim de
denunciar os crimes de Somoza e obter apoio político. Perguntei-lhe como
conciliava a contemplação com a atividade revolucionária. “Não se
opõem. Pode-se trabalhar pela revolução sendo contemplativo. No sentido
tradicional, há uma dicotomia entre ação e contemplação. Porém, vivo a
contemplação na ação.” E frisou: “A única mensagem do Evangelho é a
revolução, que ele chama de Reino de Deus, exigência de superação de
todas as marcas de pecado, injustiça e opressão, até que só o amor seja
possível.”
Indaguei-lhe sobre o caráter de sua obra poética. “Em um poema que
dediquei a Dom Pedro Casaldáliga, digo que escrevo pela mesma razão dos
profetas bíblicos, que faziam da poesia uma forma de denúncia de
injustiças e anúncio de um novo tempo.”
Em fevereiro de 1979, voltamos a nos encontrar em Puebla, no México,
durante a Conferência Episcopal Latino-Americana. Ele convenceu bispos
de todo o continente a assinarem uma carta contra a ditadura somozista.
A 19 de julho de 1980, participei como convidado oficial das
comemorações do primeiro aniversário da Revolução Sandinista. Ali
reencontrei Cardenal, nomeado ministro da Cultura. Cinco anos depois ele
participaria, em Havana, da solenidade na qual lancei Fidel e a
Religião, ao lado de Fidel, Gabriel García Márquez e Chico Buarque.
Durante a década de 1980, assessorei o movimento sandinista, que
reunia cristãos e comunistas ateus nas questões de educação popular e na
relação marxismo e cristianismo. Foi, então, que Cardenal me propôs
organizarmos um movimento de jovens denominado MIRE (Mística e
Revolução). A ideia nunca prosperou, exceto no Brasil, onde o movimento
teve sua fase expressiva no início da década de 2000 e ainda hoje mantém
núcleos em algumas regiões do país, principalmente no Nordeste. A
proposta é vincular a espiritualidade mística, cultivada pela meditação,
ao compromisso de transformação da sociedade.
Em sua visita à Nicarágua, em 1983, o papa João Paulo II se recusou a
estender à mão a Cardenal, ministro da Cultura, que integrava o cortejo
oficial para recepcioná-lo. E, em público, o repreendeu, humilhou e,
1985, suspendeu-o de suas funções sacerdotais. O papa Francisco o
reabilitou em 2019.
Em 1994, Cardenal rompeu com a Frente Sandinista, por considerar que o
governo de Daniel Ortega já não mantinha coerência com os princípios
revolucionários nem atendia os anseios populares
A última vez que nos vimos foi em La Paz, em 2008, quando
intelectuais e artistas latino-americanos se reuniram para manifestar
apoio ao governo de Evo Morales.
Cardenal era um poeta consagrado internacionalmente, merecedor de
vários prêmios literários importantes. Um de seus versos mais famosos é
este epigrama dedicado a Cláudia, que reproduzo em tradução livre: “Ao
perder eu a ti, tu e eu perdemos: / eu, porque tu eras a quem eu mais
amava / e tu, porque eu era quem te amava mais. / Porém, de nós dois, tu
perdeste mais que eu: / porque poderei amar a outras como amei a ti, /
mas a ti não te amarão como eu te amava.”
Seu poema, Cântico Cósmico, publicado em 1990, se estende por 600
páginas! É um primor de descrição da evolução do Universo e de toda a
magnitude estética da Criação, o que levou o escritor Sérgio Ramirez a
qualificar a obra de Cardenal de “poesia científica”.
A obra se inicia com estes versos: “No princípio não havia nada / nem
espaço, nem tempo. / O Universo inteiro concentrado no espaço do núcleo
de um átomo / e, antes, ainda menor, muito menor que um próton, / e,
todavia, menor ainda / um infinitamente denso ponto matemático. / E
ocorreu o Big Bang. / A Grande Explosão.
E assim termina seu mais extenso poema: “E o que vemos quando olhamos
o céu noturno? / De noite vemos apenas a expansão do Universo. /
Galáxias e galáxias, e além mais galáxias e quasares. / E por detrás do
espaço não veríamos nem galáxias nem quasares, mas um Universo no qual
nada ainda se havia condensado, / um muro escuro, / antes do instante em
que o Universo se tornou transparente. / E antes ainda, o que afinal
veríamos? / Quando não havia nada. / No princípio…”
Frei Betto é escritor, autor de “A obra do artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros.
Fonte leonardoBOFF.com
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