
João Inácio Wenzel.*
Cerca de 100 trabalhadores rurais sem terra iniciaram nesta quinta, dia 16, uma marcha por reforma agrária, emprego e defesa do meio ambiente. Partiram de Jangada, rumo a Cuiabá, percorrendo noventa quilômetros a pé. Ninguém calçava tênis, como faz qualquer um de nós, quando faz sua caminhada, mas apenas bambolês que devem derreter com o duro calor do sol batendo no asfalto quente.
O povo de Jangada sai das casas para ouvir as falas que explicam a razão desta caminhada e vê cada sem terra carregando sua bandeira vermelha de paixão e ardor para ter uma terrinha para plantar, e, ao mesmo tempo, vermelha de vergonha deste país que até hoje não foi capaz de fazer a reforma agrária.
A grande preocupação é o tráfego intenso de carretas pela BR 384 que atravessam essa rodovia de quase sem acostamento em alta velocidade.
Por que tanto sacrifício? Por que esta travessia tão perigosa? Quem será capaz de se tocar e abraçar solidariamente esta causa?
Antes de saírem em marcha, na celebração de envio, recordamos o que disse o Senhor a Moisés: "Diga ao povo que marchem!" (Ex 14,15). Assim como o povo de Deus marchou abrindo caminho no meio do mar para fazer a travessia para a liberdade, o povo sem terra em marcha abre um novo caminho na velha estrada por onde trafegam as carretas carregando as riquezas dos grandes negócios. Assim como daquela travessia pelas águas divididas se forma o povo de Deus, esta travessia pela rodovia forma uma nova consciência frente à crise ecológica, econômica e alimentar que bate à porta de todo lar.
A Páscoa, tradicionalmente celebrada todos os anos, nos remete a ritos agrícolas e pastoris celebrados há mais de três mil anos. Os agricultores a celebravam com os frutos da sua colheita, com pão sem fermento, renovando o ciclo da vida após cada inverno. Os pastores, da mesma forma, ofereciam cordeiros antes de se embrenhar deserto adentro, a busca de pastos amplos e livres.
A própria palavra PASCOA significa "passar, saltar": Passar da escravidão para a liberdade, de massa anônima para um povo organizado, da idolatria à adoração do Deus vivo e verdadeiro, da estrutura dominadora para o reino da fraternidade, da noite escura à luz, da ignorância à sabedoria, da vida sem sentido para vida cheio de entusiasmo, da tristeza para alegria; passagem da morte para a vida, da paixão para a ressurreição, do velho Adão para novo Adão, deste mundo cansado para o novo mundo em Deus, do egoísmo para o amor-entrega, do acúmulo de terras para uma terra repartida, do mundo em crise para um novo mundo possível.
Não há travessia sem dor. Não uma dor masoquista, mas a dor como conseqüência da doação, como resultado do amor. Esta foi a razão de fundo da morte de Jesus: Seu amor e dedicação à causa dos pequenos, dos doentes, pobres e humildes excluídos da sociedade romana e da comunidade judaica. Ele mesmo disse: "Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos".
Há um livro na Bíblia que não fala diretamente de Deus, mas fala de que o "amor que é forte como a morte" (Ct 8,6). É o livro do "Cântico dos Cânticos". Não por acaso ele era lido durante a Páscoa, em família, nas primaveras de Israel.
Também não é por acaso que o Evangelho de João coloque o relato da ressurreição de Jesus no meio de um jardim. Nele está Maria Madalena que procura desesperadamente por Jesus, e acaba sendo encontrada por Ele na aparência de um jardineiro. Também ela faz a experiência de que o amor é mais forte do que a morte. Quando o encontra, já não precisa mais segurá-lo para si, como no cântico (Ct 3,4). Em vez disto anuncia aos discípulos: "Eu vi o Senhor". O amor triunfou e venceu a morte. Ele vive e faz viver.
O povo da marcha do MST, que percorre a pé uma distância equivalente a de Nazaré da Galiléia a Jerusalém, ruma a Cuiabá para reivindicar dos órgãos do governo o que é da sua obrigação: Reforma Agrária! Mas não só. Querem também emprego e defender o meio ambiente, propondo um outro modelo de desenvolvimento, que leve em conta a capacidade do planeta de suportar sustentavelmente a intervenção do ser humano. Querem que as verbas públicas sejam aplicadas em políticas públicas que beneficiem todo povo brasileiro e não apenas as grandes elites.
A Páscoa que celebramos não é apenas um rito que renova o ciclo anual das estações do ano, mas um convite para olhar a crise econômica, social, ecológica e alimentar como uma oportunidade de fazer a travessia para um novo modelo de sociedade, não mais pautado no consumismo, mas na partilha de vida, na solidariedade e na "paz que é fruto da justiça".
*João Inácio Wenzel, jesuíta, coordenador do Centro Burnier/Cuiabá e professor de exegese.
