sábado, 24 de julho de 2010
Apontamentos sobre a chamada "Lei da Ficha Limpa"
Por Rui Guilherme V. Souza Filho e
Hermann Felipe da Paz Rodrigues
A Constituição Federal de 1988, no § 9º do art. 14, assim dispõe: - Art. 14, § 9º. Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência de poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. Em obediência ao comando constitucional, foi editada a Lei Complementar nº 64, de 18/5/1990, com a seguinte ementa: - Estabelece, de acordo com o art. 14, § 9º da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação, e determina outras providências. Em seu bojo e entre outras providências, a LC 64/90 dita as regras que regem o procedimento a ser observado no processo de julgamento da Ação de Investigação Judicial Eleitoral – AIJE, conferindo competência à Justiça Eleitoral para conhecer e decidir as argüições de inelegibilidade. Resultante de iniciativa popular, com acentuada participação da Igreja, motivo pelo qual veio a ser cognominada “Lei do Bispo”, foi incluído, por força da Lei nº 9.840, de 28/9/1999, o art. 41-A na Lei das Eleições nº 9.504/1997, pelo qual passou a ser prevista a cassação do registro ou do diploma de candidato condenado pela captação ilegítima de sufrágio; ou, mais simplesmente, compra de voto. É de frisar que o citado art. 41-A da Lei das Eleições, embora submetendo o processo da representação pela compra de voto ao “procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990” (art. 41-A, caput, Lei 9.504/97), não gerava a inelegibilidade do candidato que, embora tivesse tido cassado seu registro de candidatura ou diploma, continuava em pleno gozo de todos os seus direitos políticos, não sendo considerado inelegível. Tal situação veio a ser visceralmente alterada com a entrada em vigor da Lei Complementar nº 135, de 4/6/2010 – a Lei da Ficha Limpa. Como antes se afirmou, a conseqüência advinda para o candidato incurso em captação ilícita de sufrágio, sob o império da redação original do art. 41-A da Lei das Eleições, era a cassação do registro da candidatura ou do diploma, mas não causava a inelegibilidade do representado. Já a partir da edição da Lei da Ficha Limpa, no começo de junho deste ano de 2010, por força do preceito contido na alínea “j” do art. 1º da LC 64/90, com a redação dada pela LC 135-2010, a condenação resultante da compra de voto torna a pessoa inelegível pelo prazo de oito anos. Assim está redigido o comando da lei: - Art. 1º. São inelegíveis: I- Para qualquer cargo: ......................................................................... j) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição (negritos nossos). O emprego do verbo no futuro do subjuntivo (os que forem condenados) conduz à indagação se o efeito é ex nunc, daí para a frente, ou se atinge o fato passado, com observância do limite temporal de oito anos para cessação da inelegibilidade. Se o legislador tivesse optado por usar outro tempo verbal, tipo “os que tenham sido condenados”, pacificar-se-ia a discussão, admitindo-se efeito ex tunc et ex nunc ao preceito com pouca margem para discussão, pelo menos no que tange à interpretação gramatical. Mesmo assim, dúvida oriunda do Direito Intertemporal e que certamente será dirimida pela construção jurisprudencial, tem a ver, entre outros argumentos, com a irretroatividade da lei. Resta claro que a perda do registro da candidatura ou a cassação do diploma de eleito é pena. Do mesmo modo o é a decretação de inelegibilidade. Então, cabe à jurisprudência, acompanhada da discussão doutrinária em torno do tema, decidir, no devido tempo e na forma mais adequada, sobre a efetividade da decretação de inelegibilidade decorrente de ato pregresso em contraposição ao consagrado princípio de que a lei penal só retroage para beneficiar. Outro ângulo controverso diz respeito à aplicabilidade da LC 135/2010 para o pleito do ano corrente, em face ao preceito contido na Constituição Federal, art. 16, a seguir reproduzido:- Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigênciaA Lei da Ficha Limpa é lei complementar à Constituição. Não é stricto sensu considerada lei eleitoral, mas norma que complementa o ditame constitucional. Paira, em razão de hierarquia, acima da legislação ordinária, ou infra-constitucional, patamar onde se inserem a Lei das Eleições, o Código Eleitoral, as Resoluções da Justiça Eleitoral que orientam a condução do pleito, e outras regras relativas à eleição. Tem por objetivo alargar a matéria exposta no texto da Lex Major, sendo exatamente isso que acontece com a Lei Complementar nº 64/90, editada em observância ao comando ínsito ao § 9º do art. 14 da CF/88, e as alterações ao diploma complementar de 1990 introduzidas pela LC 135/2010. Sendo norma que se destina a complementar a dicção constitucional, serve para ampliar e garantir sua melhor compreensão e aplicabilidade.
Em termos matemáticos, diz-se complementar a grandeza que constitui complemento de outra, mas enleadas à mesma essência. Assim, se a regra constitucional é auto-aplicável, o disposto em lei destinada a complementar a matéria constitucional, por ser grandeza da mesma essência, é auto-aplicável também. Ultima ratio, cabe ao Supremo Tribunal Federal, em cumprimento ao seu elevado papel de guardião da Constituição, a palavra final sobre o ângulo aqui enfocado. Em junho de 2010, e outra vez atendendo à iniciativa popular, entra em vigor a Lei Complementar nº 135, chamada de “Lei da Ficha Limpa”, com a seguinte ementa: - Altera a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o § 9º do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.Observa-se de plano que a LC 135 altera dispositivos da LC 64, a qual continua em pleno vigor, embora alterada sua redação original naquilo que se encontra disposto na lei complementar mais nova. As alterações da LC 135 modificam, na LC 64, os artigos 1º, 15, 22, 26-A, 26-B e 26-C. A LC 135/2010 recebeu popularmente a denominação de Lei da Ficha Limpa mercê da vontade geral de tornar inelegível o ocupante de cargo na administração direta ou indireta, ou o aspirante a cargo eletivo, que, em sua vida atual ou pregressa incorra em qualquer das condutas cuja tipificação se encontra no art. 1º, inc. I, “a” a “q”, da LC 64/90 (com a redação dada pela LC 135/2010), com as ressalvas resultantes da inclusão dos §§ 4º e 5º, continuando em vigor os dispositivos não mudados e contidos no art. 1º da LC 64. Com uma única exceção, por força da redação original que se manteve na alínea “i” do inciso I do art. 1º da LC 64, que fala em inelegibilidade, estipulando que esta persiste enquanto o ocupante de cargo ou função de direção, administração ou representação não for exonerado de qualquer responsabilidade – portanto, não havendo termo e, sim, condição – o prazo de inelegibilidade daquele que estiver incurso nas alíneas “a” a “h” e “j” a “q” do art. 1º, inc. I, da LC 64/90 é de 8 (oito) anos, contados, obviamente, do termo a quo e valendo para as eleições subseqüentes, enquanto perdure a inelegibilidade decretada em cada caso concreto.Questão que se vem repetindo é: o aspirante a cargo eletivo ou o político em exercício de mandato, enquadrado ou enquadrável em uma daquelas situações em que a lei, ainda que em abstrato, define como inelegível durante oito anos, contados do termo de início, poderá registrar sua candidatura para eleição que se vai realizar dentro do prazo da inelegibilidade? Tecnicamente, a resposta é uma só: não. Não pode, porque não podem ser eleitos os inelegíveis. Aliás, inelegível significa isso mesmo: que não pode ser eleito, ainda que, como eleitor, possa, com seu voto, levar qualquer pessoa elegível a ser eleita.Elegibilidade, é comezinho, é um dos direitos políticos do cidadão, mas não de todo cidadão. Por exemplo, o cidadão analfabeto pode alistar-se como eleitor. Uma vez eleitor, pode votar no candidato de sua escolha. Todavia, não pode sair candidato, requerendo o registro de sua candidatura, por que o analfabeto não é elegível: ao contrário, é inelegível, a teor do disposto no § 4º do art. 14 da CF/88: § 4º São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos.O pedido de registro da candidatura inicia na disposição da pessoa de emprestar seu nome para concorrer à eleição. Assim, o primeiro momento do processo decisório advém de uma resposta individual. É exatamente aqui que o cidadão, conhecendo melhor que ninguém os fatos de sua própria vida, deverá fazer o questionamento ético, diante de sua consciência, do qual resultará a resposta se pode ou não pode, se deve ou não deve, submeter seu nome à legenda que lhe oferece abrigo. A seguir, e sempre em termos puramente éticos, caberá à agremiação política decidir se aquele cidadão pode sair candidato, ou se, por ter “ficha suja”, é melhor não submeter nem a pessoa, nem a legenda, ao constrangimento de não lhe ser deferido o pedido de registro da candidatura. Outro ponto a ser considerado é que, no julgamento do pedido de registro de candidatura aquilo que a Justiça Eleitoral aprecia é matéria de ordem pública, portanto não se aplicando o antigo preceito do ne procedat iudex ex officio. A rigor, não há que o Judiciário Eleitoral depender indispensavelmente de somente agir quando houver impugnação por quem de direito. Se a impugnação origina-se de quem pode deduzi-la, instrua-se e julgue-se a representação. Contudo, nos casos em que a situação de inelegibilidade do registrando decorre de fato público e notório, o que torna dispensável a prova, é juridicamente possível, e até de esperar, que o pedido de registro daquela candidatura seja rejeitado de plano, atento ao princípio de que se trata de cidadão inelegível ex vi legis. A vontade do povo é expurgar do cenário político nacional a pessoa que, por ato de sua vida pregressa, apresenta uma “ficha suja”. Como cada caso é um caso, cabe à Justiça Eleitoral processar e julgar os pedidos de registro de candidaturas postos em julgamento. O veredicto final será ditado pela urna. É de lá, como fruto da vontade do cidadão manifestada no voto consciente e livre, que virão guindados aos seus respectivos cargos os mandatários da vontade popular. Embora vetusto o refrão, continua sólido o princípio basilar da democracia: todo poder emana do povo e em seu nome será exercido.
Fonte: Corrêa Neto
