quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Um soco no estomago do mesquinho espirito natalino burguês.

"Como pode não ser um embusteiro aquele que Ensina os famintos outras coisas Que não a maneira de abolir a fome?..." (Bertolt Brecht )


 
 
Da caridade burguesa:


 
por Zé Ningém


E então é natal, a festa cristã... Quem ainda se lembra disso? Com exceção de alguns crentes fanáticos e velhas carolas, quase ninguém. Como lembrar-se de que nessa data se comemora o nascimento do hippie de Nazaré, em meio a tantas cores, luzes, anúncios, bugigangas e ideologias descartáveis? O outro barbudo, de uniforme da Coca-cola, ofuscou o nazareno. Também, pudera, o Papai Noel é muito mais lucrativo, a ideologia que o sustenta não sofre dessas fragmentações as quais foi submetido o cristianismo. O capitalismo é universal.

Então, porquê ainda mencionar o cristianismo, mais de cem anos após Nietzsche ter anunciado a morte de Deus? Não ganharíamos mais atacando outros aspectos de nossa querida, cultura, ocidental?

Não. Acredito que atirar mais algumas pedras na cruz, além de fornecer sempre boas piadas, ainda tem algum sentido. Deus morreu, mas seu cadáver continua em putrefação sobre a terra, invadindo com seu fedor narinas e mentes. Além daquelas poucas pessoas para as quais as religiões ainda tem alguma importância prática em suas vidas, podemos encontrar ecos cristãos espalhados por todo o tecido social. 2000 anos de cristandade deixaram marcas profundas na moral, hábitos e costumes, ainda que a moral do D-M-D?, dinheiro que faz dinheiro, tenha suplantado todas as outras. Não é raro encontrar ateus mais cristãos do que os padres da idade média. E não podemos esquecer também que o espetáculo recupera, requenta e se apropria de qualquer idéia, figura ou ideologia, para seus próprios fins (a reprodução ampliada do capital). Em tempos de crise geral do capital, qualquer coisa pode e deve ser valorizada. Um bom exemplo do que afirmo pode ser encontrado no crescimento vertiginoso de seitas empresariais do tipo Igreja Universal. Poderia citar aqui inúmeras práticas, preconceitos, coações e ditos populares que também atestariam o que acabo de dizer. Porém, o que nos interessa aqui, é uma das prescrições morais do cristianismo que sempre foi muito valorizada pela classe que matou Deus: a caridade.

Há algumas décadas, pelo menos, podemos observar, todo natal, uma enxurrada de campanhas que tem a caridade como foco principal. Além do Natal sem fome, do adote uma criança no natal, igrejas empresas e governo empreendem diversas ações que visam dar aos pobres um natal sem fome, com brinquedos e alegria. A primeira pergunta a ser feita é essa: Só existe fome no natal? Bem, alguém poderia objetar que é melhor que seja assim, pois caso contrário muitos teriam um natal ainda mais miserável. Mas, permanece a pergunta: porque justo no natal?

Algumas respostas podem ser buscadas em uma rápida análise do que é o natal hoje. E não há como fazer muitos rodeios para a resposta: o natal hoje é a orgia desenfreada do consumismo. É a época em que o Papai Noel traz bilhões em seu saco para os empresários que se comportaram bem durante o ano. Somos bombardeados por promoções, prazos, e pseudo-novidades. É quase sacrilégio não comprar alguma coisa no natal. E no meio de tanta abundancia, tanta alegria, o que fazer com aqueles que não podem adentrar os templos do consumo e comungar o pão e o vinho do espetáculo? A visão de uma criança pobre, esperando o Papai Noel que nunca chegará, comove até os corações mais duros. O natal é a época do ano em que, talvez, as contradições do capitalismo aflorem de modo mais nítido. Então, é também uma época potencialmente explosiva. Com a caridade, mata-se tres coelhos com uma só paulada: aquieta os nobres corações burgueses e de classe média, que se sentem as melhores pessoas do mundo quando doam um brinquedo velho que seus filhos rejeitaram; fornecem o espetáculo da solidariedade que faz parecer que, afinal, ainda existem bons sentimentos nessa sociedade do dinheiro; e ainda acalma um pouco os ânimos daqueles que não podem participar da orgia consumista.

Para mim, a própria compaixão já é uma doença cristã abominável. Tal sentimento, que, ao contrário do que o cristianismo sempre pregou, é um sentimento intrinsecamente egoísta, só pode existir numa organização social que esteja dividida em castas ou classes. Em que alguns poucos senhores dominem uma massa de escravos dignos de pena. A burguesia ainda conseguiu piorar bastante essa herança cristã, transformando-a em caridade e filantropia. Ao mesmo tempo em que garante a coesão social com essas práticas, ainda consegue vender mais algumas mercadorias, colocando nelas estes belos rótulos. O que defendo aqui não é o fim da ajuda mútua entre os seres humanos. Tal ajuda, quando é natural e sincera, só pode favorecer a vida. Só que nenhuma prescrição moral pode estabelece-la. Ela só existe quando um ser humano consegue reconhecer-se em outro, e reconhecer o outro em si. Tal estado, numa sociedade de atomizados, é residual. E se torna totalmente mentiroso quando é reduzido a uma redistribuição reduzida de mercadorias num único dia ou semana.

Nosso tempo exige que as palavras sejam reconduzidas a seu real significado. Compaixão, solidariedade, caridade: Egoísmo, hipocrisia, dissimulação.