terça-feira, 5 de abril de 2011

Autodidatismo e educação segundo Jaime Cubero

Completaria hoje 85 anos o anarquista Jaime Cubero. Que seu exemplo siga vivo entre nós. Colamos abaixo um texto muito difundido na internet em que a historiadora Margareth Rago fala sobre ele



Quem Foi Jaime Cubero


Ativo militante, jornalista, intelectual e pedagogo, Jaime dedicou sua vida à difusão das idéias anarquistas; militou desde cedo no Centro de Cultura Social, no bairro operário do Brás em São Paulo, fundado em 1933. Nascido em Jundiaí, cidade operária próxima a São Paulo, descendente de imigrantes espanhóis, perdeu o pai aos 2 anos de idade. Aos 7, vem para SP, onde passa a morar com irmãos e avós no bairro da Móoca. Fez o curso primário na rede oficial de ensino , mas aos 10 anos teve de abandonar os estudos para trabalhar. Autodidata, conheceu o sr. Liberto, seu vizinho anarquista, que lhe passa alguns livros anti-clericais e com o qual organiza um grupo de estudos libertários. Passados alguns anos, organizam o Centro Juvenil de Estudos Sociais. Esteve envolvido nas lutas de resistência contra a Ditadura do Estado Novo, entre 1937-45. Em fins de 45, o grupo entra em contato como o Centro de Cultura Social, que reabria no Brás. Passa a freqüentá-lo e é convidado a ingressar no mesmo por outro conhecido anarquista, Edgard Leuenroth.


Logo mais, convidado a ser secretário do Centro, onde trabalha nos jornais e no Grupo de Teatro. Em 54, deixa SP e vai trabalhar na redação do jornal O Globo do Rio de Janeiro, onde fica até 64. Nesta cidade, encontra José Oiticica, cuja casa passa a freqüentar e participa do jornal Ação Direta, que aquele dirigia.


Demitido do jornal O Globo, pela ditadura militar, em 1964, por liderar uma greve dos gráficos, volta a São Paulo. Viveu ao lado da companheira Maria, denunciando as injustiças sociais, defendendo a liberdade, pregando os ideais anarquistas. Teve importante contribuição nos meios acadêmicos e estudantis, orientando inúmeras teses sobre a história das lutas sociais no país, além da pedagogia libertária.


Ajudou a formar vários intelectuais e militantes anti-autoritários. No CCS, organizou inúmeras atividades, ciclos de palestras ,debates e participou de congressos nacionais e internacionais como "Outros 500. Pensamento Libertário Internacional", na PUC/SP, 1992 e no Congresso Internacional de Barcelona, em 1993. Recentemente, participa da elaboração da revista Libertárias, que vem sendo publicada pela Editora Imaginário, sob direção de Plínio Coelho e Edson Passetti.


Morre aos 71 anos de idade, no dia 21 de maio de 1998, vítima de problemas de saúde.

Margareth Rago


Autodidatismo e educação segundo Jaime Cubero

Completaria hoje 85 anos o anarquista Jaime Cubero. Que seu exemplo siga vivo entre nós

Valverde: Do seu ponto de vista, o que é ser autodidata?

Jaime: Essa é uma pergunta que demandaria muita reflexão... Aí nós teríamos que desenvolver todo um conceito, porque, é claro, o anarquista tem um conceito de educação que se contrapõe a toda concepção de educação dada pelo sistema capitalista, pelo sistema do poder constituído, que se propõe a reproduzir os valores do sistema eternamente, visando uma reprodução constante do sistema e da ordem.


O anarquista pensa em alterar, em modificar a sociedade. Para modificar a sociedade, ele considera que o ensino, a instrução, o conhecimento são alavancas necessárias. As pessoas têm que se munir de conhecimentos para poder agir no sentido de mudar a sociedade, o que significa mudar a estrutura social. Então, é claro, não é por meio da escola oficial que as pessoas vão se preparar para mudar a sociedade. É mediante a aquisição de conhecimentos que possam gerar e desenvolver uma consciência crítica. Para quê? Para justamente se contrapor à estrutura da sociedade, como ela está constituída, e poder trabalhar para criar uma nova sociedade.


A partir dessa concepção, valoriza-se extraordinariamente a educação, o aprendizado, o conhecimento, por outras vias, que não as convencionais, e que começaram a ser desenvolvidas dentro das associações dos trabalhadores, desde o século XIX. Isso é algo que não se tem notícias precisas das origens. Acredito que exista desde que surgiu a necessidade de se libertar da própria opressão sentida pelos grupos sociais ao tomarem conhecimento de certos aspectos sociais. Começou então um processo de estudo, de informação para poder combater essa opressão, mas nós não podemos situar isso no tempo. Podemos dizer que foi a partir de um movimento criado pela perspectiva do movimento libertário desde o século XIX. A partir de então, os trabalhadores começaram a se organizar, foi quando começou a surgir realmente o movimento de massa, as associações de trabalhadores, de operários, que começaram a se organizar para se defender da extrema exploração de que eram vítimas. Aí, então, iniciaram a criação de instâncias de estudo, visando o conhecimento entre eles mesmos. Cito os exemplos da Espanha e do Brasil.


Eu posso citar o exemplo do meu pai e ele não era propriamente vinculado ao movimento, mas teve uma experiência que foi passada por meio do que se fazia na Europa. Meu pai era o único que sabia ler nas fazendas, em Jundiaí, onde a família trabalhava. Ele reunia todas as noites, depois do trabalho, um grupo de colonos. E à luz de lampião, lia para eles, ensinava os outros a ler. Não era uma escola formal, como você vê, mas eles liam jornais e o que conseguiam. Os mais aptos, aqueles que tinham mesmo vontade de aprender a ler, queriam saber gramática também. Isso porque depois iam substituindo o meu pai em outros núcleos. Esse processo foi se disseminando e as pessoas foram desenvolvendo formas de passar conhecimentos, de passar instrução, de uma forma autogerida pelos próprios trabalhadores, fora da escola oficial. E por meio dessas lutas, juntando aquelas experiências mais as reclamações da população nos movimentos sociais de massa dos trabalhadores, foram sendo criadas escolas, legitimando essas conquistas. Depois as escolas passaram a estar a serviço do próprio sistema, porque recebiam um programa previamente elaborado, dirigido no sentido de implementar nos alunos os valores da "ordem". Então, dentro dessas formas de ensino, dessas formas de passar conhecimento, de passar instrução, o caso é muito amplo.


É claro que há uma variação enorme de indivíduo para indivíduo, do potencial de cada um, da inquietude que cada um tem, porque surgem militantes que têm mais bulbo, outros menos, que têm um potencial até revolucionário maior do que outros. Então, sentem necessidade de saber mais, de se informar mais, daí lerem mais, especular mais. Assim começa o processo do autodidatismo, do ensino mútuo. Coisa semelhante é o que se passou na Espanha do século passado.


A minha experiência pessoal está dentro desse aspecto do autodidatismo. Muito jovem, depois que eu saí da escola, senti uma necessidade muito grande de continuar estudando. Sentia mesmo. Eu posso contar uma experiência, uma frustração terrível de não poder continuar os meus estudos na escola.


Houve um concurso na escola de primeiro grau, onde fiz o curso primário, para escolher em toda a escola um aluno que obtivesse a melhor nota, média. Esse aluno receberia uma bolsa de estudos, e eu ganhei o concurso, com uma diferença muito grande para o segundo colocado, mas eu não pude aproveitar aquela bolsa porque tinha que trabalhar, tinha que colocar alguma coisa em casa.


Com onze anos, comecei a trabalhar numa fábrica. Eram quase treze horas de trabalho por dia. Era o que se trabalhava por dia naquela ocasião. Era o ano de 1935, e eu entrava no trabalho às sete horas da manhã e saia às oito horas da noite, parava só para um lanche, uma refeição ligeira, sem interrupção, praticamente. Eu não pude continuar a estudar e a bolsa de estudos ganha foi cedida ao segundo colocado. Por aí você percebe as diferenças de oportunidades. É claro que a presença de um professor, um orientador, com critérios mais ou menos libertários, como os da Escola de Ferrer, faz muita diferença no tratamento com os alunos...


A minha formação libertária deve muito a um professor que tive no último ano da escola, pois hoje — e mesmo antes quando comecei a ganhar consciência política — o considero um professor libertário. Ele se chamava Noel Carlos dos Santos. Um dia, ele chegou e me disse: "Bom, você não pode ir para o ginásio, onde você ganhou a bolsa de estudos, mas poderá estudar, eu tenho um externato, e você vem estudar comigo, você não vai pagar nada, te dou os livros, você só terá que dispor das horas". E nem isso eu pude aproveitar pela necessidade de ter que estar na fábrica, para ganhar algum. Os meus irmãos todos, que tinham de dez anos em diante, já trabalhavam.

Aquele professor já era um libertário, não só pela generosidade, mas porque os métodos que ele aplicava na sala de aula contrariavam tudo que estava estabelecido nas escolas. Enquanto era comum aplicar castigos rigorosos para aqueles colegas que copiavam dos outros, que colavam etc., ele juntava os alunos mais atrasados — com dificuldades de compreensão — com os mais adiantados para estudarem em grupo. Dizia que o aluno, às vezes, aprende mais com o colega que com o próprio professor. Então, nós fazíamos sempre esse remanejamento.


Na ocasião dos exames finais, ele disse: "Vocês são filhos de trabalhadores", a maioria já tinha idade e trabalhava em fábrica. "Vocês não vão ter condições de continuar os estudos, o que é uma pena". Sentindo o problema, disse: "O que quiser continuar estudando vai ter que estudar por si mesmo". Era a forma da autopedagogia, do autodidatismo. Na hora dos exames, disse ainda: "Ninguém vai ser reprovado nessa sala". E sendo coerente com seu método de ensino, montou pequenos grupos, com alunos que sabiam mais e outros que sabiam menos. Dizia: "Fulano, fulano e fulano sentam juntos com fulano". E todos fizeram as provas baseados naqueles que conheciam mais, os mais habilitados. Lembro que, pessoalmente, na prova de Matemática, resolvi rapidamente os problemas e comecei a copiar e passar a solução para os colegas próximos e me atrasei. Atrasei tanto que, quando apareceu na porta o subdiretor dizendo que tínhamos cinco ou dez minutos para acabar a prova, eu ainda não tinha feito a minha, aí na hora da sofreguidão para copiar, acabei invertendo a resposta e a solução apareceu trocada. Tirei uma nota abaixo da dos companheiros que havia ajudado. Isso foi um detalhe engraçado que não esqueço até hoje.


Mesmo assim, ficou o exemplo edificante de professor. Naquela época, havia uma pobreza tão grande, a gente lutava com tanta dificuldade, que os alunos não podiam comprar quase nada. Muitos não tinham calçados, outros não tinham uniformes e a Secretaria de Ensino Estadual fez uma determinação: a partir de certa data, todos os alunos deveriam usar uniforme. Calça branca e paletó azul. Era uma pobreza brutal. O tempo ia passando e eu não conseguia adquirir o uniforme. Lembro-me que as minhas tias de Jundiaí me deram a calça branca, que usei durante os três anos de curso - a mesma calça. Já o paletó era de saco de farinha tingido de anil. Minha irmã, que tinha doze anos e já costurava, fez o paletó para mim. No entanto, muitos não conseguiam de jeito nenhum o tal uniforme. Então, o diretor lançou um desafio: a primeira sala de aula que conseguisse se apresentar inteirinha uniformizada ganharia um dia de folga e uma bola para jogar. Aquilo para nós foi um estímulo enorme, pois eu passava todas as minhas poucas horas de folga jogando futebol na rua.


De novo, nosso professor mostrou sua face mais generosa e compreensiva. Disse: "Bom, é uma competição e é ruim a gente estar brigando com os outros, pois alguns vão perder, seria bom que todos pudessem vir uniformizados, mas nós formamos uma pequena comunidade...". Me lembro bem das palavras dele. "Somos uma classe, podemos perder porque tem aqui pessoas que não podem comprar de jeito nenhum até o dia marcado ou mesmo mandar tingir uma... Vamos fazer um esforço e cada um vai dar um tantinho que puder para comprar a roupa deles, mesmo se for para a gente não jogar bola, mas somente para mostrarmos o nosso esforço comum, nossa luta". Foi assim, e cada um deu vinte réis.

--------

Esse é um trecho da entrevista que Jaime Cubero cedeu a Antonio José Romera Valverde, entre 05 e 09 de maio de 1989, no Centro de Cultura Social, em São Paulo.

A entrevista que está disponível no Scielo é uma seleção de momentos da entrevista-depoimento que, ao todo, rendeu 10 fitas gravadas e 63 páginas datilografadas.


Neste link do Scielo também há uma espécie de prefácio para a entrevista escrita pelo professor Antonio José Romera Valverde: Scielo - Socialismo libertário, educação e autodidatismo

Fonte: Revista Digital Antiautoritário
 
Visite a pagina do MCCE-MT