“A classe dominante quer manter as coisas do jeito que estão. Por isso, trata problemas sociais como casos de polícia. Desqualifica os movimentos, descontextualiza seus protestos, retira a dimensão social e a motivação coletiva e trata como se fossem atos individuais, que precisam ser punidos pelo Estado”,
Além de utilizar a polícia para perseguir os lutadores sociais, agora, os poderes do Estado movem processos jurídicos para intimidar os ativistas
Por Lúcia Rodrigues*, na Caros Amigos
A ditadura militar acabou, mas alguns resquícios desse passado sombrio nunca foram enterrados e teimam em se perpetuar como verdadeiros fantasmas que pairam sobre as cabeças daqueles que resistem e não se curvam diante das imposições dos donos do poder.
A perseguição aos que ousam se levantar contra as injustiças sociais neste país continua regra. E a criminalização da luta dos ativistas do campo e da cidade, uma constante. Apesar das torturas e dos assassinatos não terem deixado de ocorrer, principalmente nos rincões mais afastados deste país e nas periferias das grandes cidades, a repressão inovou em seu modo de agir. Sofisticou o discurso, para transmitir um ar de legalidade às ações.
Se durante os anos de chumbo, o Estado prendia, torturava e assassinava, pura e simplesmente, sem se preocupar com as consequências de seus atos, na democracia formal lança mão de recursos mais refinados para alcançar seus objetivos. Agora, lideranças populares do campo e da cidade são obrigadas a conviver também com o medo da punição legal.
Uma avalanche de processos é impetrada todos os dias contra ativistas populares de norte a sul do país. Em muitos casos, o aparato processual resulta na prisão dessas lideranças. Esse foi o verniz encontrado para revestir e encobrir as verdadeiras intenções da criminalização dos movimentos sociais.
A aversão a qualquer forma de mudança, que faça pender a balança para o lado dos mais pobres, é vista como uma ameaça real e movimenta a força motriz dessa engrenagem que envolve os poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, a mídia, o aparato militar e as forças policiais a serviço do poder econômico.
Peça decisiva nesse cenário, “o sistema judiciário penal sempre foi utilizado para controlar a população indesejada pela classe dominante”. A afirmação não é de nenhum ativista que milita em organizações populares, mas de um juiz de direito.
Justiça tem lado
Rubens Roberto Rebello Casara conhece por dentro o Judiciário brasileiro. É juiz da 43ª Vara Criminal do Rio de Janeiro. Magistrado de uma nova safra de juízes sabe que a Justiça não é cega, surda e tão pouco muda, mas que tem lado, e é o do mais forte.
“Não há neutralidade no Poder Judiciário. Todo mundo julga a partir de valores, de uma visão de mundo. E há uma tradição autoritária, que condiciona a maneira como os processos são analisados. Determinadas causas são rápidas, outras não”, ressalta Casara.
“O Poder Judiciário tem a função histórica de manter o status quo. A criminalização dos movimentos sociais tem esse objetivo, quer evitar que o movimento produza mudanças. É uma proposta conservadora de sociedade”, enfatiza.
O juiz, integrante do Conselho Executivo da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD), explica que as lideranças dos movimentos sociais que pressionam por mudanças são vistas pelos poderosos como essa população indesejada que precisa ser combatida.
“A classe dominante quer manter as coisas do jeito que estão. Por isso, trata problemas sociais como casos de polícia. Desqualifica os movimentos, descontextualiza seus protestos, retira a dimensão social e a motivação coletiva e trata como se fossem atos individuais, que precisam ser punidos pelo Estado”, frisa.
Mas a criminalização não ocorre somente contra as lideranças populares. Quem se coloca na defesa dessas pessoas e no resguardo da população mais empobrecida também sente na pele o peso da perseguição. Por incrível que pareça, o juiz Casara é uma dessas vítimas.
Por ter se manifestado contra a forma como foram realizadas as incursões militares, no final do ano passado no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, ele foi acionado pelo Ministério Público, que o colocou sob suspeição para julgar ações referentes a essa comunidade carioca.
“A coisa mais revolucionária que eu disse, é que não se combate ilegalidade com ilegalidade. É impossível se querer combater ilegalidade, com atos ilegais. A atitude (do promotor) foi uma tentativa de controle ideológico”, afirma.
O imbróglio jurídico está feito. Se for declarada sua suspeição, os processos sobre o caso, julgados por ele e que já terminaram, podem ser declarados nulos, porque faltaria imparcialidade e terão de ser reabertos, apesar de terem sido concluídos com a concordância do próprio Ministério Público.
Dossiês da criminalização
Recentemente, foram divulgados dois dossiês relatando as perseguições às quais ativistas de movimentos sociais estão expostos cotidianamente. O enfoque dos documentos se concentra nas lutas que acontecem em áreas rurais e indígenas.
O relatório Conflitos no Campo 2010, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), revela a repressão a que os ativistas que atuam em defesa da reforma agrária são submetidos. Os dados apontam a morte de 34 trabalhadores rurais no período. O número é 30% superior ao registrado no ano anterior.
O número de conflitos rurais também cresceu em relação a 2009. O Nordeste lidera a lista. Bahia, Maranhão, Pernambuco, Sergipe e Rio Grande do Norte são os Estados que registraram o maior índice de conflitos. O documento da CPT revela, ainda, que a perseguição aos que lutam por água ganhou destaque no período. O número de conflitos saltou 93,3% em relação ao ano anterior.
Já o dossiê apresentado pela rede Processo de Articulação e Diálogo, que reúne agências ecumênicas do mundo e entidades brasileiras, além de destacar o desrespeito aos direitos humanos, ressalta que há um processo de judicialização dos ataques aos ativistas. De acordo com a publicação, a criminalização desses lutadores ocorre devido à força que os setores conservadores exercem na sociedade.
“A atuação e busca por transformações de nossa sociedade ferem o interesse de grandes empresas, do latifúndio e de setores conservadores da sociedade que desejam manter as estruturas desiguais e discriminatórias”, ressalta trecho do documento.
A reportagem da Caros Amigos consultou dirigentes de vários movimentos sociais para saber quantos ativistas sofrem os efeitos da criminalização de sua luta hoje, no país, mas as organizações não têm uma contabilização centralizada que permita se chegar a um número preciso. Sabe-se, no entanto, que há inúmeros casos em processo.
A advogada do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Giane Álvares, explica que é frequente, por exemplo, que um mesmo ativista seja réu em vários processos. Essa constatação é replicada para outros movimentos sociais.
Só no Estado de São Paulo estão em curso aproximadamente 50 processos contra militantes do MST. O maior número de processos contra esses militantes se concentra principalmente nas regiões do Pontal do Paranapanema e de Iaras. O Rio Grande do Sul, Paraná, Pernambuco e Pará são os Estados com o maior índice de processos criminais contra os militantes sem terra.
Paralelamente à criminalização jurídica, há a repressão violenta contra os líderes camponeses. “A violência, hoje, não é mais exercida para atemorizar os trabalhadores do campo, mas para executar suas lideranças e impedir sua organização.” Giane explica que há também uma orquestração para deslegitimar a luta social do MST. “Isso é feito pelo Ministério Público, pela mídia, pelos agentes políticos.” Ela cita as três comissões parlamentares de inquérito que foram abertas no Congresso Nacional para investigar o Movimento.
“O Ministério Público Federal quis fechar o curso de Direito para estudantes de assentamentos. E o Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul montou uma estratégia para dissolver acampamentos e fechar escolas em áreas do MST, acusando o movimento de terrorismo e dizendo que as escolas estavam subordinadas às Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).” Ela destaca, ainda, os processos que tramitam em Carazinho, no Rio Grande do Sul, contra seis militantes sem terra com base na Lei de Segurança Nacional.
Bombardeio midiático
A mídia cumpre papel de destaque nessa orquestração contra os movimentos sociais. O tratamento que foi dado à ocupação das terras da União, invadidas pela Cutrale, talvez seja um dos casos mais emblemáticos de como a luta social é criminalizada pelos empresários das comunicações.
A Rede Globo deu o pontapé inicial no massacre, que foi replicado nos demais veículos da grande mídia. Como sempre, a concessão dos Marinho, obteve informações privilegiadas para chegar ao local antes, e dar a sua versão, que rapidamente se transformou na “versão oficial” dos fatos.
A imagem da derrubada do laranjal por tratores, cedida pela polícia e transmitida em horário nobre no Jornal Nacional, foi a senha para instigar o ódio da sociedade contra os sem terra. Em nenhum momento foi informado quem na realidade era o invasor. A empresa de sucos Cutrale, invasora das terras pertencentes à União, saiu ilesa na versão global.
A Venus platinada preferiu omitir isso do telespectador e tratar os sem terra como terroristas invasores de uma propriedade privada. A mensagem veiculada transformou as vítimas, em perigosos elementos que não têm limites para por abaixo, inclusive, plantações que poderiam matar a fome dos brasileiros.
“Cada vez mais a sociedade moderna utiliza os meios de comunicação contra os movimentos, para produzir consensos e justificar processos violentos contra a luta dos trabalhadores”, ressalta Gilmar Mauro, dirigente nacional do MST.
Ele destaca, no entanto, que essa forma de criminalização não é nova. “Os quilombolas rebelados contra a escravidão eram tratados pelo Estadão (jornal O Estado de S. Paulo) no século 19, como bandidos, ladrões e causadores de problemas para a sociedade. Assim justificavam as ações policias de perseguição e morte dessas pessoas”, revela.
“A farsa montada pela Rede Globo no caso Cutrale serviu para criminalizar o nosso movimento”, enfatiza Gilmar. Várias prisões foram efetuadas para dar o exemplo de como se tratam trabalhadores sem terras que se insurgem contra a injustiça social. Excepcionalmente, o processo foi estancado no Tribunal de Justiça de São Paulo. O acórdão proferido, além revogar as 19 prisões preventivas, declarou a inépcia da denúncia e anulou o processo.
Batalhas judiciais
Mas, apesar de os advogados do Movimento terem conseguido vencer importantes batalhas judiciais, a balança pende desfavoravelmente para o lado da luta. Talvez o massacre de Eldorado dos Carajás, que completou 15 anos no dia 17 de abril, seja o exemplo mais cabal disso.
No episódio, 19 sem terra foram brutalmente chacinados pela Polícia Militar paraense, quando protestavam por um pedaço de chão. Apesar disso, nenhum responsável foi punido. Os dois únicos condenados, o coronel Mario Colares Pantoja e o major José Maria Pereira de Oliveira, continuam soltos.
A luta por reforma agrária está longe de ter um final feliz. O bispo emérito de Goiás e conselheiro da CPT, Dom Tomás Balduíno, tece duras críticas à postura da presidente da República. “A Dilma não abriu a boca na campanha para falar de reforma agrária. E não foi por falta de conhecimento, mas por opção política. O posicionamento do governo é de defesa do agronegócio, da construção das hidrelétricas, do financiamento às grandes empresas. Aqui, em Goiás, a monocultura da cana tem uma série de subsídios. Compare isso com o que recebe a reforma agrária”, indaga.
O dirigente do MST também é pessimista em relação ao tratamento que a questão terá no governo federal. “A Dilma não emitiu opinião em relação à reforma agrária na eleição. Não falou nada na posse, não falou nada depois da posse. Sinal de que a reforma agrária não está na ordem do dia. Mas o grande capital está, e ganhando muito dinheiro”, alfineta.
Moradia popular
A batalha por um teto nas grandes cidades também está a anos luz de ter uma solução. A estimativa de especialistas da área é de que o déficit habitacional no país gire em torno de oito milhões de moradias. Por isso mesmo, a criminalização contra quem pressiona por acesso a esse direito tem sido reprimida de forma contundente.
A presença da Polícia Militar e das guardas municipais na repressão em despejos de trabalhadores sem teto que ocupam prédios vazios é uma constante. Paralelamente à violência direta dirigida pelas forças repressivas, avança uma onda de processos contra os líderes do movimento. Vale tudo para silenciar quem se levanta contra a injustiça social.
Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, dirigente da Central de Movimentos Populares (CMP), foi perseguido durante oito anos por um crime que não cometeu. Ele era acusado de ter assassinado um homem em uma das ocupações que liderava na capital paulista.
Inocentado, recentemente, por unanimidade em tribunal de júri popular, em que até o promotor pediu sua absolvição, o líder popular pretende processar o Estado. Gegê teve de amargar 51 dias de prisão, enfrentou duas rebeliões nos Centros de Detenção Provisória por onde passou, além de uma tentativa de fuga de presos na delegacia onde também ficou detido. “Não perdoarei o Estado jamais.
Foram oito anos de sofrimento, momentos que ficarão marcados na minha história e jamais se apagarão”, enfatiza.
O advogado Benedito Roberto Barbosa, o Dito, dirigente da Central de Movimentos Populares e membro do comitê Lutar Não é Crime, movimento que lutava pela absolvição de Gegê, considera que o apoio recebido de vários setores da sociedade, inclusive, do senador Eduardo Suplicy (PT-SP), que foi uma de suas testemunhas, contribuiu para sua absolvição.
Ele conta que o promotor do caso, Roberto Tardelli, foi se convencendo da inocência de Gegê ao longo do julgamento. “Ele declarou que estava convicto de que o Gegê liderava uma quadrilha, um bando armado, para intimidar as pessoas nas ocupações, mas foi convencido durante o julgamento de que ele não era nada disso.”
Dito se preocupa, no entanto, com os vários militantes que estão longe dos grandes centros urbanos e não têm a oportunidade de divulgar a perseguição que sofrem. “Quantos companheiros estão sendo criminalizados neste momento por esse Brasil afora”, questiona apreensivo.
A população indígena é uma das que tem maior dificuldade em denunciar a violência sofrida. O agronegócio continua inimigo feroz da demarcação das terras indígenas, mas os fazendeiros reciclaram a estratégia de ação. Agora ao invés de jagunços, contratam seguranças armados para atuar na repressão aos índios e às lideranças campesinas.
O secretário-adjunto do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Saulo Feitosa, revela que o novo método empregado torna mais difícil a responsabilização pela violência empregada. O termo segurança confere um ar de legalidade à repressão empreendida contra os indígenas.
“O Cimi publica, anualmente, um relatório sobre violência. O crime de pistolagem é perene. Antes as fazendas tinham pistoleiros, agora contratam seguranças. Era mais fácil denunciar os pistoleiros, porque eram rotulados negativamente, hoje os seguranças são pistoleiros disfarçados e os crimes caem na impunidade.”
Ele ressalta que a população indígena ao se revoltar contra a violência que resulta em assassinatos acaba sendo punida judicialmente. Em um desses protestos, os indígenas acabaram quebrando alguns objetos de uma fazenda. Vários deles foram presos e condenados. O crime contra a vida não é punido, mas insurgências contra o patrimônio, sim.
Meio Ambiente
A criminalização da luta dos que atuam contra os megaprojetos é uma das formas de repressão mais recente que está em marcha no país. A batalha para barrar a construção das usinas hidrelétricas de Belo Monte, no Pará, e Santo Antonio e Jirau, em Rondônia, que contam com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, está longe de se sagrar vitoriosa, apesar do impacto desastroso provocado sobre as comunidades ribeirinhas e indígenas vizinhas às obras.
Nem mesmo um reforço de peso, capitaneado pela Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), que solicitou ao governo brasileiro a paralisação das obras na hidrelétrica de Belo Monte até que se faça uma discussão com os atingidos, foi capaz de sensibilizar o Executivo federal. O governo preferiu atacar a postura da Corte Internacional classificando-a como uma ingerência em assuntos internos ao invés de atender as reivindicações da população atingida pela barragem.
Além do apoio da OEA, os ribeirinhos e indígenas vizinhos a Belo Monte tem contado também com a intervenção favorável do Ministério Público Federal no Estado, que já impetrou várias ações na Justiça para suspender o empreendimento, embora nenhuma delas tenha sido julgada.
O militante do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), Ricardo Luiz Montagner, afirma que há um padrão no modo de agir na repressão contra os que se levantam contra a construção de hidrelétricas no Brasil.
“O ataque contra os militantes contrários às hidrelétricas é uma ação mais qualificada e selecionada. Os consórcios (empreiteiras) intimidam, negam direitos. Dizem que as pessoas não têm direito e que têm de aceitar o que está sendo proposto.”
Ele considera que essa estratégia é utilizada para baratear o custo da obra. “Não vão cortar no cimento, no concreto, na parte de engenharia, porque aí compromete o projeto. Agora, cortando direitos, não dando o tratamento adequado na parte social e ambiental, aí baixa o custo.”
Montagner integrou, recentemente, uma comissão que foi à Alemanha, Suíça e Noruega o processo de criminalização que os ativistas sociais sofrem no Brasil. “É um processo contínuo, com prisões, difamações, processos. A grande imprensa tenta deslegitimar nossa organização. Acusa de formação de quadrilha, de perturbar a ordem pública.”
Passe Livre
Os protestos contra o reajuste no preço da tarifa de ônibus se converteram nesta década em um dos principais focos da resistência popular nas cidades. Daí a forma como o aparato repressivo tem reagido contra esses manifestantes. O ataque mais recente aconteceu na capital paulista. A contundência da ação das forças repressivas relembrou a forma de agir dos agentes da ditadura militar.
O assistente social Vinícius Boim foi brutalmente espancado por policiais militares e guardas municipais em frente à sede da Prefeitura de São Paulo, no dia 17 de fevereiro, quando participava do protesto que terminou com a repressão policial. Ele teve o nariz fraturado por um chute de coturno, após ter sido derrubado no chão e imobilizado pelas forças repressivas.
O crime cometido? Exercer o direito previsto na Constituição Federal de se manifestar livremente contra o que considera um abuso do Executivo municipal. Mas o tratamento despendido contra o militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e funcionário da Prefeitura foi exemplar e reflete bem como o Estado lida com a contestação a suas determinações.
Vinícius foi submetido a uma cirurgia para reparar os cinco pontos de fratura que sofreu no nariz. Além disso, ainda responde a processo criminal, aberto pela PM, por desacato, resistência à prisão, desordem pública, quebra de patrimônio e agressão a policiais. Ele também chegou a ser acusado, por meio de um e-mail anônimo, de estar no protesto durante horário de expediente de trabalho. A mentira, no entanto, foi rechaçada pela chefia e a investigação administrativa não prosseguiu.
“Teve uma denúncia questionando minha participação no ato. Houve um comunicado da Secretaria pedindo para averiguar isso, mas minha chefe respondeu que eu tinha feito, inclusive, hora extra nesse dia. O caso não foi adiante, porque eu estava dentro da legalidade”, destaca.
O funcionário público municipal reclama que no processo que deveria averiguar a conduta dos policiais que o agrediram, é ele quem é o alvo das investigações.
“As perguntas do capitão se referiam a minha conduta e não a dos policiais.” O assistente social teve de prestar seu depoimento em um Batalhão da Polícia Militar.
DNA de luta
A repressão ao Movimento Passe Livre começou na primeira metade da década em Santa Catarina. O então estudante de história Marcelo Pomar foi um dos precursores dos protestos que se espalharam como rastilho de pólvora para várias cidades brasileiras.
Pomar liderou as revoltas da catraca contra o reajuste no preço das passagens dos ônibus nos anos de 2004 e 2005, em Florianópolis. Os protestos levaram milhares de pessoas às ruas e obrigaram a Prefeitura da capital catarinense a recuar no aumento que já havia sido expedido.
O ativista tem DNA de luta. É bisneto do dirigente comunista Pedro Pomar, assassinado pelo Exército em dezembro de 1976, no episódio que ficou conhecido como o massacre da Lapa. Sua preponderância à frente das manifestações contra o reajuste da tarifa lhe rendeu a ira dos donos do poder. Ele foi ameaçado de morte, preso três vezes e respondeu a sete processos criminais.
Em uma dessas prisões, Pomar chegou a ser capturado por um grupo de homens à paisana. O que contribuiu para a garantia de sua integridade física foi o fato do repórter de uma rádio catarinense, que já o havia entrevistado, ter notado a movimentação estranha do grupo. O jornalista acionou imediatamente a emissora e noticiou o que estava acontecendo ao vivo.
A notícia preservou Pomar de consequências mais drásticas. Ele acabou sendo levado para o 4º Batalhão da Polícia Militar de Florianópolis, onde foi agredido verbalmente. “Provocaram, xingaram de tudo quanto é coisa, xingaram mãe, pai, família”, revela. Antes de prendê-lo, os homens que o levaram deram uma chave de braço para imobilizá-lo.
Seus agressores não sofreram nenhum tipo de punição, mas Pomar teve de se defender dos sete processos que foram abertos contra ele. O ativista contou o apoio da OAB de Santa Catarina e de um advogado famoso no Estado. Não foi condenado em nenhum dos processos. Mas nem ele, nem o MPL teriam condições de custear a defesa, se não fosse a solidariedade recebida.
Ele considera que a criminalização dos manifestantes do Movimento Passe Livre se dá, porque a luta em torno do transporte público se transformou em um eixo central na discussão sobre o direito à cidade. Ainda de acordo com o militante, dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontam que há no país 37 milhões de brasileiros impedidos de se locomover por meio de transporte público, porque não podem pagar o preço que é cobrado na tarifa.
Universidade
As lideranças estudantis e sindicais que militam nas universidades brasileiras também têm tido suas lutas criminalizadas. O caso mais emblemático de perseguição registrado contra organizadores de protestos na academia é o da Universidade de São Paulo (USP), a maior e mais importante instituição de ensino superior do país.
Na segunda metade da década ocorreu uma onda de ocupações de reitorias em diversas universidades do país. Os estudantes protestavam basicamente contra medidas autoritárias adotadas pelos reitores.
No caso específico da USP, a insatisfação foi além dos muros acadêmicos. O corpo discente lutava para barrar os decretos assinados pelo então governador do Estado, José Serra (PSDB), que atacavam a autonomia financeira das três universidades públicas paulistas (além da USP, Unicamp e Unesp).
Durante quase dois meses, centenas de estudantes se revezaram para manter a reitoria sob controle e pressionar o governador Serra a recuar na decisão. O Executivo ameaçou com a invasão da Tropa de Choque da PM, que só não foi colocada em prática devido às condições geográficas do prédio, que poderiam resultar em um banho de sangue. Mas mais do que a preocupação com a garantia da integridade física dos manifestantes, pesou na decisão do governo o desgaste político que repercussão de um ato dessa envergadura poderia ter.
Os estudantes continuaram acampados e o governador foi obrigado a recuar para por fim ao impasse. Restabelecida a rotina na Universidade, vieram as retaliações: uma enxurrada de processos contra os líderes do movimento, apesar de ter sido acordado que não ocorreriam perseguições.
Até hoje, oito estudantes respondem às acusações. Quatro destes já se formaram. Mas ao contrário do que se poderia supor, as investigações não foram encerradas. A punição em que esses estudantes estão enquadrados prevê a eliminação definitiva dos quadros da Universidade. Medida aparentemente sem sentido para quem já se formou, mas que no fundo carrega um forte componente maquiavélico.
A postura adotada pela reitoria da USP está calcada em uma legislação do período ditatorial: o decreto 52.906, de 27 de março de 1972, elaborado sob a égide do AI-5 (Ato Institucional), um dos mais contundentes instrumentos do regime militar, que ainda dá o tom para punições disciplinares na mais conceituada universidade brasileira.
Moral e bons costumes
Esse entulho autoritário não foi varrido, apesar de o estatuto e o regimento da USP terem sido reformados após a ditadura, e dá a brecha para que instrumentos jurídicos mantenham significância fora de seu tempo. O decreto trata, por exemplo, do combate a atentados à moral e aos bons costumes, proíbe greves e manifestações políticas. É rico em penduricalhos autoritários que não fariam nenhum sentido em uma universidade democrática.
Não fariam, mas fazem. Na prática esse instrumento jurídico pode impedir o retorno de estudantes indesejados à Universidade. A ex-estudante de Ciências Sociais Maria Fernanda Pinto, a Mafê, é uma das que pode ter a vida acadêmica estancada em função de sua atuação destacada na ocupação da reitoria em 2007.
Mafê se formou em 2008, um ano após os protestos e neste ano pretende disputar uma vaga no mestrado do curso de História Social para ingressar na pós-graduação da USP no segundo semestre. Mas o regime disciplinar uspiano pode impedi-la de voltar a estudar na Universidade.
Se for condenada no processo movido pela reitoria, corre o risco de ser impedida de cursar as aulas, mesmo que seja aprovada no processo seletivo, “Minha punição está baseada em um decreto da época da ditadura que prevê retaliação por comportamento político ou moral”, critica Mafê, preocupada com seu futuro acadêmico.
A socióloga conta que depois dos processos movidos pela reitoria contra os estudantes que participaram da manifestação de 2007, outros processos foram abertos pelo reitor João Grandino Rodas contra mais ativistas que se envolveram em protestos na Universidade.
Ela destaca a ocupação de um dos blocos do Conjunto Residencial da USP, o Crusp, em 2010. O edifício vinha sendo utilizado pela estrutura burocrática da Universidade e os estudantes pressionavam pela ampliação das vagas na moradia do campus Butantã. Resolveram retomar o espaço que havia sido tomado durante a ditadura militar.
Legislação da ditadura
Assim como as lideranças de 2007, os líderes desse protesto foram enquadrados no dispositivo previsto na legislação dos tempos da ditadura. Durante a greve de 2010, estudantes moradores do Crusp buscaram alimentos no bandejão (restaurante universitário) para cozinhar. É praxe repassar a esses estudantes, em períodos de paralisação de funcionários, os alimentos que seriam preparados nos restaurantes da Universidade.
No entanto, na greve do ano passado o coordenador da Coseas (Coordenadoria de Assistência Social), Waldyr Antonio Jorge, responsável pelos bandejões e pelo Crusp, resolveu que os alimentos não seriam doados aos estudantes. “Sempre quando tem greve, os alimentos são distribuídos para os moradores do Crusp cozinharem nos blocos. Mas na greve do ano passado, não foi permitida a distribuição desses alimentos”, frisa Mafê.
Os sindicalistas que atuam na universidade também têm sido alvo preferencial do reitor João Grandino Rodas. Mais de 20 inquéritos policiais foram abertos após a greve de 2007. Quatro sindicalistas respondem a processos judiciais. O diretor do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp), Magno de Carvalho, é um deles.
Magno destaca a estratégia adotada pelo reitor Rodas na forma de perseguição aos trabalhadores uspianos. “Rodas está agindo diferente dos outros reitores, ao invés de abrir processos administrativos, encaminha para processo judicial, que podem resultar em condenação. É mais fácil para a USP me demitir se eu for condenado.”
Outro sindicalista que está sendo processado judicialmente é Claudionor Brandão.
Ele foi demitido, no final de 2009, pela então reitora Suely Vilela, por liderar manifestações contra a administração da Universidade. Magno destaca que o fato de reitor Rodas ser desembargador, faz com que ele adote outra forma na condução das punições.
“Ele percebeu que a demissão do Brandão pode ser revertida na justiça por ter se baseado em um processo administrativo. Por isso, agora ele opta por mover inquéritos policiais contra os trabalhadores, que podem ser transformados em processos judiciais. A justiça está questionando o fato de ele ser sindicalista e ter sido demitido com base em um processo administrativo”, afirma Magno, referindo-se ao fato de sindicalistas não poderem ser demitidos por exercer esse direito.
O Sintusp denuncia que a Procuradoria da USP, a mando de Rodas, também está pressionando a polícia a agir rápido nos desdobramentos dos inquéritos policiais abertos contra os sindicalistas. Ainda segundo a denúncia, procuradores vão semanalmente à delegacia pressionar para que os inquéritos sejam transformados em processos judiciais.
*Lúcia Rodrigues é jornalista.
luciarodrigues@carosamigos.com.br
Fonte: Caros Amigos
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