domingo, 9 de outubro de 2011

Che Guevara e os mortos que nunca morrem

“Eu tive um irmão, não nos encontramos nunca mas não importava, meu irmão desperto enquanto eu dormia, meu irmão me mostrando atrás da noite sua estrela escolhida”.(Cortázar)

No dia em que executaram o Che Guevara em La Higuera, uma aldeola perdida nos confins da Bolívia, Julio Cortázar – que na época trabalhava como tradutor na Unesco – estava em Argel. Naquele tempo – 9 de outubro de 1967 – as notícias demoravam muito mais que hoje para andar pelo mundo, e mais ainda para ir de La Higuera a Argel.



Diz Eduardo Galeano, que conheceu o Che Guevara: ele foi um homem que disse exatamente o que pensava, e que viveu exatamente o que dizia. Assim seria ele hoje. Já não há tantos homens talhados nessa madeira. Aliás, já não há tanto dessa madeira no mundo. Mas há os mortos que nunca morrem. Como o Che. E, dos mortos que nunca morrem, é preciso honrar a memória, merecer seu legado, saber entendê-lo. Não nas camisetas: nos sonhos, nas esperanças, nas certezas. Para que eles não morram jamais. O artigo é de Eric Nepomuceno.



Por Eric Nepomuceno

No dia em que executaram o Che Guevara em La Higuera, uma aldeola perdida nos confins da Bolívia, Julio Cortázar – que na época trabalhava como tradutor na Unesco – estava em Argel. Naquele tempo – 9 de outubro de 1967 – as notícias demoravam muito mais que hoje para andar pelo mundo, e mais ainda para ir de La Higuera a Argel.

Vinte dias depois, já de volta a Paris, onde vivia, Cortázar escreveu uma carta ao poeta cubano Roberto Fernández Retamar contando o que sentia: “Deixei os dias passarem como num pesadelo, comprando um jornal atrás do outro, sem querer me convencer, olhando essas fotos que todos nós olhamos, lendo as mesmas palavras e entrando, uma hora atrás da outra, no mais duro conformismo... A verdade é que escrever hoje, e diante disso, me parece a mais banal das artes, uma espécie de refúgio, de quase dissimulação, a substituição do insubstituível. O Che morreu, e não me resta mais do que o silêncio”.

Mas escreveu:

Yo tuve un hermano
que iba por los montes
mientras yo dormía.
Lo quise a mi modo,
le tomé su voz
libre como el agua,
caminé de a ratos
cerca de su sombra.
No nos vimos nunca
pero no importaba,
mi hermano despierto
mientras yo dormía,
mi hermano mostrándome
detrás de la noche
su estrella elegida.

A ansiedade de Cortázar, a angústia de saber que não havia outra saída a não ser aceitar a verdade, a neblina do pesadelo do qual ninguém conseguia despertar e sair, tudo isso se repetiu, naquele 9 de outubro de 1967, por gente espalhada pelo mundo afora – gente que, como ele, nunca havia conhecido o Che.

Passados exatos 44 anos da tarde em que o Che foi morto, o que me vem à memória são as palavras de Cortázar, o poema que recordo em sua voz grave e definitiva: “Eu tive um irmão, não nos encontramos nunca mas não importava, meu irmão desperto enquanto eu dormia, meu irmão me mostrando atrás da noite sua estrela escolhida”.

No dia anterior, 8 de outubro de 1967, um Ernesto Guevara magro, maltratado, isolado do mundo e da vida, com uma perna ferida por uma bala e carregando uma arma travada, se rendeu. Parecia um mendigo, um peregrino dos próprios sonhos, estava magro, a magreza estranha dos místicos e dos desamparados. Foi levado para um casebre onde funcionava a escola rural de La Higuera. No dia seguinte foi interrogado. Primeiro, por um tenente boliviano chamado Andrés Selich. Depois, por um coronel, também boliviano, chamado Joaquín Zenteno Anaya, e por um cubano chamado Félix Rodríguez, agente da CIA. Veio, então, a ordem final: o general René Barrientos, presidente da Bolívia, mandou liquidar o assunto.

O escolhido para executá-la foi um soldadinho chamado Mario Terán. A instrução final: não atirar no rosto. Só do pescoço para baixo. Primeiro o soldadinho acertou braços e pernas do Che. Depois, o peito. O último dos onze disparos foi dado à uma e dez da tarde daquela segunda-feira, 9 de outubro de 1967. Quatro meses e 16 dias antes, o Che havia cumprido 39 anos de idade. Sua última imagem: o corpo magro, estendido no tanque de lavar roupa de um casebre miserável de uma aldeola miserável de um país miserável da América Latina. Seu rosto definitivo, seus olhos abertos – olhando para um futuro que ele sonhou, mas não veria, olhando para cada um de nós. Seus olhos abertos para sempre.

Quarenta e quatro anos depois daquela segunda-feira, o homem novo sonhado por ele não aconteceu. Suas idéias teriam cabida no mundo de hoje? Como ele veria o que aconteceu e acontece? O que teria sido dele ao saber que se transformou numa espécie de ícone de sonhos românticos que perderam seu lugar? Haveria lugar para o Che Guevara nesse mundo que parece se esfarelar, mas ainda assim persiste, insiste em acreditar num futuro de justiça e harmonia? Um lugar para ele nesses tempos de avareza, cobiça, egoísmo?

Deveria haver. Deve haver. O Che virou um ícone banalizado, um rosto belo estampado em camisetas. Mas ele saberia, ele sabe, que foi muito mais do que isso. O que havia, o que há por trás desse rosto? Essa, a pergunta que prevalece.

O Che viveu uma vida breve. Passaram-se mais anos da sua morte do que os anos da vida que coube a ele viver. E a pergunta continua, persistente e teimosa como ele soube ser. Como seria o Che Guevara nesses nossos dias de espanto? Pois teria sabido mudar algumas idéias sem mudar um milímetro de seus princípios.

Diz Eduardo Galeano, que conheceu o Che Guevara: ele foi um homem que disse exatamente o que pensava, e que viveu exatamente o que dizia.

Assim seria ele hoje.

Já não há tantos homens talhados nessa madeira. Aliás, já não há tanto dessa madeira no mundo. Mas há os mortos que nunca morrem. Como o Che.

E, dos mortos que nunca morrem, é preciso honrar a memória, merecer seu legado, saber entendê-lo. Não nas camisetas: nos sonhos, nas esperanças, nas certezas. Para que eles não morram jamais. Como o Che.

Fonte Carta maior


Noite celebrativa lembrará 40 anos da carta de Dom Pedro




Por Keka Werneck, da Assessoria de Imprensa do Centro Burnier Fé e Justiça

Há 40 anos, no dia 10 de outubro de 1971, um padre prestes a ser bispo pensou no que poderia apresentar na cerimônia de posse, realizada dia 23 do mesmo mês do mesmo ano, que fosse transformador. Era Dom Pedro Casaldáliga, ainda aos 43 anos, que, pelo trabalho em favor dos direitos humanos e pelo direito a terra, hoje tem projeção internacional. Resolveu aquele padre apresentar uma carta que desse conta de localizar geopoliticamente a região onde milita; mostrar como as coisas funcionam nos rincões do país, quem manda, quem é mandado; de retratar o homem do campo, esse ser forte, explorado; que denunciasse o latifúndio, o trabalho escravo; que tirasse esses problemas da invisibilidade. A carta “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”, apresentada por ele, não só expõe esse cenário, como também conclama a igreja a sair de sua centralidade eurocêntrica e atuar nesses rincões, contra tais mazelas e outras. Foi a primeira vez que se falou claramente em latifúndio, em trabalho escravo, em pistolagem. Para além disso, trata-se de um documento muito bem escrito, com beleza literária e rigor de informações sociológicas.

O Centro Burnier Fé e Justiça guarda em seu acervo a edição original da carta.

Para marcar a data, no dia 10 haverá uma noite celebrativa dos 40 anos da carta de Dom Pedro Casaldáliga, a partir das 18h30, no salão da Igreja do Rosário e São Benedito.

Na mesma noite, movimentos sociais vão lembrar também a morte do padre João Bosco Burnier, que dia 11 de outubro de 1976, foi baleado, quando ele e Dom Pedro faziam uma intervenção em favor de camponesas presas injustamente em uma delegacia de Ribeirão Cascalheira. Burnier morreu no dia seguinte.

O espanhol Dom Pedro casaldáliga, radicado no Brasil desde 1968, tem hoje 83 anos, sofre do Mal de Parkinson, está com saúde frágil, mas não deixa de passar aquela força, quando fala sobre a vida militante, como fez na última Romaria dos Mártires, realizada em 16 de julho deste ano, em Cascalheira. Veja aqui. Devido à presença de Dom Pedro havia na caminhada jornalistas de todo o mundo, principalmente da América Latina, onde Dom Pedro é referência de luta e fé.

Dom Pedro fez a escolha pelos pobres, marginalizados e pelas minorias e não se esquiva de fazer as defesas dos movimentos sociais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).

A noite celebrativa, que será aberta ao povo, está sendo organizada pelo Fórum de Direitos Humanos e da Terra Mato Grosso.

Fonte: Centro Burnier Fé e Justiça

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