Ex-ministro fez profissão de fé pelo seu direito de defender contraventor; alegou que se sentia desafiado a enfrentar o Estado; e que não tinha qualquer impedimento ético, moral e até psicológico; mas no momento mais crítico do caso, pede o boné e vai para casa avisando que não devolverá honorários já pagos
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247 – Para efeito de comparação, seria o mesmo que
um ex-titular do Departamento de Justiça dos Estados Unidos advogar para
Al Capone. Ou um ex-ministro da Justiça da Itália defender o chefe da
Cosa Nostra Tomaso Buschetta. Estas associações seriam inconcebíveis
naqueles países, e jamais ocorreram, mas no Brasil não apenas aconteceu,
como ainda o ex-ministro recebeu um alto honorário para defender o
equivalente verde-amarelo aos mafiosos internacionais. Foi assim entre
Márcio Thomaz Bastos, titular de 2003 a 2007 do Ministério da Justiça do
Brasil, e o contraventor Carlinhos Cachoeira, apontado como um dos
maiores chefes do crime organizado no Brasil, com ramificações no jogo
ilegal, no superfaturamento de obras públicas e na utilização da máquina
do Estado para interesses pessoais, com ramificações em diferentes
unidades da federação.
"Nada me proíbe, nesta altura da vida – como nunca antes, à exceçao
do tempo do serviço público – de assumir a defesa de alguém com quem não
me sinto impedido, legal, moral ou psicologicamente, cobrando ou não
honorários", procurou justificar o ex-ministro, diante das inúmeras
críticas e incompreensões à sua aceitação de defender Cachoeira, em
artido publicado no jornal Folha de S. Paulo, no dia 29 de maio (leia
íntegra abaixo).
Ok, Thomaz Bastos desfiou seus argumentos, sentou-se ao lado de
Cachoeira na sessão da CPI em que o orientou a boicotar as investigações
e manter-se calado e, ainda, impetrou uma série de habeas corpus em
favor de seu cliente – nenhum dele com sucesso. A chegar a seu quinto
mês de prisão, deprimido e cada vez mais acuado, porém, Cachoeira que
tinha no ex-ministro um advogado que considerava "fascinante enfrentar o
Estado", como registrou em seu artigo, ficou sozinho. Sob a alegação de
que seu contrato só iria até a primeira audiência em juízo, uma
porta-voz da banca de Thomaz Bastos, sem dúvida uma das mais rentáveis
do País, informou secamente, nesta terça-feira 31, que ele não estava
deixando o caso.
Este momento é aquele em que Cachoeira mais precisa de um advogado. A
Thomaz Bastos, na confidencialidade das conversar com o defensor, é de
se acreditar que muitos argumentos contrários às acusações de que ele é
alvo tenha sido desfiados. Por este contato, e por todo o noticiário de
mídia, não havia como o ex-ministro da Justiça não saber exatamente, e
nos mínimos detalhes, com quem estava lidando. Cachoeira tornou-se
famoso não apenas pela exploração de jogos ilegais, mas igualmente por
fabricar dossiês, espionar, gravar, imiscuir-se na imprensa, traficar
influência no Estado, corromper e dissimular. À volta de sua figura, no
tempo em que está na cadeia, duas mortes ligadas ao caso já ocorreram –
em Brasília, num cemitério, e nos arredores de Goiânia. Enquanto assumiu
a postura, ditada pelo advogado, do "nada a declarar", Cachoeira só se
complicou e, agora, já deve estar informado que também sua mulher
Andressa Mendonça se enredou nas garras da Justiça, ao segundo o juiz
federal Alderico Rocha, tentar chantegeá-lo com um dossiê supostamente
encomendado pelo marido ao jornalista Policarpo Jr.. Esse material seria
publicado nas páginas da revista Veja, com quem Cachoeira tem longo
histórico como informante de Policarpo, caso o magistrado não concedesse
um alvará de soltura a Cachoeira.
É praticamente impossível, para quem acompanha o caso, acreditar na
versa dada pelo escritório de Thomaz Bastos, segundo a qual o acordo
entre ele e Cachoeira só teria vigência até a primeira audiência em
juízo. Apenas para isso foram cobrados honorários de R$ 15 milhões, com a
primeira parcela paga antes de qualquer gesto jurídico? Neste caso,
Thomaz Bastos não seria mais o advogado mais caro do Brasil, mas sim o
"muito mais caro". Causas desse tipo não custam tanto dinheiro junto a
advogados famosos. Nesse mercado, os honorários poderiam ser, e ainda
assim bem pagos, de cerca de 10 vezes menos. O custo de Thomaz Bastos
está em seu passado de ex-ministro, de advogado brilhante, de sua
influência nos meios jurídicos. O que Cachoeira comprou, o Dr. Márcio
vendeu, mas resolveu agora não entregar. Existe mesmo ética em alguma
das etapas dessse processo?
Abaixo, o artigo de Márcio Thomas Bastos com sua defesa ao direito de
defender Carlinhos Cachoeira, o cliente que hoje ele abandonou:
Advogado precisa de liberdade para defender liberdade
Por Márcio Thomaz Bastos
Artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo desta terça-feira (29/5)
Em 1956, solicitador acadêmico — o equivalente de então de estagiário —, comecei a advogar.
Exerci a atividade ininterruptamente, de forma intensa, conquanto
modesta, até 2002. Parei em 2002 e assumi, extremamente honrado, o
Ministério da Justiça, no governo Lula, onde fiquei por 50 meses.
Fiz uma quarentena, que não me era obrigatória, até final de 2007,
quando voltei a me dedicar ao meu verdadeiro ofício, a prática legal. Ou
seja, para terminar esta exposição cheia de datas, de 1956 a 2012 (56
anos) fui ministro por quatro anos. Os outros 52, devotei-os à
advocacia.
Também servi à profissão como dirigente da OAB-SP e da OAB nacional.
Na vida profissional, alguns momentos me orgulharam muito: as Diretas
Já, a Constituinte, o julgamento dos assassinos de Chico Mendes, a
fundação do Instituto de Defesa do Direito de Defesa e muitas centenas
de defesas que assumi, tanto no júri como no juiz singular.
No Ministério da Justiça, a reestruturação da Polícia Federal, a
construção do Sistema Penitenciário Federal, a reforma do Judiciário, a
campanha do desarmamento, a reformulação da Secretaria de Direito
Econômico, a implantação do Sistema Único de Segurança Pública, o
pioneiro Programa de Transparência, a demarcação da terra indígena
Raposa Serra do Sol e a fundação da Força Nacional de Segurança Pública.
Foram duas fases bem distintas e demarcadas. Numa, o serviço público,
trabalho balizado sob o signo de duas lealdades que nunca colidiram: às
instituições e à Presidência.
Noutra (advocacia e OAB), primeiro a luta pelo estabelecimento de um
Estado de Direito; depois, a prática profissional, que procurei marcar
pelo respeito à ética, ao estatuto da OAB, às leis e, principalmente, à
Constituição brasileira, entre cujos dogmas fundamentais estão
assegurados o direito de ampla defesa, o devido processo legal, o
contraditório, a licitude das provas, a presunção de inocência e, de
forma geral, a proibição dos abusos.
Durante essa longa trajetória de advogado que vota no PT — não de
petista que advoga —, tive muitas oportunidades de representar clientes
vistos como inimigos figadais do partido. (Não cito nomes, para
preservá-los.) Nenhum foi recusado por isso.
Desse modo, salvei minha independência como defensor, nunca a
alienando a quem quer que fosse. A liberdade do advogado é condição
necessária da defesa da liberdade.
Assim como representei centenas de clientes dos quais nunca recebi
honorários, trabalhei para muitos que puderam pagar, alguns ricos, entre
pessoas físicas e empresas.
Agora que aceitei representar, no campo criminal, o senhor Carlos
Augusto Ramos, apelidado de Cachoeira, surgem comentários sobre a minha
atuação, estritamente técnica.
Fora os costumeiros canibais da honra alheia — aos quais não dou
atenção nem resposta —, pessoas que parecem bem intencionadas questionam
se eu poderia (ou deveria) ter me incumbido dessa defesa, ou porque fui
Ministro da Justiça, ou então porque sou ligado ao PT e ao
ex-presidente Lula, ou, ainda, "porque não tenho necessidade de fazer
isso".
A todas essas dúvidas, a resposta é negativa. Nada me proíbe, nesta
altura da vida — como nunca antes, à exceção do tempo do serviço público
— de assumir a defesa de alguém com quem não me sinto impedido, legal,
moral ou psicologicamente, cobrando ou não honorários.
Entre tantos casos importantes em que venho trabalhando, dois
chamaram muito a atenção pública: esse e o das cotas na UnB. No
primeiro, estou recebendo honorários; no segundo, trabalhei pro honorem,
ou seja, sem nenhuma remuneração.
Em matéria criminal, aumenta a responsabilidade do advogado, nos
termos do nosso código de ética: "É direito e dever do advogado assumir a
defesa criminal, sem considerar a sua própria opinião sobre a culpa do
acusado". Porque, como diz Rui Barbosa, indo nas raízes da questão:
"Quando quer e como quer que se cometa um atentado, a ordem legal se
manifesta necessariamente por duas exigências, a acusação e a defesa,
das quais a segunda, por mais execrando que seja o delito, não é menos
especial à satisfação da moralidade pública do que a primeira. A defesa
não quer o panegírico da culpa ou do culpado. Sua função consiste em
ser, ao lado do acusado, inocente ou criminoso, a voz dos seus direitos
legais."
O fascinante da profissão é o seu desafio. Enfrentar o Estado — tão
provido de armas, meios e modos de atingir o acusado — e ser, ao lado
deste, a voz de seus direitos legais.
Há 12 anos, escrevi neste mesmo espaço um texto com o mesmo título:
"Em defesa do direito de defesa". Não esperava ser convidado a escrever
outro, sobre o mesmo tema, depois de tantos avanços institucionais que o
Brasil viveu de lá pra cá.
Márcio Thomaz Bastos é advogado e foi ministro da Justiça (2003-2007).