“Creio que vivemos em um momento de reaquecimento da política, que volta às ruas, se desencastelando dos espaços institucionais” (Luana Xavier Pinto Coelho)
Instituto Humanitas Unisinos
Entrevista especial com Luana Xavier Pinto Coelho
Há sete meses da realização do mundial de futebol no Brasil, as manifestações de rua que marcaram o outono quente no país parecem ter dado uma trégua ao fim do ano.
Entretanto, a julgar pela remobilização massiva dos movimentos
sociais, o próximo ano tende a ser novamente palco de manifestações,
ainda mais considerando que 2014 será um ano de eleições presidenciais.
“A reação de governos/partidos a possíveis manifestações e atos públicos
terá relação direta com a possibilidade de terem ganhos
político-eleitorais. Haverá, portanto, mais uma vez, a disputa por
sentido das lutas das ruas, no caso de se reproduzir novamente o levante
popular de junho de 2013. Neste cenário, contudo, é difícil prever como
será o ano de 2014”, avalia Luana Xavier Pinto Coelho, assessora jurídica da ONG Terra de Direitos, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Na opinião de Luana, a realização da Copa do Mundo
está garantida, haja vista o investimento do governo para a realização
do evento. “O saldo negativo que poderemos esperar neste caso é que os
governos vão querer garantir que a Copa ocorra de qualquer forma, sendo
que isso significa uma violenta e truculenta repressão policial,
monitoramento de movimentos e redes sociais, ações de terrorismo de
Estado somente vistos no período da ditadura militar brasileira, para
evitar as grandes manifestações”, sustenta.
Luana Xavier Pinto Coelho, advogada, especialista em Direito Constitucional e mestre em Cooperação Internacional e Desenvolvimento Urbano pela Technische Universität Darmstadt (Alemanha). É assessora jurídica da ONG Terra de Direitos no programa "Direito à Cidade".
IHU On-Line – Qual é o cenário político-social brasileiro há cerca de sete meses da realização da Copa do Mundo no país?
Luana Xavier Pinto Coelho - O cenário atual é dos
mais complicados possíveis. Creio que há tempos o país não vive um
cenário tão difícil de compreender e também de contrapor. Viveremos no
próximo ano um megaevento internacional, que chamará a atenção de todo o
mundo para o país, o que coloca a oportunidade de expor governos e
corporações, por suas atuações violadoras de direitos humanos. Por outro
lado, neste mesmo ano teremos eleições presidenciais, de governos dos
estados e parlamentos federais e estaduais. Ter uma Copa do Mundo no Brasil
em ano de eleições torna o cenário político-social mais complexo de ser
analisado, uma vez que os diferentes coletivos vão, certamente, pautar
suas atuações também visando consequências eleitorais.
Não se pode ignorar, ainda, neste contexto, o reflexo das jornadas de junho
nos diversos coletivos e movimentos populares, que voltaram a acreditar
nas ruas, na resistência e no enfretamento como forma de luta por
direitos. Creio que vivemos em um momento de reaquecimento da política,
que volta às ruas, se desencastelando dos espaços institucionais.
Da mesma forma, a reação de governos/partidos a possíveis
manifestações e atos públicos terá relação direta com a possibilidade de
terem ganhos político-eleitorais. Haverá, portanto, mais uma vez, a
disputa por sentido das lutas das ruas, no caso de se reproduzir
novamente o levante popular de junho de 2013. Neste cenário, contudo, é
difícil prever como será o ano de 2014.
IHU On-Line – Qual o papel dos Comitês Populares da Copa no atual contexto?
Luana Xavier Pinto Coelho - Os Comitês Populares
tiveram um trabalho central na sistematização e difusão de informação
sobre as violações de direitos que vêm ocorrendo nas cidades sede com o
lançamento de dossiês. Da mesma forma, os comitês auxiliaram a dar
visibilidade à luta de comunidades atingidas, pois como uma articulação
formada por diferentes sujeitos e coletivos, impulsionou um movimento
que fortaleceu as reivindicações neste período.
Acho que os comitês irão continuar com os processos de denúncias e
nos processos de resistência dos atingidos, em especial com a crítica
contundente à Fifa como uma corporação e ao modelo privatista e elitista de copa do mundo imposto por ela.
Contudo, a reflexão sobre a Copa do Mundo e seus
impactos negativos no país já não é privilégio dos Comitês Populares da
Copa, inúmeros coletivos, grupos, movimentos e indivíduos já estão se
posicionando criticamente a este megaevento, inclusive prevendo
manifestações e protestos com agendas próprias.
IHU On-Line – Pode-se considerar que a Copa do Mundo no Brasil está ameaçada? Por quê?
Luana Xavier Pinto Coelho – Acho difícil. Foi um
investimento muito grande dos governos, de grandes corporações e da Fifa
para realizar este megaevento, portanto creio ser muito difícil
impedir. Além disso, o futebol é um esporte popular, e o mundo inteiro
espera por este evento. O saldo negativo que poderemos esperar neste
caso é que os governos vão querer garantir que a Copa
ocorra de qualquer forma, sendo que isso significa uma violenta e
truculenta repressão policial, monitoramento de movimentos e redes
sociais, ações de terrorismo de Estado somente vistos no período da
ditadura militar brasileira, para evitar as grandes manifestações. É
lastimável que uma democracia popular como a nossa, em um momento como
este, mostre sua face mais autoritária e truculenta para garantir lucros
de capitalistas privados.
IHU On-Line – Como podemos entender a relação entre a União e
a Fifa? Que tipos de ações do Estado são ilustrativos dessa comunhão de
interesses?
Luana Xavier Pinto Coelho – O Estado Brasileiro aceitou, sem maior resistência, todas as imposições da Fifa,
inclusive aquelas que são contrárias à legislação nacional e à
Constituição, numa afronta à soberania do país. Para citar algumas: a
zona de exclusão imposta pela Fifa é inconstitucional,
primeiramente porque é princípio constitucional a livre iniciativa, ou
seja, o Estado não pode aceitar – quanto menos impor – regimes de
monopólio; da mesma forma é inconstitucional e viola direitos humanos a
restrição de acesso de parte da população a espaços públicos, que são as
ruas, praças e demais equipamentos públicos presentes no raio da zona
de exclusão; o financiamento público de um evento privado sem
contrapartida também é ilegal e constitui improbidade administrativa –
nos discursos iniciais o governo dizia que não haveria recursos públicos
investidos na Copa do Mundo e agora, após alguns anos, os números são chocantes. Para piorar, o modelo imposto pela Fifa
de transformação dos estádios de futebol em “arenas multiuso” faz uma
distorção absurda: dinheiro público vai para a reforma dos estádios que
são, em seguida, passados à administração de concessionárias privadas
por períodos de 30 a 40 anos, sem que haja nenhuma contrapartida por
parte delas, ficando o legado para o povo da elitização e privatização
dos equipamentos de esporte nacionais. Uma pesquisa do Instituto Mais democracia já demonstrou “quem são os donos do Brasil” – por trás de todas as obras da Copa
estão majoritariamente quatro construtoras, e os interesses destas e o
interesse do Estado já são algo em que não há qualquer dissociação.
Vivemos, como diz Raquel Rolnik, em um neoliberalismo de Estado.
IHU On-Line – Quais são os principais avanços que as
competições internacionais trarão ao Estado brasileiro e quais são os
principais limites? Haverá legado? Qual?
Luana Xavier Pinto Coelho – Não consigo ver avanços para o Estado Brasileiro decorrentes das competições internacionais. Penso que o legado da Copa
já está traçado: sobre-endividamento de estados e municípios, perda da
democracia, criminalização de movimentos sociais, terrorismo de Estado,
privatização de espaços públicos e equipamentos de lazer, elitização do
futebol, higienização das cidades, remoções forçadas, e a lista continua
longa e desastrosa. O legado anunciado de obras de infraestrutura e a
possibilidade de atração de investimentos já têm se provado uma grande
falácia. A maioria das obras de infraestrutura de mobilidade, que
poderiam beneficiar as cidades, foram retiradas das matrizes de
responsabilidade, ficando aquelas obras que se direcionam mais a
infraestrutura de esporte (ligar aeroportos e rodoviárias aos estádios
de futebol). Inúmeros estudos já apontam que não há atração de
investimentos com o megaevento, muito menos aquele que conseguirá pagar a
conta que ficará para os municípios (considerando a exceção alarmante
de endividamento de municípios a 50%).
IHU On-Line – Nas últimas três semanas, quatro trabalhadores morreram
(dois em São Paulo, na Arena Corinthians, e dois em Manaus, na Arena
Amazônia) nas obras dos estádios da Copa, sem contar outras violações
trabalhistas. Em que medida isso macula a imagem dos jogos perante a
população em geral?
Luana Xavier Pinto Coelho – O ritmo de trabalho
imposto aos trabalhadores e as condições deste são desumanas. Alguns dos
trabalhadores que faleceram estavam em jornadas de trabalho ilegais e
sem descanso semanal. Infelizmente a forma como tais eventos são
veiculados na grande mídia não permite uma reflexão aprofundada entre as
tragédias e as imposições da Fifa para o país. Penso que há pouca reflexão entre as fatalidades e uma possibilidade de pensar criticamente a Copa do Mundo no país.
IHU On-Line – Circula na Internet um vídeo que denuncia uma
suposta fraude no sorteio dos grupos da Copa do Mundo, que ilustra certo
desgaste da imagem da Fifa. Essa desconfiança seria reflexo de uma
visão mais crítica da população em relação ao mundial?
Luana Xavier Pinto Coelho – A mensagem que veicula
no vídeo reflete uma crítica que sempre permeia os campeonatos
esportivos acerca da desconfiança dos descontentes com resultados dos
campeonatos com a compra de jogadores, lobby dos
grandes clubes/países. Mas não sei até que ponto esta desconfiança à
credibilidade da Fifa enquanto organizadora dos jogos permite uma
reflexão mais ampla sobre a entidade como uma corporação que usa o
megaevento para obtenção de lucro para si e para seus patrocinadores e
como violadora de direitos humanos. Creio que toda crítica neste momento
é positiva, ajuda a manchar a imagem da Fifa,
e temos que acreditar que nossa população irá compreender a dimensão
dos impactos negativos que ficarão de “legado” para o país.
IHU On-Line – Como avalia a indicação da Fifa para a pior empresa do mundo, conforme votação aberta na Internet?
Luana Xavier Pinto Coelho - A Fifa se apresenta como
uma fundação, sem fins lucrativos, mas os números têm mostrado que seus
lucros nas últimas copas ultrapassam a casa de um bilhão de reais.
Penso que a simples aceitação da Fifa pela Public Eye já foi uma
vitória, em trazer a imagem da Fifa como uma corporação. A entidade
também sempre tenta se esquivar das denúncias de violações de direitos
humanos relacionadas às obras da Copa, dizendo que seria
responsabilidade do Governo a forma como o megaevento é preparado. A
nomeação da Fifa, mais uma vez, relaciona todas as violações diretamente
a esta corporação, que se alia aos governos, usa o apelo popular ao
futebol, para promover gastos exorbitantes, favorecer seu pequeno grupo
de patrocinadores e garantir seu bilhão em lucro.
IHU On-Line – Na sua opinião, o clima de ufanismo em relação à
Copa do Mundo arrefeceu porque estamos relativamente longe da
realização dos jogos ou por conta de uma posição mais crítica da
sociedade?
Luana Xavier Pinto Coelho - Creio que as mobilizações de junho foram fundamentais para disseminar esta reflexão mais crítica acerca dos jogos da Copa do Mundo. Com as multidões na rua, trazendo inclusive críticas à Copa da Fifa,
não havia como a mídia ignorar. Contudo, penso que o apelo ufanista, a
produção de propaganda neste sentido será intensificada no momento
próximo aos jogos. Será difícil prever como será a reação das pessoas em
junho e julho, quando a mídia certamente intensificará a abordagem de
festa e celebração, assim como foi sentida no dia da transmissão do
sorteio das chaves.
IHU On-Line – Qual a perspectiva para os próximos meses?
Luana Xavier Pinto Coelho - Creio que os próximos
meses exigirão dos movimentos populares, dos comitês e demais coletivos
uma atuação direta e efetiva na produção de contrainformação. Mais do
que nunca será preciso fazer o contraponto entre o “país da festa e do
futebol” e as violações de direitos pela Fifa. Assim, a
perspectiva é que se intensifiquem as campanhas que divulguem todas as
atrocidades cometidas para preparar este megaevento.
Por outro lado, o Estado também se prepara e, neste sentido, podemos
também esperar uma atuação cada vez mais violenta e arbitrária das
polícias e governos estaduais (secretarias de segurança pública), que
irá demandar uma atuação coordenada de diversos atores para, mais uma
vez, denunciar a perigosa perda da democracia e liberdade dos
brasileiros. Exemplo disso é o andamento adiantado no Congresso Nacional da discussão de tornar o “terrorismo” um crime.
Isto seria a morte da liberdade de expressão e manifestação no Brasil, como um dos mais tristes e indefensáveis legados da Copa do Mundo.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Luana Xavier Pinto Coelho - É importante acrescentar que o modelo de cidade que se descortina com as obras e prioridades da Copa do Mundo não nasce com a Fifa
ou com o megaevento no Brasil, é um modelo que já vinha se instalando
nas cidades brasileiras, um modelo de produção capitalista do espaço,
que somente se intensifica, se exponencializa, com a vinda de um
megaevento que traz grandes oportunidades para os empreendedores
imobiliários e para as grandes construtoras. Mas não podemos esquecer
que os megaprojetos já estão em curso no país antes da Copa
e continuarão para além dela, nos obrigando a fazer um esforço conjunto
em repensar que modelo de cidade queremos e se permitiremos o abandono
completo do modelo de cidade democrático e igualitário delineado no
Estatuto da Cidade.
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