quinta-feira, 31 de julho de 2014

A Ficha Limpa é dura, mas estica?


A intenção da Lei do Ficha-Limpa foi e é de que qualquer gestor da coisa pública que tenha incorrido em ato de improbidade (desonestidade) administrativa, de forma e conteúdo tão grave que tenha sido condenado à suspensão dos seus direitos políticos, por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, não possa ocupar cargo eletivo, por um período de 8 anos. Pronto! 





 A Ficha Limpa é dura, mas estica?

 


Para fins de inelegibilidade, pelo que defende o advogado Paulo Lemos, não interessa se dinheiro público “foi parar” em lugar incerto e não sabido – quiçá, por ter se perdido ao vento fraco ou derretido ao sol forte de Cuiabá/MT, por exemplo.









POR PAULO LEMOS



Segundo alguns juristas, para se enquadrar na Lei da Ficha Limpa, é preciso que haja nas condenações do candidato: “o dolo; a sanção de suspensão dos direitos políticos, e condenação por ato de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito.”

Sem qualquer demérito à capacidade e à motivação desses estudiosos do Direito Eleitoral, sirvo-me do direito constitucional de, mais uma vez, vir à público discordar do entendimento propalado e reiterado por eles na imprensa; sendo que desta vez, com foco em outro ponto de vista, sem elidir o que anteriormente defendi.

Contudo, por dever de lealdade ao que está posto e exposto no mundo jurídico hoje, em especial na jurisprudência do TSE, de 2012 para cá, em vários julgados, é preciso reconhecer que a tese supramencionada e refutada aqui encontra-se em harmonia com essa produção jurisprudencial em série.

Sou, portanto, voto vencido na realidade, todavia, com esperança de mudança dessa realidade, ante as simplórias e concisas idéias doravante defendidas.

Enfim, apesar de ser minoria no TSE, é importante destacar que existe também precedente em sentido contrário à tese descrita no primeiro parágrafo deste artigo, sendo ele do ex-ministro Arnaldo Versiani.

Nessa mesma linha, notáveis e consagrados doutrinadores – dentre eles, José Jairo Gomes -, advogam a tese de que não é razoável exigir a configuração cumulativa de todas as possíveis consequências do ato de improbidade, ou seja, de lesão ao erário, mais enriquecimento ilícito do agente público responsável pelo ato de improbidade administrativa.

Para mim, parece lógico – e o direito não pode conduzir ao absurdo, como disse alhures Rui Barbosa – que os elementos caracterizadores da causa de inelegibilidade prevista na alínea “l” do artigo 1° da LC 64/90, mediante alteração da LC 135/10, são: ato doloso de improbidade administrativa; e a sanção de suspensão dos direitos políticos.

Porquanto que, a intenção da Lei do Ficha-Limpa no caso da alínea em epígrafe, foi e é de que qualquer ex-gestor ou gestor atual da res pública, que tenha incorrido na prática de ato de improbidade (desonestidade) administrativa, ante deliberada intensão de promover a conduta reprovável (dolo), de forma e conteúdo tão grave que tenha sido condenado à suspensão dos seus direitos políticos, por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, não possa ocupar cargo eletivo, por um período de 8 anos. Pronto!

Basta levar em consideração a justificativa e fundamentos jurídicos e sócio-históricos da Ficha Limpa, tal como no amplo e notório apoio popular que recebeu do início ao fim, para livremente concluir pela correição do raciocínio jurídico contemplado acima.

Quando o referido dispositivo cita as igualmente nefastas consequências de lesão aos cofres públicos, ou enriquecimento ilícito, ele apenas repete as duas hipóteses da Lei de Improbidade que, juntas ou solitariamente, uma vez aferido o dolo, podem demandar a declaração de suspensão dos direitos políticos do cidadão faltoso com os predicados necessários para gerir o dinheiro público, entre eles, o da moralidade administrativa.

Então, em palavras mais simples, o que importa é constatar se houve ou não malversação dos recursos públicos, por vontade consciente do autor dos fatos, em prejuízo do interesse público da sociedade.

Obviamente que, independente se o agente público emitiu ou não recibo e/ou fez ou não a confissão de que os recursos tenham sido incorporados ao seu patrimônio particular.

Para fins de inelegibilidade, também não interessa se dinheiro público “foi parar” em lugar incerto e não sabido – quiçá, por ter se perdido ao vento fraco ou derretido ao sol forte de Cuiabá/MT, por exemplo.

O que interessa é se esse ato de improbidade, praticado mediante dolo, foi suficientemente capaz para lesar o erário e consequentemente prejudicar o bom e correto destino dos recursos públicos para promover programas e ações, políticas públicas, em benefício da população.

A Ficha Limpa não é, como já pronunciou o STF, lei de natureza penal. Ela é sim uma lei de natureza cível, que tão somente tem o escopo de proteger a sociedade, não de condenar o ficha-suja.

Portanto, não interessa se o dinheiro foi ou não parar no bolso do ficha-suja, ou sabe-se lá onde, mas que o dinheiro público tenha sido desviado de sua finalidade originária, para quaisquer fins não justificáveis, passíveis de levar alguém a ser condenado por improbidade a administrativa, em decisão colegiada ou transitada em julgado.

É uma pena, depois de toda fé e esperança que o povo brasileiro depositou democraticamente sobre a Lei da Ficha Limpa, testemunhar agora o espírito dela, que é o espírito do próprio povo, ser aniquilado, por uma interpretação estreita e reducionista da letra fria e morta da lei, tendo como pretexto o embate de regras gramaticais de português, como de encontrar o significado da partícula “e”, se de conjuntiva e/ou disjuntiva, ao invés de se preocupar em zelar pelo significado histórico e social da lei como um todo.

Rasgam-se, assim, os livros! Rasgam-se os sonhos da cidadania!

Esse debate descolado da ratio legis, da razão da lei, não faz qualquer sentido para o homem médio-comum da sociedade.

Na verdade, esse tipo de tratamento dado à lei, queiram ou não assumir, somente aumenta a convicção de que tudo termina em pizza, a sensação de impunidade e a imagem internacional de que o Brasil é o país da “folia”.

Agora, ao final, tentando pegar o fio da meada da tese de quem pretende jogar a Lei da Ficha Limpa ao ostracismo, para não dizer no lixo, sem me apegar à lorota do entrevero gramatical invocado por aqueles que sempre foram contra essa vitória da cidadania (Ficha Limpa), veio-me à mente a possibilidade de estarem utilizando como método implícito de intepretação jurídica, depois de negar “Hermes” e mantê-lo fora dessa discussão, o seguinte raciocínio:

“Para os pobres, é dura lex, sed lex. A lei é dura, mas é a lei. Para os ricos, é dura lex, sed latex. A lei é dura, mas estica.” (Fernando Sabino)

Paulo Lemos é professor, palestrante, articulista político e advogado especialista em Direito Eleitoral em Mato Grosso.


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