Um dos idealizadores do Ficha Limpa, o magistrado fala de corrupção na política e no Judiciário, conta que já foi vítima de racismo e dá conselhos para os eleitores.
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Sergio Lima / Folhapress
ZH Notícias
por Cleidi Pereira
Inspirado pelo pai, mas sem nenhuma convicção. Foi desta forma que o juiz Márlon Reis
iniciou sua carreira no Direito, optando pelo curso na hora da
inscrição para o vestibular. Se faltou certeza no começo, sobrou coragem
nos anos seguintes. O magistrado chegou a viver períodos sob escolta
policial, devido a ameaças sofridas por conta do seu trabalho contra a compra de votos no Maranhão. Um dos idealizadores e redatores da Lei da Ficha Limpa, Márlon foi o primeiro juiz brasileiro a exigir, nas últimas eleições municipais, a divulgação antecipada dos nomes dos doadores de campanha, com base na Lei de Acesso à Informação.
A medida inspirou o Tribunal Superior Eleitoral, que a tornou obrigatória no país. O juiz é fundador e membro do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral
(MCCE), que reúne entidades para lutar pela reforma política por meio
de um projeto de lei de iniciativa popular. Crítico do financiamento
privado de campanhas, Márlon, 44 anos, despertou a ira de parlamentares
ao lançar em junho o livro O Nobre Deputado (Leya, 120 páginas), que
pretende mostrar como nasce, cresce e se perpetua um corrupto na
política brasileira. Nesta entrevista, o magistrado fala de corrupção na
política e no Judiciário, conta que já foi vítima de racismo e dá
conselhos para os eleitores.
Como evitar que maus políticos se perpetuem no poder?
A dificuldade é o sistema eleitoral, porque a base do nosso modelo
está assentada sobre uma permissividade grande quando se trata da origem
dos recursos de campanha. O modelo de financiamento é muito ruim.
Estabelece uma corrida pelo dinheiro, porque tem três defeitos que se
somam para isso. O primeiro é a possibilidade de doações empresariais,
inclusive com empresas que têm contrato com o governo. Além disso, não
há um teto de arrecadação fixado em lei. Por fim, o modelo de prestação
de contas é ruim, não permite à Justiça Eleitoral fazer a auditoria das
contas. Tudo isso se somou para compor um modelo baseado no dinheiro.
Então, as eleições se transformaram em uma corrida pelo dinheiro. É
difícil fiscalizar, pois o sistema contempla essa mercantilização da
política.
O Brasil tem uma das campanhas eleitorais mais caras do mundo, e a deste ano deverá ser uma das mais caras da história. Quais as consequências disso para a sociedade?
O comprometimento das futuras administrações e a composição dos
parlamentos. Esse impacto será sentido nas decisões dos futuros
governos, que levarão em conta, sim, a vontade dos financiadores. Temos
casos de empresas que conseguem eleger bancadas financiando candidatos
em praticamente todos os Estados. Com isso, formam-se grupos de apoio
parlamentar. É uma grave distorção, porque o objetivo do parlamento e do
governo é atender às necessidades da sociedade.
Em seu livro, O Nobre Deputado, o personagem Cândido Peçanha recebe uma “comissão” sobre o valor de emendas parlamentares e desvia verba de convênios para o caixa dois de sua campanha. Esse comportamento é regra ou exceção no Congresso?
Não sou capaz de afirmar. Entretanto, uma coisa é certa: há vários deputados eleitos com as práticas descritas no livro.
O que o levou a escrever um livro que pretende mostrar “como nasce, cresce e se perpetua um corrupto na política brasileira”?
O objetivo foi escancarar uma realidade que muitas vezes não é
percebida. As práticas mais grosseiras não são realizadas à luz do dia
nem estão submetidas a qualquer nível de transparência. Muitas são
desconhecidas da sociedade. Meu objetivo foi expor as vísceras do lado
obscuro da política brasileira. Essas pessoas não são políticos, são
usurpadores.
O presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves, que entrou com uma representação contra o senhor no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), disse que o livro “desestimula o exercício da cidadania”. O que o senhor diria ao deputado?
Diria que o que desestimula o exercício da cidadania é a prática da
corrupção, que é frequente no meio político. O livro se propõe a atacar
essa prática e, portanto, fortalece a democracia. O objetivo é dar
elementos para os verdadeiros democratas irem ao ponto certo, no que
toca a mudança de legislação para sufocar esses comportamentos. A reação
do presidente da Câmara deveria ser determinante para a abertura de um
canal no Congresso para estudar o que está ali. Só que ele decidiu
atacar quem estava revelando o problema. Isso é muito grave e
antidemocrático.
A reforma política é a mãe de todas as reformas?
Não há outra reforma. Todas as demais pautas devem ser suspensas até
que haja a reforma política. Quando falamos de reforma tributária,
educacional, das normas administrativas e muitas outras reformas
importantes que são reclamadas pela sociedade, todas estão comprometidas
pela baixa qualidade do parlamento, que, por sua vez, é determinada
pela baixa qualidade do sistema eleitoral brasileiro. Com eleições
mercantilizadas como as nossas, temos uma composição muito ruim do
Congresso Nacional, que desprestigia pautas importantes desde que não
tenham alguma relevância econômica.
O senhor defende o financiamento público de campanha, com a possibilidade de doações de pessoas físicas. Esse modelo não possibilitaria aumento do caixa dois?
Não, porque o caixa dois não é influenciado pelo modelo de
financiamento. O que faz com que ele exista é a falta de condições de
auditoria, de verificar as contas. O que precisamos para combater o
caixa dois é uma legislação que permita que a Justiça Eleitoral cumpra
seu papel de auditar as contas de campanha, o que se faz também com
leis. No nosso projeto de iniciativa popular, isso está muito bem
tratado.
Em 2011, Márlon e sua mulher, a juíza Ana Lucrécia, conversaram com Bono Vox sobre a Lei da Ficha Limpa. Foto: Arquivo Pessoal
Como o senhor avalia, às vésperas da eleição, o suposto esquema de propina envolvendo a Petrobras?
Ainda se sabe pouco sobre o que aconteceu. Mas fiquei muito
impressionado com as primeiras declarações, porque repetem muito do que
está dito no livro, muito do que colhi nas minhas pesquisas, sobre a
necessidade de se obter dinheiro ilegal para custear as campanhas
eleitorais. A tentação de adentrar o mundo da ilicitude para ter acesso a
recursos para campanhas afeta muito. Não é à toa que todos os grandes
partidos brasileiros se viram nos últimos anos envolvidos em escândalos
sempre relacionados ao tema do financiamento de campanha, e isso é culpa
do modelo.
Um marco na luta contra a corrupção eleitoral foi a aprovação, em 1999, da lei que possibilitou a punição pela compra de votos. Passados 15 anos, por que essa prática segue sendo tão comum no Brasil?
Temos uma matriz eleitoral baseada em interesses patrimoniais. As
eleições sempre foram vistas como momento de negócios, em que os
detentores de riquezas negociam com os chefes políticos locais o apoio
em troca de dinheiro e, por sua vez, esses chefes políticos negociam com
os eleitores por meio de presentes e mimos oferecidos a título da
compra de voto. Essa matriz cultural está impregnada no nosso sistema
eleitoral.
É algo histórico?
Sim, e é por isso que precisamos tanto mudar. Há uma máxima na
ciência política segundo a qual o sistema eleitoral molda o
comportamento político. Para mudar esse comportamento da compra de
votos, não basta criminalizar essa conduta. Não foi suficiente a
aplicação de uma lei extremamente eficiente que já foi responsável pela
cassação de mais de mil políticos desde 1999. Mesmo assim, não inibiu
porque o sistema continua sendo o mesmo. Além de um grande número de
punições, a Lei 9.840 serviu para mostrar como a compra de votos é um
fenômeno generalizado no país, não é localizado em rincões e regiões
pobres, como se imaginava. Se trata de uma postura diante da política,
que pouco tem a ver com a riqueza da região. A questão é cultural, por
isso temos de atacar o problema de duas formas: tanto na formação de uma
cultura para a democracia, o que pressupõe uma educação para os civis,
como também pela mudança profunda do sistema eleitoral que estimula essa
prática.
O senhor está satisfeito com a aplicação da Lei da Ficha Limpa?
Estou. Sempre imaginei a necessidade de cinco eleições, 10 anos, para
ela ser de fato compreendida, assimilada e bem aplicada pelos
tribunais. Mas algumas das medidas que eu imaginava que só mais na
frente estariam mais bem compreendidas pelo Judiciário já estão sendo
aplicadas. Na eleição passada, os números finais mostram que, dos que
tentaram concorrer mesmo sendo inelegíveis, 1,2 mil pessoas foram
definitivamente barradas. E, nestas eleições, o número já supera os 240,
e são eleições com muito menos candidatos.
Paulo Maluf e José Roberto Arruda foram barrados pela Lei da Ficha Limpa, mas recorreram e, por um período, continuaram em campanha. Como o senhor avalia essa situação?
Isso é uma falha que não é da Lei da Ficha Limpa. É uma falha da lei
das eleições, que deveria prever que o registro de candidatura teria de
ser julgado antes do início da campanha. Deveria haver um período
prévio, de dois meses, para se discutir, e apenas os que tivessem
registro concedido é que fariam campanha. Então, é uma falha da lei
eleitoral que gera essa perplexidade. Enquanto eles vão recorrendo,
seguem fazendo campanha.
O foro privilegiado para políticos tem razão de existir?
De maneira alguma. O foro privilegiado acabou se transformando em uma
fórmula de impunidade, porque os tribunais não têm aparelhamento
adequado para presidir ações originárias, ouvindo testemunhas, coletando
provas. Então, o foro privilegiado precisa ser revisto. Nas entrevistas
que fiz para o livro, ouvi que o mandato é muitas vezes buscado para
assegurar a impunidade. Em uma sociedade verdadeiramente democrática, as
instituições deveriam ser mais intolerantes com os mandatários, mas
estamos em uma sociedade que é condescendente com os erros de quem
deveria servir a sociedade.
Muitas vezes, o mesmo cidadão que acusa os políticos de serem todos corruptos não pensa duas vezes antes de furar fila, roubar sinal da TV a cabo ou comprar produtos falsificados. O pensamento do brasileiro também precisa de uma reforma?
Com certeza. Acho que há necessidade de incluirmos conteúdos mais
relacionados à educação para a democracia nas atividades escolares, mas
não da forma como isso acontecia na ditadura militar. Tratar de maneira
crítica, aprofundada, estimulando a participação dos indivíduos.
Precisamos fazer isso. Nossas crianças saem das escolas com volume
baixíssimo de informações sobre o universo da política, que é o universo
que determinará suas vidas. Precisamos, sim, de muito mais educação de
qualidade para o exercício da democracia.
Durante o debate para aprovação da Lei da Ficha Limpa, Márlon participou de atos ao lado de artistas. Foto: Ivaldo Cavalcante / Câmara dos Deputados
A corrupção está no DNA do brasileiro?
Não. Acho que o brasileiro tem a percepção da gravidade e está
disposto a se mobilizar. Já vi isso em algumas oportunidades,
especialmente na conquista da Lei da Ficha Limpa, que não existiria se
não fosse a pressão da sociedade brasileira. O Congresso não queria
aprovar a lei. Inclusive, o senador Pedro Simon deu essa declaração em
público, de que a lei não teria sido aprovada se não fosse a pressão
popular. Acho que corrupção não está no DNA. Pelo contrário, é algo
superável. Podemos superar isso.
O que o levou a cursar Direito e a seguir carreira na magistratura?
Foi influência familiar. Meu pai era advogado, se formou tardiamente,
após os 40 anos. Eu era muito ligado a ele, e nas minhas férias – eu
não morava na mesma cidade que ele – sempre acompanhava o trabalho dele,
e isso me estimulou a escolher a carreira jurídica. Mas tenho que fazer
uma confissão: só fiz a escolha na hora da inscrição para o vestibular.
Não tinha nenhuma convicção.
O senhor já foi ameaçado alguma vez?
Já cheguei a passar um bom tempo sob escolta da Polícia Militar e da
Polícia Federal, em virtude de ameaças sofridas por causa do trabalho
contra a compra de votos no interior do Maranhão, devido a decisões
judiciais e posturas como juiz eleitoral. Cheguei a receber telefonemas
de pessoas dizendo que sabiam onde estava minha filha de 10 anos, que
não estava comigo na cidade. Isso foi entre 1999 e 2001, um período
muito crítico, em que eu estava realizando os comícios de cidadania
contra a compra de votos.
Como o senhor vê a questão do racismo no Brasil? Já foi vítima de preconceito?
Já fui vítima algumas vezes. Em uma delas, eu tentava adquirir um
computador em um grande shopping center de Teresina, no Piauí, e o único
vendedor que estava na loja se recusou a me atender, dizendo que eu não
teria condições de pagar. Foi um dia de muita revolta. Procurei
policiamento e não encontrei, mas eu tinha algum compromisso e não podia
ficar esperando. Já era juiz, sabia como agir, mas não consegui. Foi um
dia muito traumatizante para mim. Mas, em outras ocasiões, também já
recebi tratamento diferenciado em função da cor. O que nós precisamos é
assumir esse problema como um problema real. O racismo não é algo que se
resolva fingindo que não existe.
O senhor concorda que, no Brasil, há tolerância com os crimes de colarinho branco e que só pobre vai parar de fato na cadeia?
As estatísticas das condenações criminais não deixam dúvida sobre
isso. Segundo dados a que tive acesso recentemente, 0,1% da população
carcerária brasileira é integrada por pessoas que praticaram crimes
contra administração pública. Por outro lado, temos uma grande maioria
da população carcerária que praticou pequenos crimes contra o patrimônio
privado.
A corrupção também afeta o Judiciário?
Afeta, mas de forma diferente. A política é mais afetada pela
corrupção do que o Judiciário pela forma de composição, porque o sistema
eleitoral, que estimula a corrupção, é o critério de escolha dos
ocupantes do Legislativo e do Executivo. Isso não acontece com o
Judiciário. Entretanto, há, sim, presença minoritária, muito pequena,
mas extremamente grave. O Judiciário não pode ter falhas nesse campo,
porque é o alicerce de toda institucionalidade. Se as pessoas não
acreditam no Judiciário, fica difícil acreditar nas demais instituições.
O que existe no Judiciário são comportamentos individuais. A solução
para uma efetiva punição aos juízes que praticam corrupção passa pela
utilização de mecanismos judiciais mais céleres que permitam a perda da
vitaliciedade nesses casos.
O senhor acha justo que, em um país onde milhões de pessoas sobrevivem com menos de R$ 70 por mês, juízes recebam salários que, somando as chamadas “vantagens eventuais”, ultrapassam o teto do funcionalismo, que é de cerca de R$ 30 mil?
Os juízes integram uma carreira que, como nenhuma outra, não pode ter
complementação de renda. Têm que ser pessoas extremamente dedicadas a
uma só atividade. Os juízes têm uma série de restrições, que os colocam
de uma maneira diferente de qualquer outro profissional. Por conta do
tamanho das responsabilidades, é importante que sejam bem remunerados. O
Judiciário, com salários baixos, deixa de ser um atrativo para as
pessoas mais competentes, porque o meio jurídico tem várias carreiras
melhor remuneradas.
O juiz viaja pelo país para divulgar o livro O Nobre Deputado, lançado em junho pela editora Leya. Foto: Quique Garcia / AFP
Mas com o valor atual do salário, os magistrados realmente
precisam de benefícios como adicional por tempo de serviço ou auxílios
saúde, moradia, pré-escolar e alimentação?
Considero o salário bastante adequado, mas também não é justo que
haja um congelamento como estamos tendo há muitos anos. O correto é
extirpar toda a forma de agregado e fazer uma atualização pelo menos com
base nos índices de inflação.
O que o senhor pensa da democratização do Judiciário? Critérios políticos na indicação para cargos como o de ministro do STF não colaboram com a impunidade nos crimes de colarinho branco?
Há muita força do meio político na composição dos tribunais, e já
chegou a hora de se rever isso. No TSE, há dois advogados que não passam
sequer pelo crivo da OAB, que são escolhidos politicamente com a
palavra final dada pela Presidência da República. No STF, a escolha é
exclusivamente política. É preciso repensar isso, de maneira que se
possa aumentar o controle social sobre os escolhidos para compor os
tribunais. Deveria haver abertura, transparência e participação da
sociedade na definição dos componentes dessas cortes.
O senhor tem planos de ingressar na política?
Não, plano nenhum. Mas também não descarto. Nunca pensei nisso e sigo
muito feliz com minha atividade. Sou realizado naquilo que faço. Gosto
de estar na magistratura, de despachar normalmente na minha comarca e
das atividades complementares a que me dou direito, interferindo
positivamente, a meu ver, na realidade do meu país.
Que conselhos o senhor daria para que as pessoas escolham melhor seus candidatos?
As pessoas precisam dar mais atenção à política. O volume de
informação disponível para a escolha dos candidatos é grande, só que
normalmente as pessoas não levam em conta o que sabem, mas o que
entendem que mais lhe concederá benefícios. O conselho que eu daria é
para as pessoas se esquecerem dos seus objetivos e pensarem no futuro,
na coletividade, levando em conta o que sabem sobre os políticos do seu
Estado e da sua região. Não dá para votar em quem não merece. O eleitor
tem de escolher o candidato com melhor potencial, mesmo que aparente não
ter muita capacidade eleitoral. Porque a riqueza da campanha ou a
grandiosidade da propaganda não deve ser mais importante do que a
seriedade, a honestidade e a competência do candidato.
Fonte ZH Notícias
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