domingo, 26 de abril de 2015

Globo: 50 anos de manipulação e autoritarismo da 'vênus platinada'

Jornalistas contam como a emissora da família Marinho foi do golpismo à hegemonia conservadora para consolidar sua influência em todas as instâncias de poder do país.




por Luiz Carvalho e Vanessa Ramos

São Paulo – Hoje (26), a Rede Globo de Televisão, maior emissora do país, completa 50 anos de existência. Para os movimentos sociais que sairão às ruas Brasil afora, uma oportunidade ímpar de exercitar a reflexão sobre o papel que exerceu em meio século de vida.
Recentemente, a jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Ângela Carrato, apresentou um quadro bastante didático com 10 de fatos que marcaram a atuação de um grupo que concentra 60% do capital nos meios de comunicação no Brasil. Poderio só comparado à da Televisa, no México, país que também sente os efeitos negativos da ausência de democracia no acesso e distribuição da informação.
A visão de quem já fez parte do jornalismo global contribui decisivamente para esclarecer o que está por trás da "vênus platinada". O jornalista Luiz Carlos Azenha – que além da Globo trabalhou nas concorrentes SBT e Manchete e atualmente está na Record – diz que o já falecido dono da emissora, Roberto Marinho, não apenas fomentou o golpe militar de 1964, como se utilizou dele para fortalecer o monopólio.
"Por meio da Embratel, a ditadura criou, com dinheiro público, a rede física que interligou o território nacional. A Globo, gratuitamente, tirou proveito disso. A ditadura assentou a base material para o Jornal Nacional", explicou.
Além disso, o Código Brasileiro de Telecomunicações, aponta o jornalista, é uma "verdadeira selva" e a confusão burocrática faz com que não existam instrumentos modernos para monitorar e sancionar as concessões de rádio e TV, que são públicas.
Azenha, que trabalhou na Globo em dois períodos distintos: nos anos 1980 e no final dos anos 1990, relata ainda a experiência de quem viveu a cobertura de uma eleição. "Neste segundo período, quando fiz minha primeira e única cobertura de uma campanha presidencial pela Globo de São Paulo, notei a aplicação de dois pesos e duas medidas em algumas circunstâncias. Por exemplo, alguns profissionais se revoltaram com o fato de que a emissora repercutia as capas da revista Veja com reportagens contrárias ao PT, mas não fazia o mesmo quando as denúncias eram contra o PSDB. Por isso, fui encarregado de fazer uma reportagem que de certa forma comprometia um político tucano. Apesar de aprovada pela chefia em São Paulo, ela nunca foi ao ar", lembra.
Manipulações
O cenário narrado por Azenha é confirmado pelo também jornalista Rodrigo Vianna, que trabalhou durante 12 anos na emissora. Para ele, ao completar 50 anos, a emissora tenta apagar seu passado e reescrever a história.
"Acho 'esquizofrênico' a Globo querer agora parecer vítima da ditadura até porque, depois de defender a ditadura e crescer com o regime, há muito pouco tempo resolveu pedir desculpas. As Organizações Globo não só ajudaram a dar o golpe de 1964, como se beneficiaram e se consolidaram (como poder econômico) com ele", salienta.
Vianna foi demitido da emissora na véspera do primeiro turno das eleições de 2006, que acabaram levando o ex-presidente Lula ao segundo mandato. Ele era repórter e cobria a editoria de política e discordou do posicionamento 'manipulador' da Globo à época
Ali Kamel
Miguel do Rosário, autor do blog "O Cafezinho", foi condenado em fevereiro deste ano a pagar R$ 20 mil ao diretor do departamento de jornalismo da Globo, Ali Kamel. "Fiz uma matéria que criticava a Globo, mas que ele distorceu o sentido em sua acusação para torná-la uma questão pessoal", explica.
Rosário acredita que a falta de regulamentação do setor favorece o monopólio midiático. "Num regime capitalista liberal, onde não há regulação, prevalece o mais forte. E o mais forte, no caso, é a emissora que emergiu da ditadura como um monstro."
Desproporções
Apesar de iniciativas como a recente distribuição de um manual de conduta aos funcionários, com instruções como a proibição de usar o nome da Globo para obter vantagens ou a obrigação de ser imparcial, nem sempre as normas parecem prevalecer, como constadado nas últimas eleições.
Segundo dados do Manchetômetro, portal criado por pesquisadores da Universidade do Rio de Janeiro, entre 1º de janeiro e 9 de agosto do ano passado, o Jornal Nacional dedicou um total de uma hora e 22 minutos para dar notícias consideradas desfavoráveis à candidata Dilma Rousseff (PT), enquanto Aécio Neves teve 5 minutos e 35 segundos de notícias negativas no mesmo período.
Leia mais:

Em memória de uma vítima esquecida do mundo que a Globo ajudou a criar em 1964. 


 Dodora e seu sorriso invencível

Diário do Centro do Mundo




Uma figura feminina aparece na minha mente sempre que leio a respeito do papel da Globo no golpe de 1964.

Não a conhecia até recentemente, mas me apaixonei assim que a vi.

Ela estava num documentário sobre o golpe a que assisti no ano passado.

É um trabalho rústico, uma câmara e depoimentos. E é sublime como retrato de uma época sinistra.

O documentário foi gravado em 1971, no Chile. Os autores foram dois cineastas americanos – Haskell Wexler e Saul Landau — que estavam no Chile para entrevistar Allende.

Eles souberam que havia um grupo de exilados brasileiros com histórias de tortura e decidiram registrá-las com sua câmara. O grupo tinha sido trocado pelo embaixador da Suíça no Brasil.

Surgiria, como que por acaso, “Brasil, um relato da tortura”, um pequeno épico do cinema que não se curva aos poderosos. Eram talentosos os americanos. Haskell posteriormente receberia dois Oscars por trabalhos na área de fotografia de grandes produções de Hollywood.

É uma mulher que me fisga no filme, uma jovem médica que narra as barbaridades que ela e os companheiros sofreram nas mãos dos agentes da ditadura.

Ela é bonita, articulada, e pesquisando vejo que fascinou também os documentaristas americanos.
Ela tinha 25 anos na ocasião, e riu ao lembrar as torturas, que narrou meticulosamente. Parecia invencível diante das violências.

“Fui colocada nua numa sala com cerca de 15 homens”, disse ela. “Fui espancada e esbofeteada.”
Seu rosto bonito ficou, contou ela, completamente deformado, conforme queriam os algozes.

Durante a sessão puseram num volume ensurdecedor “música de macumba”, e ela lembrou que os torturadores pareciam “excitados, felizes” como se estivessem numa festa.

A certa altura, a agarraram pelos seios e puseram uma tesoura em seu mamilo. Pressionavam e soltavam, e ameaçavam extirpá-lo. Também diziam que iriam matá-la.

Uma das forças do vídeo é que os entrevistados mostram como eram as torturas, como o pau de arara. São reproduções realistas e assustadoras.

Comecei a ver, por sugestão de minha filha Camila, e não consegui parar em quase 1 hora de conteúdo extraordinário. Fiquei perturbado como há muito tempo não ficava.

E depois quis saber mais das pessoas. Particularmente dela: passados mais de quarenta anos, que estaria fazendo?

E então vem a parte triste. Como escreveu Machado de Assis em Dom Casmurro quando as coisas degringolam, pare aqui quem não quer ver história triste.

Maria Auxiliadora Lara Barcelos, este o nome daquela guerreira que comoveu aos cineastas e a mim. Dora ou Dodora, como a chamavam.

Ela não viveu para ver o fim do horror militar.

Pouco tempo depois, como Ana Karenina, se jogou sob as rodas de um trem. Ela estava com problemas psiquiátricos derivados da selvageria a que foi submetida, e tinha acabado de se consultar com seu médico.

Morava, então, em Berlim.

Dois anos depois de feito o documentário, Pinochet tomou o poder no Chile, e Dora teve que partir de novo.

Primeiro foi para a Bélgica, e depois para a Alemanha Ocidental. Era brilhante: passou em primeiro lugar entre 600 estrangeiros e conseguiu aprovação para complementar seus estudos de medicina na Universidade de Berlim.

Fiquei triste, quase enlutado, ao saber do que ocorreu com ela. Já imaginava entrevistá-la, e especulava sobre como ela estaria hoje. Conservaria vestígios da beleza sobranceira e altiva do passado?

Num voo mental, penso que se ela tivesse nascido na Escandinávia, hoje seria uma avó, cheia de histórias para contar aos netinhos. Fantasio-a de bicicleta em Copenhague, feliz entre pessoas que são felizes porque aquela é uma sociedade como prescreveu Rousseau: sem extremos de opulência e de miséria.

Mas ela nasceu e cresceu na terra da iniquidade, que combateu com coragem assombrosa e idealismo inexpugnável. Não há em sua fala vestígio de remorso por ter caminhado o caminho que escolheu.

Em Laura, o filme clássico de Preminger, o detetive se apaixona pela foto de uma mulher assassinada. Como que me apaixonei por Dora ao vê-la no documentário.

Fico tolamente satisfeito quando minha filha Camila me conta que, pesquisando, descobriu que Dilma prestara tributo àquela brasileira indomável.

Em fevereiro de 2010, quando o PT confirmou a candidatura de Dilma para a presidência da república, Dilma disse em seu discurso: “Não posso deixar de ter uma lembrança especial para aqueles que não mais estão conosco. Para aqueles que caíram pelos nossos ideais. Eles fazem parte de minha história. Mais que isso, eles fazem parte da história do Brasil.”

Dilma citou três pessoas. Uma delas era Dodora. “Dodora, você está aqui no meu coração.”

E no meu também.

E é nela que penso quando reflito sobre o papel da Globo no golpe.

E nela projeto todos os outros tombados.

A Globo ficará eternamente impune – rica e impune — pelos assassinatos que indiretamente promoveu ao abrir as portas para a ditadura?

Nem um miserável pedido de desculpas será endereçado à memória de Dodora?

Ninguém a protegeu em vida, que ela ceifou ao se atirar sob as rodas de um trem nas remotas terras germânicas.

E a opulência impeninente da Globo em seu conquentenário mostra que também na morte Dodora continua desprotegida.

Roberto Marinho virou bilionário com o mundo que ele se empenhou tanto por moldar, o das botas e das metralhadoras assassinas, e Dodora só conseguiu escapar de tudo sob as rodas de um trem.

Tinha 31 anos.



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