Diante dos riscos do fascismo, o desafio é confrontar o fascista com aquilo que para ele é insuportável: o outro. O instrumento? O diálogo, na melhor tradição filosófica atribuída a Sócrates. Talvez esse seja o objetivo do diálogo proposto pela filósofa Marcia Tiburi em seu novo livro, que tive o prazer de apresentar (o prefácio é do sempre excelente Jean Wyllys).
Conversar com um fascista: um desafio
Justificando
Por Rubens Casara
Juiz de Direito
Em Adorno, a ignorância, a ausência de reflexão, a identificação de inimigos imaginários, a transformação dos acusadores em julgadores (e vice-versa) e a manipulação do discurso religioso são, dentre outros sintomas, apontados como típicos do pensamento autoritário.
Pensem, agora, na naturalização com que
direitos fundamentais são afastados e violados no Brasil, na crença no
uso da força (e do sistema penal) para resolver os mais variados
problemas sociais, na demonização de um partido político (que, apesar de
vários erros, e ao contrário de outros partidos apontados como
“democráticos”, não aderiu aos projetos a seguir descritos), no
prestígio novamente atribuído aos “juízes-inquisidores”, nos recentes
linchamentos (inclusive virtuais), no número tanto de pessoas mortas por
ação da polícia quanto de policiais mortos e nos projetos legislativos
que:
a) relativizam a presunção de inocência;
b) ampliam as hipóteses de
“prisão em flagrante” em evidente violação aos limites semânticos da
palavra “flagrante” inscrita no texto Constitucional como limite ao
exercício do poder;
c) criminalizam os movimentos sociais com a desculpa
de prevenir “atos de terrorismo”;
d) impedem o fornecimento de
“pílulas do dia seguinte” para profilaxia de gravidez decorrente de
violência sexual e criminalizam médicos que dão informações para
mulheres vítimas de violência sexual;
e) eliminam o princípio
constitucional da gratuidade na educação pública, dentre outras
aberrações jurídicas.
Conclusão? Avança-se na escala do fascismo.
O fascismo recebeu seu nome na Itália,
mas Mussolini nunca esteve sozinho. Diversos movimentos semelhantes
surgiram no pós-guerra com a mesma receita que unia voluntarismo, pouca
reflexão e violência contra seus inimigos. Hoje, parece que há consenso
de que existe(m) fascismo(s) para além do fenômeno italiano ou, ainda,
que o fascismo é um amálgama de significantes, um “patrimônio” de
teorias, valores, princípios, estratégias e práticas à disposição dos
governantes ou de lideranças de ocasião (que podem, por exemplo, ser
fabricadas pelos detentores do poder político ou econômico, em especial
através dos meios de comunicação de massa), que disseminam o ódio contra
o que existe para conquistar o poder e/ou impor suas concepções de
mundo.
O fascismo possui inegavelmente uma
ideologia: uma ideologia de negação. Nega-se tudo (as diferenças, as
qualidades dos opositores, as conquistas históricas, a luta de classes,
etc.), principalmente, o conhecimento e, em consequência, o diálogo
capaz de superar a ausência de saber.
Os fascistas, como já foi dito, talvez
não saibam o que querem, mas sabem bem o que não suportam. Não suportam a
democracia, entendida como concretização dos direitos fundamentais de
todos, como processo de educação para a liberdade e de limites ao
exercício do poder. Essa mistura de pouca reflexão (o fascismo, nesse
particular, aproxima-se dos fundamentalismos, ambos marcados pela ode à
ignorância) e recurso à força (como resposta preferencial para os mais
variados problemas sociais) produz reflexos em toda a sociedade.
As práticas fascistas revelam uma
desconfiança. O fascista desconfia do conhecimento, tem ódio de quem
demonstra saber algo que afronte ou se revele capaz de abalar suas
crenças. Ignorância e confusão pautam sua postura na sociedade. O
recurso a crenças irracionais ou anti-racionais, a criação de inimigos
imaginários (a transformação do “diferente” em inimigo), a confusão
entre acusação e julgamento (o acusador – aquele indivíduo que aponta o
dedo e atribui responsabilidade – que se transforma em juiz e o juiz que
se torna acusador – o inquisidor pós-moderno) são sintomas do fascismo
que poderiam ser superados se o sujeito estivesse aberto ao saber, ao
diálogo que revela diversos saberes.
Diante dos riscos do fascismo, o desafio é
confrontar o fascista com aquilo que para ele é insuportável: o outro. O
instrumento? O diálogo, na melhor tradição filosófica atribuída a
Sócrates. Talvez esse seja o objetivo do diálogo proposto pela filósofa
Marcia Tiburi em seu novo livro, que tive o prazer de apresentar (o
prefácio é do sempre excelente Jean Wyllys).
Em "Como conversar com um fascista:
reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro" (Rio de janeiro:
Saraiva, 2015), a autora resgata a política como experiência de
linguagem, sempre presente na vida em comum, e investe nessa operação,
que exige o encontro entre o “eu” e o “tu”, apresentada como fundamental
à construção democrática. De fato, a qualidade e a própria existência
da forma democrática dependem da abertura ao diálogo, da construção de
diálogos genuínos – que não se confundem com monólogos travestidos de
diálogos – em que a individualidade e os interesses de cada pessoa não
inviabilizam a construção de um projeto comum, de uma comunidade fundada
na reciprocidade e no respeito à alteridade.
Ao tratar da personalidade autoritária,
dos micro-fascismos do dia-a-dia, do consumismo da linguagem, da
transformação de pessoas em objetos, da plastificação das relações, da
idiotização de parcela da população, dentre outros fenômenos
perceptíveis na sociedade brasileira, Marcia Tiburi sugere uma mudança
de atitude do um-para-com-o-outro.
Nos diversos ensaios deste livro, a
autora conduz o leitor para um processo de reflexão e descoberta dos
valores democráticos, bem como desvela as contradições, os preconceitos e
as práticas que caracterizam os movimentos autoritários em plena
democracia formal.
Mas, não é só.
Ao propor que a experiência dialógica
alcance também os fascistas, aqueles que se recusam a perceber e aceitar
o outro em sua totalidade, Marcia Tiburi exerce a arte de resistir.
Dialogar com um fascista, e sobre o fascismo, forçar uma relação com um
sujeito incapaz de suportar a diferença inerente ao diálogo, é um ato de
resistência. Confrontar o fascista, desvelar sua ignorância, fornecer
informação/conhecimento, levar esse interlocutor à contradição,
desconstruindo suas certezas, forçando-o a admitir que seu conhecimento é
limitado, fazem parte do empreendimento ético-político da autora, que
faz neste livro uma aposta na potência do diálogo e na difusão do
conhecimento como antídoto à tradição autoritária que condiciona o
pensamento e a ação em terra brasilis. O leitor, ao final, perceberá que
não só o objetivo foi alcançado como também que a autora nos brindou
com um texto delicioso, original, profundo sem ser pretensioso. Mais do
que recomendada a leitura.
Aproveito para convidar a todos/todas para os lançamentos já confirmados:
05/11 – Rio de Janeiro. Local: Travessa do Leblon.
10/11 – São Paulo. Local: Espaço Revista Cult.
23/11- Belo Horizonte. Local: Sempre um Papo.
Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ, Coordenador de Processo Penal da EMERJ e escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano. Fonte Justificando
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