O coxismo é um movimento pendular entre ignorância e má-fé
Por Rogerio Dultra dos Santos
Este texto objetiva examinar o que é, como vive, como se reproduz e
quais os antídotos para enfrentar o “coxismo” no Brasil. Após as
manifestações contra o governo Dilma e contra a corrupção do PT, depois
de que ameaças violentas transformaram-se em reações físicas contra
militantes de partidos da coalizão governista e de movimentos sociais, o
fenômeno tomou uma dimensão política e social sensível. A ponto de que,
em seguida, lideranças políticas como o candidato derrotado à
Presidência da República Aécio Neves resolveram aderir, estimulando,
inclusive, o golpe, o impeachment, a criminalização de lideranças de
esquerda e a judicialização seletiva de investigações sobre corrupção.
Apesar de contar com objetivos bem determinados, a organização, as
características gerais e a dimensão do coxismo têm desafiado os
analistas.
Muitos, a partir de reflexões qualificadas que permitiriam a devida
reação ou mesmo no afã das classificações tranquilizadoras, têm
denominado os movimentos pró-golpe, pró-impeachment, pró-renúncia da
Presidente (?), pró volta da Ditadura Militar (??) e pró intervenção das
Forças Armadas(???) como fascismo.
Na tentativa de compreender as especificidades do fenômeno, é
possível considerar “coxismo” uma denominação adequada ao movimento que
tem encontrado amplificação significativa, porém artificial, através de
financiamento internacional e de sua exposição reiterada na grande
mídia. O coxismo, como se verá, está longe de ser um movimento social da
envergadura dos fascismos ocidentais do século passado. Compreender as
suas limitações é o primeiro passo para o seu combate.
O coxismo é, assim – numa primeira e obviamente parcial e precária
tentativa de conceituação –, uma generalização da corrupleta “coxinha”,
atribuída aos militantes ocasionais das várias cepas da direita
brasileira, representadas nas ruas pelas classes médias. Estas, por sua
vez, podem ser compreendidas como uma pequena-burguesia com necessidade
de identificação social e econômica com os verdadeiros detentores do
capital. Desejam, desesperadamente, uma distinção de status das classes
médias emergentes que têm, inclusive e de forma paradoxal, demonstrado
simpatia pelo coxismo.
Acabei de descobrir que o termo coxismo já foi utilizado numa paródia
do wikipaedia, a desciclopédia. O presente texto foi escrito sem tomar
conhecimento do conteúdo deste “verbete” que, entretanto, pode ser
acessado aqui.
Mas, voltando ao ponto, por que o coxismo não seria uma simples
manifestação do fascismo? São claros os elementos que podem confundir os
dois fenômenos e torna-se mesmo relevante, ao falar das discrepâncias
estruturais entre fascismo e coxismo, identificar suas proximidades mais
óbvias.
O coxismo é anti-democrático e anti-popular.
O coxismo, como o fascismo, é um movimento antes de tudo reacionário.
Ele reage à modernidade política, isto é, ao processo de igualdade
jurídica inaugurado pelas revoluções capitalistas. Portanto, o coxismo
é, antes de tudo, antidemocrático.
Ele não reconhece a forma constitucional como mecanismo de
organização da vida social e propugna pela liderança iluminada de um
guia, na tentativa de reestabelecer uma hierarquia social e
eventualmente racial que subjugue as classes operárias.
O coxismo brasileiro nasce e se desenvolve, portanto, contra o
processo de igualização das condições sociais e contra o predomínio
democrático dos representantes políticos das classes subalternas no
poder.
Como o fascismo, o coxismo não reconhece o devido processo legal, e
ignora a Constituição como orientadora das disputas políticas. Rechaça o
processo eleitoral como instrumento de medição da vontade popular, da
qual se arvora legítimo portador e intérprete.
Para ambos os movimentos, o parlamento representa o marco da corrupção e deveria até ser extinto.
Um primeiro elemento de diferenciação é que o coxismo deseja, no
fundo, o retorno de uma hierarquia social que normalize a relação Casa
Grande & Senzala. A sua vinculação com o capitalismo financeiro se
otimiza, por exemplo, na radicalização da terceirização do trabalho, na
eliminação dos direitos sociais e na consequente escravidão
contemporânea para os trabalhadores. O fascismo caminharia, em tese, no
sentido contrário, isto é, no de identificar nos trabalhadores o público
alvo para cooptação e ampliação do movimento. Voltarei a este ponto a
seguir.
De qualquer forma, a partir destes elementos políticos e sociais, é
possível perceber – tanto no fascismo como no coxismo brasileiro – que
ambos flertam com uma forma de resolução política estabelecida pela
violência contra as classes populares e que se consuma na ditadura. O
coxismo é, assim, além de antidemocrático, profundamente antipopular.
O coxismo é um movimento pendular entre ignorância e má-fé
Outro elemento importante que permite confundir fascismo com coxismo é
a forte presença da ignorância sobre fatos políticos, aliada ao
fundamentalismo e à má consciência ou má-fé.
Tanto fascistas quanto coxinhas não conhecem as histórias de seus
países, eram alienados políticos até a eclosão dos respectivos
movimentos e passam a reproduzir preconceitos e palavras de ordem
destituídas de fundamentação, acreditando piamente que o seu movimento
purificará e libertará o país da podridão e da corrupção da “velha
política”.
O mesmo não acontece com as lideranças que tentam se aproximar e
cooptar o movimento. Estas têm o pragmatismo político e a consciência
plena de que as reivindicações e desejos da multidão ignorante são
pretextos convenientes para os seus intentos de domínio político.
Assim, a crítica ao comunismo, a ocultação da própria corrupção e a
escolha de um bode expiatório na forma de um indivíduo, grupo
partidário, religião, raça ou classe social são elementos que denunciam a
má-fé daqueles que intentam conduzir o movimento.
Na eclosão do coxismo brasileiro, em especial nos eventos políticos
ocorridos desde 2013, nomes de políticos(as) conhecidos(as) vêm à mente
de imediato com esta descrição. Diferentemente do fascismo, entretanto, o
coxismo não conseguiu identificar uma liderança que unifique as forças
políticas descontentes. Este é outro ponto desenvolvido a seguir.
O coxismo se alimenta do caos político e econômico
Assim como o fascismo, o coxismo tenta transformar a ordem institucional existente no caos.
Nos dois casos, as normas jurídicas, os direitos individuais e o
funcionamento das instituições atrapalham o desenvolvimento do
movimento. O fascismo, tanto na Itália, quanto na Alemanha, levou seus
países ao caos.
O coxismo brasileiro, ao não se importar com a operacionalidade da
ordem econômica e financeira, com o funcionamento das indústrias e com a
regularidade institucional, também parece apontar para a guerra civil e
para o caos como horizonte de sentido de suas ações.
No caos, o oportunismo dos medíocres e dos homens de má-fé, também conhecidos como homens de bem, poderá emergir.
Um homem de bem – FHC, o avô dos coxinhas –, escreveu artigo no Estadão neste último feriadão, exortando a necessidade de reformar a legislação de partilha do pré-sal, por exemplo.
Oportunismo semelhante, fervorosamente desejado pelo coxismo, é o das
multinacionais que, na mesma direção de FHC, estão interessadas em
saquear as riquezas do país, especialmente o petróleo.
Entretanto, no caso do coxismo brasileiro, o caos não colabora para
unir as oposições de direita. Alguns representantes do capital
industrial produtivo, outros tantos representantes do capitalismo
financeiro se ressentem do imobilismo que pode submergir a economia do
país. Este elemento – a incapacidade de unificação dos interesses do
capitalismo pelo movimento – distingue o fascismo do coxismo.
Como se vê, as semelhanças com o fascismo – que fazem do coxismo um
fenômeno social relevante no país –, não são tantas e tão profundas.
Embora o descrito até agora seja capaz de gerar preocupação, existem
elementos que afastam o fenômeno de alcançar pujança suficiente para
realmente ameaçar a ordem democrática. Senão, vejamos.
O coxismo é um movimento anti-carismático
Apesar dos oportunistas e homens de bem, como dito acima o coxismo se
ressente da ausência de um líder. Na verdade, nos encontramos num
período de disputa acerca de quem verdadeiramente representaria os
anseios dos coxinhas, transformando-se em um líder carismático dos
mesmos. Aécio Neves e Marina Silva não alcançaram o intento, apesar dos
contínuos esforços de ambos.
A principal dificuldade neste quesito é que uma liderança carismática
que represente os interesses do coxismo teria que, necessariamente,
atuar como um demagogo. Esta aproximação com as práticas tidas como da
“velha política” pelos coxinhas, poderia afastar a liderança carismática
do núcleo “ideativo” do movimento.
Dificilmente um séquito sincero e não financiado seguiria cegamente
alguém que representasse – ao menos no discurso – os anseios e
necessidades de uma maioria da população, fortemente odiada pelo
coxismo. Este paradoxo, que pode ser denominado de necessário
“impopulismo” da liderança dos coxinhas impede, na prática, a sua
ascensão. O líder coxinha deve ser necessariamente hipócrita e a
hipocrisia não é capaz de galvanizar uma liderança.
Mesmo fortemente desejado e até ensaiado, um líder do coxismo dificilmente pode ser produzido. É um oximoro.
O coxismo não se orienta por um projeto de país
Embora o ódio dirigido às classes subalternas, ao operariado e aos
movimentos sociais organizados em geral seja um fator de identidade
entre fascismo e coxismo, este sentimento não é – no coxismo – dirigido a
objetivos destratégicos.
Assim, os coxinhas, alimentados pelo ódio de classe e pelo ódio à
política, não desenvolveram discursivamente uma compreensão específica
sobre a nação e a nacionalidade, elementos de coesão social clássico nos
movimentos fascistas.
O coxismo tem uma noção vaga e difusa de símbolos nacionais e de amor
ao país, resquício da educação moral e cívica da ditadura
civil-militar. Ufanismo vazio e requentado, que é expresso na frase
“Brasil: ame-o ou deixe-o” ou na utilização de camisas verde-amarelas da
CBF – Confederação Brasileira de Futebol (instituição envolvida em uma
série de escândalos de corrupção).
Estes símbolos de um projeto nacional inexistente representam
ausência de estratégia política e espontaneísmo. No máximo se agregam ao
movimento explicações econômicas de caráter neo-liberal, que mais
significam reações ao desenvolvimentismo do lulo-dilmo-petismo do que
propriamente um projeto conscientemente assentado em suas fileiras.
Como conseqüência da ausência de um projeto político, o coxismo
tupiniquim não se ajusta a um programa de expansão internacional das
fronteiras, a se alcançar através da diplomacia ou da guerra, nem mesmo a
um desejo de hegemonia imperial, como ocorreu com os fascismos mais
variados.
O coxismo, ao contrário, sofre fortemente do “complexo de
vira-latas”. Se há um projeto, este é o da subalternização dependente às
potências econômicas estabelecidas – em especial, aos EUA –, como se o
Brasil já não o fosse ou não tivesse condições de se tornar uma potência
independente por si só.
O coxismo não é capaz de produzir doutrina ou teoria
Embora se questione a originalidade das teses fascistas, não há
dúvida que as mais capacitadas mentes ocidentais se esforçaram para
constituir fundamentos doutrinários e teóricos para o fascismo. Gaetano
Mosca, Mikhail Manoilesco, Giovani Gentille, Vilfredo Paretto dentre
inúmeros intelecuais reconhecidos e estudados até hoje cerraram fileiras
momentânea ou organicamente junto ao fascismo.
O fascismo alicerçou-se, conseqüentemente, num programa
corporativista, numa filosofia da história e num projeto de civilização
expressos de forma limitada, porém minimamente consistente – através de
livros, discursos e projetos de Estado –, embora fossem (e sejam) ética,
social e politicamente questionáveis.
O coxismo brasileiro não goza de intelectuais aptos a produzir uma
teoria justificatória. Artistas, decadentes, colunistas e apresentadores
de TV não foram capazes de desenvolver uma doutrina com alguma lógica
que seja capaz, por exemplo, de dar conta do combate à corrupção e, ao
mesmo tempo, da paradoxal adesão a Eduardo Cunha (“Somos milhares de
Cunhas” diziam várias faixas nas manifestações).
O coxismo conta com apoiadores inconsistentes teoricamente, e em sua
maioria financiados pela grande mídia. Ele se alimenta, portanto, da
propaganda. Como o fascismo, pretende insistir monotonicamente em
meias-verdades, mentiras e manipulações para angariar adesões. A mais
expressiva delas é a criminalização seletiva: a corrupção é exclusiva do
PT e, por exemplo, é a maior e nunca dantes vista.
Diferentemente do fascismo, entretanto, a propaganda do coxismo não é
oficial. É oficiosa e não consegue penetrar de forma sistemática em
todos os elementos da vida social, como escolas, fábricas e repartições
públicas.
As concessões de rádio e TV, distribuídas de forma inconsequente
pelos governos petistas, fazem um bom trabalho a favor do coxismo, mas
contam com a resistência organizada e ainda renitente dos movimentos
sociais e da intelectualidade que não foram cooptados pelo movimento
coxista.
Racismo velado e impossibilidade social do desenvolvimento do coxismo no Brasil
O coxismo, como o fascismo, é profundamente xenófobo e racista. Mas,
diferentemente, não pode fazer propaganda disto. Como as instituições
jurídicas ainda estão operantes no país, os coxinhas não podem exercer o
seu racismo de forma explícita e impunemente. O racismo e os
preconceitos dele derivados contra a população LGBT, contra mulheres e
estrangeiros não brancos precisam permanecer velados.
Talvez este seja o verdadeiro calcanhar de Aquiles do coxismo. A sua
distinção em relação ao fascismo que atinge de morte o movimento e
impede que ele se espalhe como um câncer social.
Diferentemente do fascismo, o coxismo não tem condições de se
disseminar pela profunda ojeriza que têm das classes populares. Enquanto
o fascismo se aproveitou de medidas de apoio às classes operárias para
ampliar as suas bases, prometendo e, em geral, não cumprindo suas
promessas, o coxismo brasileiro simplesmente não apresenta o menor pudor
em externar o seu descontentamento com a ascensão social e de status
das classes baixas.
Desta forma, uma última e importante distinção entre fascistas e
coxinhas é que o fascismo assumiu uma dimensão política capaz de
galvanizar massas hipnotizadas e garantir a tomada do poder político em
alguns Estados nacionais. O movimento fascista, em suas várias formas,
espalhou-se como uma onda na primeira metade do século XX, atingindo
vários países da Europa. O coxismo brasileiro, como um arremedo mais
ralo e tênue do fascismo, não tem encontrado condições de se desenvolver
para além de uma militância financiada e de adesões eventuais de
parcelas conservadoras das classes médias. Este agrupamento social
difuso e desorganizado não conseguiu, até o momento, transformar o
fanatismo e a violência em ação organizada e sistemática de massa.
Isto não elimina a necessidade de nos utilizarmos diligentemente das
experiências das resistências aos fascismos pelo mundo para combater o
coxismo tupiniquim.
O coxismo tem se mostrado cada vez mais violento e cada vez mais
despudorado em sua violência. Os ataques eventuais e espontâneos a
militantes de esquerda mais ou menos identificados transforma-se
rapidamente em ataques coordenados e financiados contra lideranças
sociais e representantes partidários.
Mesmo portando diferenças significativas com o fascismo, o coxismo
padece do mesmo mal das manifestações de ódio e intolerância: a ausência
de abertura para o diálogo.
E, como a luta contra o fascismo, a batalha contra o coxismo está
longe de ser inútil ou infrutífera. E é uma batalha na qual se pode
lutar com várias armas. Das mais toscas às mais sofisticadas.
No fundo, o coxismo expressa, antes de tudo, uma carência. Uma
carência violenta e ignorante. Uma carência que nega a realidade e a
reconstitui em sua imaginação coletiva segundo seus desejos
compartilhados de igualdade singularista. Carente e ignorante, o coxismo
precisa ser inundado de amor, educação e informação. Mas sem nunca
descuidar da integridade dos nossos, porque a igualdade de condições é,
para o diálogo acontecer, um elemento fundamental.
*O título deste post é plagiado respeitosamente do seminal livro Behemoth: estrutura e prática do nacional-socialismo
(1942), do jurista e cientista político alemão Franz Neumann,
integrante da Escola de Frankfurt e um dos mais aguerridos intelectuais
na luta contra o nazismo no século XX.
Fonte Democracia e Conjuntura
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