Mansão de veraneio dos herdeiros de Roberto Marinho também é um tríplex e também está sendo investigada pelo Ministério Público Federal
Paraíso particular: mansão triplex encravada no melhor point da Mata Atlântica
por Renan Antunes de Oliveira, do DCM
A mansão de veraneio dos herdeiros do magnata da Globo Roberto
Marinho também é um tríplex e também está sendo investigada pelo
Ministério Público Federal, mas num processo em ritmo bem mais light e
sem publicidade.
Os arquitetos que a projetaram e os engenheiros que a ergueram zombaram das leis ambientais: ela está totalmente irregular.
Das fundações ao teto, localiza-se em área desmatada de um parque
federal. E parte, sobre terra pública, grilada logo por quem não precisa
– a família mais rica do Brasil.
A mansão tem um andar quase subterrâneo e outros dois empilhados de
forma engenhosa, parece que não se tocam. Fica na baía de Paraty, na
costa do Rio.
Ela foi alvo de fiscais do Ministério de Meio Ambiente (MMA) desde o início da construção, em 2008.
A batalha parecia terminada quando a Vara Federal de Angra dos Reis
mandou demolir a mansão, em 2010, poucos meses depois de concluída.
Mas os Marinhos não se curvaram à Justiça.
Seus advogados recorreram e fugiram das intimações. Eles a mantiveram
em pé por seis anos e vão lutar para que fique assim até o último juiz.
Como um caso tão pequeno se arrasta no Judiciário por mais tempo do
que o da Lava Jato só pode ser explicado pela nova teoria do “abuso do
direito de defesa”.
A sentença da primeira instância não tem previsão para sair, mas os
desembargadores do TRF já devem estar se acotovelando pra ver quem terá a
sorte de pegar o caso na segunda.
É surpreendente que o MPF não tenha deixado escapar vazamentos.
Partes do processo ainda estão sob segredo de justiça. Para vê-lo, use o
código 201051110009517 no site.
Mamute de concreto
O terreno onde está a mansão é duas vezes maior do que o daquele
sítio de Atibaia que tem aparecido no noticiário da Globo nos últimos
dias.
Seu tamanho original era menor, apenas 50 mil m². Corretores da
cidade disseram que os Marinho compraram mais áreas lindeiras, para
evitar que gente comum quebre a privacidade da mansão acessando por
morros e costões.
A mansão é tão pesadona e forte que parece ter sido feita para durar
mil anos. Tem 1.300 m² de concreto, capaz de resistir a um tsunami.
Caberiam dentro dela três daqueles tríplex do Guarujá – veja detalhes no site dos arquitetos.
Além de estar sobre natureza morta, a mansão se projeta das pedras
para o mar. Se arquitetura quer dizer alguma coisa, ela parece um navio
de conquistadores, senão uma frota inteira.
Apesar de localizada na praia de Santa Rita, na costa do Rio de
Janeiro, é mais conhecida no circuito dos ricos e famosos por seu nome
em inglês: “Paraty House”.
A mansão é tida como joia da arquitetura moderna tupiniquim desde a
prancheta. Assim que abriu as portas para os primeiros convivas foi
premiada por uma revistinha inglesa de design, a Wallpaper.
A Paraty House oferece aos seus ocupantes uma espetacular imersão na
natureza intocada – quer dizer, está intocado o que eles deixaram depois
de desmatar uma parte, dar uma raspada nas pedras e cortar o cocuruto
do morro para ela ser erguida.
Mesmo assim, o terreno ainda é um naco magnífico da Mata Atlântica,
dentro da área de preservação de Cairuçu – puro verde, como no tempo das
caravelas. Só se vê a casa quando se chega perto, por mar ou voando.
Veja no site do MMA.
Por esses dias quem mais está usando a mansão são netos e bisnetos do magnata.
Uma faxineira, casada com o irmão de um jardineiro, contou ao DCM
que os três filhos de Marinho, donos do Grupo Globo, se afastaram dela –
da mansão, não da faxineira – devido à publicidade negativa provocada
pelo processo do MPF.
Os procuradores investigam tão rigorosamente quanto possível o crime
ambiental de desmatamento para erguer mansão, piscina, parquinho,
aquashow e heliponto.
O encarregado do inquérito trocou várias vezes porque o caso não tem
força-tarefa, nem procuradores exclusivos, atrasando as coisas. Foi no
andar do processo que se descobriu a grilagem de uma área pública: os
donos da mansão privatizaram na marra a pequena praia de Santa Rita,
reservada para uso exclusivo de seus pimpolhos.
A piscina foi erguida direto na areia da praia – é show de bola, mas
ilegal, sem falar na ideia de jerico de ter uma piscina salgada a 30
passos do mar.
Os Marinho ergueram na Santa Rita também aquashow tubular,
ancoradouro para jet ski, mansãozinha de árvore, combo
balanço-gangorra-escorregador e um depósito para as pranchas de surf e
banana boats – assim a criançada e papais se poupam do complicado leva e
traz dos brinquedos. Tudo ilegal.
Para manter os brinquedos na praia sem que ninguém se sinta tentado a
usá-los, os Marinho contrataram seguranças armados. São dois homens em
turnos de 12 horas, 7x30x365. Eles intimidam quem desembarca na areia,
mas não há registro de violência. Só botam o povão para correr, coisa
que ninguém ousaria fazer no Leblon.
Se a luta pela praia tem alguma justificativa deve ser pela qualidade
da água. Este repórter esteve lá na semana do carnaval e ela estava
simplesmente deliciosa.
Morninha, limpa, transparente, calma. O fundo tem areia igual de
limpa – dá vontade de juntar alguns punhados e levar para aquários,
afinal, a areia é do povo.
A prainha é pequena, 83 passos largos de costão a costão, entre o
trapiche de jet ski e o ancoradouro dos iates. Tem brisa permanente,
garante quem conhece a região. Ela está de frente para o noroeste, pega
todo sol da manhã e sombra ao entardecer, com o fresquinho de graça,
oferta da Mata Atlântica.
Os ricaços que a desfrutam não precisam passar aquele abafamento e
sol quente que o povão enfrenta em locais apinhados, nem arrastar
guarda-sol: amendoeiras frondosas e palmeiras garantem sombra eterna.
A praia é farofeiros free – uma lancha cobra até 350 reais pelo
percurso de 15 minutos entre o cais histórico de Paraty e a House. De
vez em quando algum desavisado salta nela, só para ser corrido pelos
guardinhas.
As crianças dos Marinhos e seus amiguinhos não sentem falta dos
vendedores ambulantes. Elas podem beber água de coco colhido no pé.
Claro que não tem o agito de Copacabana, mas pelo menos a areia está
sempre varrida e sem papel de picolé.
Como se não bastasse desfrutar deste pedaço do paraíso, a vida
intramuros é de um conforto que a gente comum pode apenas sonhar –
preste atenção nas suítes feitas com lascas de árvores e fotos completas
da cozinha naquele site dos arquitetos.
Óbvio que tal cozinha não é para alguém fritar um ovo com arroz.
Sempre que a family vai veranear provoca azáfama – correria com
atrapalhação – entre os empregados, para abastecer freezers e
prateleiras. Em geral, um chef escolhido entre os melhores do país
acompanha a comitiva.
A House dispõe de várias embarcações de serviço e recreio. O Indiana X
que estava atracado lá no dia da reportagem era apenas para os
seguranças e domésticos. Vale 200 mil reais, na avaliação do comandante
da lancha deste repórter.
A família, quando não voa direto para seu heliponto, usa um tremendo
iatezinho compacto Ferretti 40 – os modelos antigos à venda no Mercado
Livre valem um tríplex. Os iates mais novos, bem equipados,
podem valer até 10 cotas daquela cooperativa imobiliária. O Ferretti
dos Marinho não estava no porto e não pode ser avaliado.
O Ferretão, como foi apelidado pelo comandante Bradock, que já
prestou serviços à família, é usado quando a prainha privatizada está
sob ataque de farofeiros ou sofrendo das raras fiscalizações federais –
aí ele navega para outros points privados.
Não se sabe pra onde porque a prefeitura de Paraty, ao imprimir mapas
para turistas e escuneiros, fez a cortesia de omitir a (as) praia (s)
dos Marinho.
Motosserra
O problema da Paraty House na Justiça é que para ser construída,
premiada e desfrutada pelos pimpolhos dos bilionários, alguns operários
tiveram que derrubar árvores protegidas por lei federal – todo verde
hoje esmagado pelo concreto da mansão era original até eles
desembarcarem no pedaço.
Não foi possível apurar o nome dos carinhas que passaram a motosserra nas árvores.
Assim, eles não poderão ser responsabilizados.
Mas, na outra ponta, nenhum Marinho jamais será punido ou multado – eles usaram uma empresa de fachada para erguer a House.
A empresa aparece como ré no processo do MPF. Chama-se Agropecuária
Veine. O responsável é um tal de Celso Campos – ele conseguiu a proeza
de ficar de outubro de 2011 a abril de 2014 sem ser localizado por um
oficial de justiça.
Alguém no infalível MPF errou o endereço dele da Avenida Copacabana
XXX para XYY, apenas 30 metros, o suficiente para Campos nunca ser
encontrado. O truque funcionou bem até uma recente troca de
procuradores, que descobriram a patacoada.
Os procuradores que se debruçaram sobre o caso disseram à revista
americana Bloomberg que “os ricos brasileiros usam as praias públicas
como se fossem sua propriedade” – só não deram entrevista pra Globo.
Nos bastidores, eles dizem horrores dos Marinhos, mas sem jamais
citá-los oficialmente, já que o réu de fachada é o tal Celso Campos.
Este, procurado em Copa, não falou ao DCM.
O que talvez tenha faltado para andar rápido uma ação tão simples –
casa erguida irregularmente, praia ocupada na marra, tudo documentado
pelo MMA – tenha sido um juiz como aquele paranaense, com seu apetite
por enfrentar poderosos.
Na Vara de Angra dos Reis, o processo da Veine se arrasta porque é
uma batata quente que ninguém quer segurar. Até o porteiro sabe quem
está por trás dela – e não é o Celsinho.
Uma avó combativa
Quem levantou a lebre foi uma servidora pública federal, concursada, Graziela de Moraes Barros, fiscal do Instituto Chico Mendes (ICMBio), órgão do MMA.
Ela tem apenas 39 anos e já é avó. Mora num sítio escondido numas
quebradas e implora pra que o repórter não diga onde é, porque teme
represálias. De quem? “Quando fiz a denúncia da casa dos Marinhos,
alguém atacou a minha e incendiou meu carro”, conta, sem acusar ninguém.
A Polícia Federal investigou o caso, óbvio que sem sucesso. Hoje, ela anda sempre em carro oficial e acompanhada de uma colega.
Graziela não é mais fiscal. Deu entrevista, na semana do carnaval, em
seu escritório na APA Tamoios, no alto de um morro do qual se vê Angra
dos Reis e Paraty – a House agora está fora de sua jurisdição.
“Desisti porque passei cinco anos dando murro em ponta de faca. O
Estado e a Justiça não enfrentam e nem punem os poderosos. Minha função
acaba sendo fazer o papel de polícia contra pescadores e pequenos
posseiros”, resmunga, amargurada.
Ela aponta o processo contra os Marinho como um exemplo de
desrespeito: “Eles poderiam ter erguido uma casa menor, de até 200 m², o
que seria permitido pela lei. Mas fizeram aquele monstrengo de concreto
derrubando mata. Foi uma afronta à lei e à natureza”.
Graziela é a estrela da acusação. Ela inspecionou a praia Santa Rita
uma vez durante a construção e outra depois que a mansão ficou pronta:
“Heliponto e casa devem ser derrubados. A piscina está na praia…” e ela
despeja os argumentos que estão no processo iniciado pelo procurador
Fernando Lavieri, tim tim por tim tim.
Ela quer os Marinho fora do pedaço: “Eles entram com recursos e vão
rolando. Pagam multas e continuam ocupando a área, esperando tudo cair
no esquecimento. Calculo que gastem mais de um milhão em multas e
advogados, mas vão continuar lá, porque podem tudo”.
Graziela enumera uma lista de milionários que cometeram crimes ambientais na mesma região. Está desiludida: “Nada vai mudar”.
Na hora da fotografia, Graziela entra em pânico: “Tenho medo de ser
exposta”, diz preocupada com sua segurança como se vivesse no meio de
uma guerra de gangues. Pede que a foto seja tirada pelas costas,
solicitação atendida.
A Paraty House foi desenhada pelo arquiteto paulista Márcio Kogan e
sua equipe. Não foi possível localizá-lo para saber se ele nunca ouviu
falar da proibição de derrubar Mata Atlântica. Se não ensinaram na
faculdade dele, consola saber que já existe preservação ambiental até no
currículo da escola fundamental.
O projeto original sempre esteve em desacordo com a lei de máximo 200
m² porque saiu da prancheta com 840. Aí foram mexendo e subiram para os
1.300.
Como a construção daquele bruto bloco de concreto foi premiada, as
opiniões variam de maravilha arquitetônica a monstrengo – no prêmio
Wallpaper 2010 os jurados analisaram apenas a arquitetura, sem avaliar o
preju ambiental que ela causou.
Um arquiteto de Paraty, ligado à Organização Caiçara e defensor de
quanto mais verde melhor, acha que “a mansão é até bonitinha, mas está
totalmente deslocada do entorno. Na mata é um horror. Ficaria bem na
Avenida Paulista. Por que tanto concreto no meio da mata”?
O arquiteto diz que “caberiam ali vários chalés de madeira, rústicos,
bem mais leves, com o mesmo grau de conforto. Seria de bom gosto e
estaria dando sinal de respeito à sociedade”. O homem não quer ver seu
nome citado, temendo represálias.
De quem? O arquiteto fica de bico calado – deve temer a mesma gangue que aterroriza Graziela.
O dono de uma pousada – nome omitido porque teme represálias – contou
que sua ex namorada, a bióloga Xis, fez um plano de manejo de pesca em
cativeiro nas águas da Santa Rita: “Na verdade, o objetivo deles não era
pescar, e sim lançar o emaranhado de boias para demarcar o cativeiro,
impedindo atracação de barcos”.
Ele disse que a moça ficou seis meses só assinando papéis, até que se
fartou do negócio e foi morar na Bélgica: “Por favor, não bote o nome
dela na reportagem”.
Paraíso privado
Depois de realizar várias entrevistas em terra firme, decidi ir à
praia dos Marinho, sem ser convidado, para conferir alguns dados do
processo – no final do ano passado um juiz determinou diligências para
saber se os parquinhos ainda estavam de pé.
Contratei uma lancha. O simpático comandante não quis ver seu nome
aqui, temendo represálias: “Eu vivo do turismo e eles…sabe como é”,
disse, parecendo assustado.
Minha lancha zarpou e por alguns minutos da viagem me senti inebriado
com toda aquela beleza da baía de Paraty – mas logo veio o medo de
enfrentar os tais seguranças armados.
Torci para que um Marinho, com quem troquei cumprimentos anos atrás quando era repórter de O Eco, estivesse tomando café na beira da piscina.
Quase 10 da manhã e eu estava na lancha, com o mar às costas e a mata
na frente, temperatura de 22 graus, céu azul – até aquele ponto tudo ia
bem.
Pedi para o comandante apagar o motor para gozar o silêncio, mas a barulheira de outros navegantes quebrou o encanto.
Dez e pouco começamos a nos aproximar da mítica Paraty House.
Fui fazendo fotos a distância. Ninguém à vista. Fiquei com aquela
sensação de filmes quando vai surgir um dinossauro na praia deserta e só
o mocinho não sabe.
Desviamos das boias fajutas da bióloga da Bélgica e pulei na água – morninha, como contei antes.
Já estava na areia quando, do meio das amendoeiras, surge um guardinha.
Ele veio falando qualquer coisa, de longe, com a mão escondendo o
logotipo da empresa e o nome na farda, assim como fazem os PMs quando
batem em jornalistas.
Aí, parou na minha frente e me intimou: “Vá embora, você não pode tirar fotos da casa”.
Não vi o segundo guarda e avaliei o perigo: apenas alerta amarelo.
Então, dei um patético carteiraço nele: “Sou jornalista e posso tirar
fotos porque esta praia é pública” – e estendi minha carteira da
Federação dos Jornalistas.
Na mesma hora contive o riso pela ironia de invocar este direito num
solo supostamente sagrado à liberdade de imprensa. Ele nem deu bola pro
documento.
O guardinha me mandou embora outra vez, desta vez com a mão na coronha da arma.
Mas ele não sacou. Ponto para mim. Senti a fraquejada e blefei: “Tá
vendo aquela lancha? Tem uma câmera filmando nós dois. Você não manda
aqui e só pode ficar dentro da propriedade, não pode nem andar armado na
praia” – aí apontei minha Nikon pra ele.
Vapt vupt e o guardinha se esfumaçou. Entendeu que eu não era
turista, virou pra esquerda e saiu dando pulinhos na areia – sinal que
ele sabia que ali os guardas privados podem ser presos em flagrante por
porte ilegal de arma, se não estiverem no perímetro da mansão.
Minutos depois, ele voltou, mais gentil, apelando: “Por favor, é meu
trabalho”. Concordamos que eu poderia fotografar tudo, menos entrar na
casa – uma banalidade, já que estava vazia.
O guardinha contou que “faz pouco avisaram que o helicóptero vai
chegar com a patroa”. Ele não disse o nome, talvez temendo represálias.
Trata-se de uma neta de Roberto Marinho. Meu único conhecido não estava
na lista de passageiros, ia ser mais difícil me aproximar dela.
Outro problema: quem chega pelo heliponto, atrás da linha da praia e
acima da mansão, pode entrar nela por um caminho de espelhos de cristal
sobre um lago artificial. Eu não teria acesso àquela área.
Decidi não esperar um improvável convite para o almoço.
Mandei o guardinha sumir da minha frente, ele obedeceu.
E como meu nome não é trabalho, me joguei naquela pintura de água.
Decidi não esperar um improvável convite para o almoço.
Mandei o guardinha sumir da minha frente, ele obedeceu.
E como meu nome não é trabalho, me joguei naquela pintura de água.
Fonte Rede Brasil Atual
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