A política, aquela coisa suja que só interessava aos candidatos que de tempos em tempos apareciam para pedir votos, saiu às ruas e adquiriu relevância na vida das pessoas. Hoje há posições consolidadas à Direita e à Esquerda, em polos opostos, disputando hegemonia entre a imensa maioria que se já esteve ao lado dos golpistas, agora já não ostenta tanta convicção.
por Wilson Ramos Filho
As mesmas forças políticas que promoveram o Golpe em 1964 se rearticulam agora para atacar a Democracia.
Naquela oportunidade a imprensa criou artificialmente um clima
de "algo tem que ser feito para acabar com isso tudo que está
aí". Setores de classe-média, pensando-se bem informados, aderiram
à proposta golpista. Juristas politicamente afinados com a ideologia
das classes dominantes emprestaram suas biografias para legitimar
a infâmia. A OAB dirigida por pessoas sem qualquer relevância
histórica ou jurídica aderiu. A Igreja católica, resgatando um
anticomunismo à moda da guerra-fria, organizou a Marcha da Família, com
Deus, pela Propriedade. E em um primeiro de abril os militares atenderam
"à convocação das ruas". Seguiu-se uma noite escura. Os direitos
dos trabalhadores foram atacados naquilo que mais incomodava o
patronato: acabaram com a estabilidade no emprego; a Justiça do Trabalho
foi proibida de conceder reajustes salariais, milhares de diretorias
de Sindicatos foram afastadas, substituídas por pessoas servis
aos empresários e fiéis ao Regime de repressão implantado. O resto
é conhecido: passou-se da fase da Ditadura Envergonhada para a
Ditadura Escancarada (Gaspari).
Em 2016 as mesmas forças políticas e o mesmo empresariado (os do
pato de borracha à frente), com os oligopolizados meios de
comunicação tentam reeditar o ataque à democracia. Não podem, contudo,
contar com as Forças Armadas e com a hierarquia católica. Socorrem-se em
alguns setores de classe-média tangidos pela imprensa, aproveitam-se
que beócios dirigem a OAB e ressuscitam o ideário liberal
(liberdade imprensa, de expressão, de manifestação) para atacar os
direitos políticos, que implica respeito aos mandatos, e os direitos
sociais. Seu objetivo é a precarização dos direitos trabalhistas e a
redução dos custos com salários e vencimentos.
Mas alguma coisa está fora da ordem.
Há uma resiliência intrigante. Algo não está funcionando como gostariam.
Setores do funcionalismo inicialmente empolgados pela
individualista meritocracia (foram aprovados em dificílimos concursos)
começaram a perceber que o que viria depois deste governo - no
máximo socialdemocrata - seria muito pior para seus interesses
corporativos e remuneratórios e começam a desconfiar que estavam sendo
usados para defender algo que atenta contra seus interesses individuais.
O individualismo, em dupla faceta, erode a legitimidade dos
protestos entre o funcionalismo. Pelas razões erradas, mas erode.
A Lava-Jato sai do controle. Começam a aparecer corrupções diversas
de protagonistas do Golpe e um dos principais atores do processo
comete crime ao divulgar ilegalmente gravações telefônicas. Parte
daqueles que foram levados a acreditar na falsa sinonímia entre
corrupção e esquerda-no-poder começa a desconfiar de tais certezas
absolutas. A maioria desta massa que se tornou direitista sem
consciência disso segue rosnando impropérios, todavia, atos
tresloucados, pedidos de desculpa, exageros múltiplos descortinaram para
parte desta turba que a corrupção não foi inventada pelos governos de
coalizão hegemonizados pelo PT.
Parte da "esquerda que a direita gosta" se deu conta de que
as "heróicas jornadas de junho de 2013", com seus black-bocs,
eram movimentos fascistas e que seus desdobramentos não contribuíram
para os pretendidos avanços sociais, bem ao contrário. Exceto por
umas alma-penadas que teimam em manter uma impossível equidistância
nesta luta de classes, os ataques da Direita propiciaram uma
inaudita unificação das Esquerdas, nos movimentos sociais e nas
manifestações em defesa da democracia. Com isso os golpistas não
contavam.
O Supremo Federal de hoje já não pode ser emparedado. Em
sua composição atual - a mais qualificada da história do STF - há
homens íntegros que não se corrompem pelos afagos do empresariado e não
se intimidam mesmo quando têm suas próprias intimidades devassadas
pelos golpistas. Em respeito às suas biografias os Ministros têm
debatido muito a conjuntura e vem se formando no STF um consenso
progressivo que tende à maioria de que os que atacam a democracia
pretendem, de fato, chegar ao poder sem os votos da maioria da
população.
O congresso nacional atual, ao contrário, tem a pior composição
da história do parlamento brasileiro. São muito mais que 300 os que
fazem da picaretagem um meio de vida. Esse congresso, intencionalmente
em minúsculas, verdadiramente não conta com legitimidade e apoio
nos abobados que ainda defendem o impeachment. Esses nem se dão conta
de que a consequência do impeachment seria colocar Temer, um traidor,
e Cunha, um escroque, na condução do país.
Há muitos outros elementos a serem considerados, mas limito-me a destacar um último que me parece extremamente relevante.
Nos demais Movimentos Destituintes fomentados desde o exterior
por intermédio das redes sociais (primavera árabe, por todos),
nas tentativas frustradas de deposição de governos (Venezuela
como emblemática), nos golpes a frio (Honduras e Paraguay como
exemplos) não aconteceu uma verdadeira politização das sociedades.
O que está acontecendo no Brasil está "fora do combinado" pelos que se articularam para derrubar o governo.
Houve uma brutal, enorme, estupenda politização da
sociedade brasileira que passou a discutir política o tempo todo,
nos salões-de-beleza e nas barbearias, nos bares de esquina e
nos restaurantes mais sofisticados, nas salas de aula nas escolas
públicas e privadas, nas faculdades e em milhares de grupos de Telegram,
de WhatsApp, no FaceBook, nas listas de e-mail.
A Direita, com apoio das televisões, jornais e revistas, dividiu
o país contando que a maioria da população permaneceria entorpecida
pelo espetáculo midiático, contou com que as ruas fossem tomadas
pelos mesmos black-bocs, pelos mesmos "bombadinhos de academia",
pelos abestados de verde e amarelo que em junho de 2013 desfraldaram
as bandeiras do "meu partido é o Brasil" e "o gigante acordou"
sem saberem que estas provinham dos Integralistas, dos
fascistas brasileiros, na década de 30. Mas alguma coisa está fora da
ordem. Ocorreu exatamente o contrário: metade do Brasil se mobilizou
para defender a democracia e as redes sociais que foram usadas nos
demais Movimentos Destituintes, no Brasil, serviram para convocar
a resistência.
A política, aquela coisa suja que só interessava aos candidatos que
de tempos em tempos apareciam para pedir votos, saiu às ruas e
adquiriu relevância na vida das pessoas. Hoje há posições consolidadas
à Direita e à Esquerda, em polos opostos, disputando hegemonia entre
a imensa maioria que se já esteve ao lado dos golpistas, agora já
não ostenta tanta convicção.
Para finalizar, uma referência que é sobretudo estética. Cada um
dos polos antagônicos desta disputa hegemônica arregimentou seus
ídolos. Na música, de um lado estão Lobão, Roger, Fábio Júnior; de outro
Chico Buarque e a nata da MPB, do samba, e de diversos outros estilos.
No futebol, de um lado Ronalducho, de outro Juca Kfury. Nas
artes cênicas, de um lado Maitê, Regina Duarte; de outro, a
intelectualidade do teatro e da televisão. Na Letras, de um lado Merval
Pereira, de outro Fernando Moraes. No campo do direito, então, uma
barbada. Do lado de lá o que pode haver de mais desprezível, muito
embora contem também com alguns juristas de valor cuja presença entre
tantos medíocres causa muita estranheza, todos se esmerando para
em verdadeiras "pedaladas jurídicas" justificar que o impeachment,
sem que tenha havido um crime, não seria um Golpe. Do outro lado,
do nosso lado, os maiores juristas do país que não vou nominar
porque, esquecendo alguém, cometeria inadmissível injustiça. Isento
meus amigos de Curitiba que não se opuseram frontalmente ao
Golpe. Compreendo-os. A teia de relações sociais em Curitiba
condicionam posturas em face de complexas intermediações decorrentes de
situações familiares, de coleguismo, de afetividades diversas.
Escolheram ser assim, nada mais que isso. Essa polarização havida em
vários campos da cultura, das artes, das ciências também contribui para
resiliência do governo, para a resistência democrática, pois integra o
conjunto de elementos a serem considerados na disputa hegemônica que
"saiu do lugar" que ganhou as relações sociais, as conversas em todos os
locais, que "está fora da ordem" pretendida pelos golpistas.
Eles têm pressa. Nós temos a razão. Os empresários, a grande
mídia, não têm por que ficar com a consciência pesada. Estão defendendo
seus próprios interesses, acima de tudo, econômicos. Entre os demais que
se posicionaram ao lado dos empresários há muitos que, no fundo,
no fundo, já começam a se sentir envergonhados por terem alugado
suas penas, por terem se exposto, por terem defendido patos de
borracha, por terem se deixado manipular, mas não podem recuar. Uma
lástima. Descuidaram-se de suas biografias. Paciência. Daqui a uns dez
anos ninguém mais vai lembrar muito bem de que lado cada um se
posicionou.
Essa nova política, essa política que ganhou as ruas, que está
nos almoços de domingo, nos bares, nos ônibus, nas empresas e nas
redes sociais é a grande novidade do Brasil atual.
Ainda é cedo para sabermos como se dará essa nova correlação de
forças na sociedade, qual será a resultante na disputa hegemônica,
se conseguirão derrubar o governo ou não.
Caso o Golpe se concretize o governo Temer/Cunha não terá
trégua. Enfrentará a mais renhida oposição da história brasileira, nas
ruas, nos locais de produção e de trabalho, nos locais de moradia. E
a esquerda voltará ao governo, mais dia, menos dia, e então sem
cometer os erros, graves erros, que cometeu nos últimos anos.
Caso a resistência seja suficiente, caso o impeachment não obtenha
a maioria dos votos para derrubar o governo as coisas também não
serão fáceis, mas Dilma e Lula estarão libertados de qualquer
eventual compromisso de atender em parte os interesses do grande
empresariado golpista. Poderão, se quiserem, fazer o primeiro governo
realmente de esquerda no Brasil.
Wilson Ramos Filho, doutor em direito, professor na UFPR
(doutorado, mestrado e graduação) e no Master/doctorado em Derechos
Humanos, Interculturalidad y Desarrollo (UPO/Espanha).
Fonte O Cafezinho
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