Para cientista político, há uma cultura cívica contra a democracia tomando o mundo. "Fazem o que querem. Não temos jornal, advogados nem dinheiro, e temos medo. Cada ato nosso é um ato de coragem”
Por Cida de Oliveira, da RBA
São Paulo – Famoso por suas profecias ainda não concretizadas
acerca do fim dos tempos, o médico e alquimista francês Michel de
Nostredame (1503-1566) foi praticamente reabilitado pelo cientista
político e pesquisador da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj)
Wanderley Guilherme dos Santos. "Aceitei trazer a mensagem de
Nostradamus porque o fim do mundo está aí", disse, durante conferência
na tarde de ontem (7) no Centro de Estudos Estratégicos da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz), na capital fluminense.
A metáfora não guarda exageros, conforme Wanderley. "Nada, nem
eleições diretas, vão impedir panelaços e paneleiros e que a população
se manifeste contra o que acontecer. E um novo governo, mesmo eleito
pelo Congresso, também não terá condições de governar. É um jogo em que a
aparência é pantomima, que o pecado original do sequestro da democracia
tornou ilegítimos o governo, o Legislativo e até o Judiciário, que foi
cúmplice na trapaça. Todos sabem que nenhum é o que é de fato. Eles estão sub judice. Os papeis de cada um dependem do olhar do outro. Houve um golpe."
O pesquisador destacou a naturalidade com que esses setores passaram a agir, principalmente após o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Dado
o golpe, foram expulsos todos os "progressistas de todas as nuances de
poder, porque não vão incorporar essas nuances nesse debate. Não tem conversa. Este novo governo, o Legislativo e o Judiciário se legitimam a si mesmos."
"Hoje eles não têm pudor de não serem democráticos. É
inaceitável que, num botequim de Curitiba, o juiz federal Sergio Moro,
ao lado do cantor Fagner e de outras figurinhas, aplauda versos que
defendem 'vamos prender vagabundos'. Ele faz isso como afronta,
provocação. Moro diz que devem ser aceitas provas obtidas ilicitamente desde que de boa fé. Estou com medo, sem palavras. Cada
um faz o que quer e ninguém tem coragem de fazer nada. Esses caras não
estão brincando, têm consciência do que estão fazendo", criticou.
O drama, conforme Wanderley, é que tudo que tem sido feito
desde a posse do então governo provisório de Michel Temer (PMDB), em
maio passado, é irreversível. “A pressa do governo instalado, a
irresponsabilidade sobre um sistema montado há mais de 30 anos, 50
anos... Querer acabar com CLT é coisa de medíocre. É preciso ser
medíocre para querer fazer tudo isso. Não sabem o que estão fazendo",
apontou. "Está tudo normal, segundo diz Temer, que não tem percepção de
que é o presidente e que está dentro desse contexto. Eles dizem que está
normal porque os militares estão nos quarteis, os parlamentares no
Congresso, mas o pântano sob as instituições do empresariado, o Congresso e o Judiciário não tem qualquer solidez."
O pesquisador entende que essa onda conservadora tem um vapor
que terá de se esgotar por si só. Nada vai interromper. Nem frentes
únicas. "O MDB foi uma frente que deu certo, mas não acredito em frente
com Psol, PCdoB, PSTU, PT, UNE. Já vi isso, tenho 80 anos.Mas isso não
quer dizer que eu defenda que não se faça nada. Não podemos ficar sem
fazer nada. Eu não vou a essas reuniões; estamos pregando aulas públicas
para quem quiser saber sobre o golpe", contou.
Ele avalia que há medo e covardia na sociedade, que não se levantou
contra a manutenção de privilégios de militares e magistrados na reforma
da Previdência. "Militares e magistrados são uma cidadania com
privilégios inacreditáveis. E até agora a sociedade não teve coragem de
se levantar contra isso, nem parlamentares, exceto (Roberto) Requião,
que não deve ter sido apoiado por ninguém. A covardia é enorme."
O pesquisador atribui parte do temor à violência contra manifestantes
em várias partes do país. Uma reação que apesar disso, segundo ele,
tende a aumentar. "O medo diminuiu mas ainda é forte. E com
razão. A constituição vai perdendo a vigência. Não temos recursos para
financiar um jornal, manter escritório de advogados populares. Não temos
dinheiro mas temos medo. Cada ato nosso é um ato de coragem. Não é
brincadeira ir para a frente da Assembleia Legislativa, para Brasília;
esses estudantes ocuparem escolas. Não estamos protegidos."
E não acredita que com pequenos grupos, fazendo
manifestação diante das emissoras, seja possível derrotar a Globo. "Do
jeito que está, ninguém derruba, só um poder grande como ela para
derrotar. Não é brincadeira esse poder."
Para ele, a "perda de charme" da democracia no mundo todo é
real. "A produção acadêmica anti-democracia não é a favor da tirania,
mas aponta que a democracia é inviável, que o eleitor não entende o que
está sendo falado ou defende um sistema em que o peso do voto de cada
eleitor conforme a sua escolaridade. São obras sem sustentação
sociológica mas estão sendo levadas a sério e podem deslegitimar tudo o
que foi alcançado com a democracia representativa. Este sentimento, esta
cultura cívica contra a democracia que está tomando o mundo inteiro”
Nem Nostradamus nem ninguém sabe o que pode acontecer a partir
dessa onda conservadora. "Mas entendo que não vai acabar bem. Não creio
que esse processo tenha desenlaces sem custo de violência mais elevado
do que os atuais", concluiu.
Fonte Rede Brasil Atual
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