No caso do Brasil atual temos uma cleptocracia: um governo de ladrões, criminosos, perpetradores de fraudes, operadores da corrupção em concorrências e licitações públicas e até líderes do tráfico de drogas que ocupam os poderes dessa pseudo-república e assumiram o controle do governo através de um golpe parlamentar-judiciário-midiático-empresarial-elitista. E às favas o povo...
Por Robson Sávio Reis Souza
Na edição de 2017 do Latinobarômetro, apenas 13% dos brasileiros
consultados se declararam satisfeitos com o funcionamento da democracia,
último posto num ranking com 18 países. Apenas 1% dos brasileiros acha
que o país vive uma "democracia plena" e 97% avaliam que o governo
trabalha apenas para atender os interesses de "grupos poderosos".
Se você acredita em democracia no Brasil é melhor não ler as linhas
seguintes. Você verá uma "imagem nua" que poderá macular sua
sensibilidade adestrada...
Desde sua origem, na Grécia antiga, a democracia é um sistema de
hierarquização do poder arquitetado por atores políticos que têm
interesses de classe por esse modelo de governança. (O conceito de
classe é aqui utilizado para designar os diferentes grupos sociais, com
distintos recursos de acesso ao poder, que compõem uma sociedade).
Como sabemos, nos seus primórdios, há cerca de 2.500 anos, estavam
excluídos dos processos decisórios as mulheres, os jovens, os
estrangeiros e os escravos. Ou seja, na democracia, cuja palavra
significa "governo do povo", somente os homens livres deliberavam sobre
os rumos da polis (cidade). O demos (povo) se restringia, portanto, a
alguns; não a todos.
A história, contada desde então, esconde o fato de que a democracia
grega funcionou porque a classe antagônica estava excluída do processo
deliberativo: os escravos não poderiam, jamais, participar das decisões
dos homens livres. Em outras palavras, a democracia se edificou numa
ordem social escravagista. Se os escravos fossem incluídos à
participação no processo decisório, certamente toda a ordem
socioeconômica à época seria implodida, a ocasionar uma divisão
estrutural daquela sociedade. E isso é celebrado como algo "natural".
Ora, se os escravos pudessem decidir nas mesmas condições que os
homens livres as leis seriam alteradas e eles, os escravos, acabariam
com a servidão. Resumindo: já no seu nascedouro, a democracia grega
apontava que interesses em contradição são inconciliáveis e, para o
funcionamento desse sistema, alguns sempre dominarão outros.
Vamos entender, então, porque a decantada ideologia segundo a qual a
democracia é um governo do povo é, na verdade, um exercício retórico.
Afinal, os detentores do poder, em cada época histórica, se servem desse
subterfúgio, uma narrativa muito bem construída, para convencer os
cidadãos que os governos democráticos são governos populares e que
atendem aos interesses das maiorias.
A partir do século XVI, a experiência democrática grega é retomada
com a criação dos chamados estados-nação. E, gradualmente,com a chegada
dos burgueses ao centro do poder, foi-se consolidando no ocidente outra
ideia segundo a qual democracia e capitalismo são sinônimos.
Assim, nas democracias contemporâneas os homens (brancos), detentores
do capital, os chamados burgueses, assumiram o controle do poder. E,
como ocorreu na Grécia antiga, para que o sistema democrático
funcionasse nesse novo contexto histórico, era preciso que a classe
antagônica, portanto, os operários, a maioria da população, fosse
excluída dos processos decisórios.
Essa exclusão se concretiza utilizando-se de várias estratégias. Nas
democracias representativas, por exemplo, os sistemas judiciário e
eleitoral são montados para passar a impressão que há isonomia na
competição eleitoral e no acesso ao poder. Na verdade, há mecanismos
(legislação político-eleitoral, por exemplo) que impedem a participação
efetiva da maioria da população na disputa isonômica do poder e limita o
acesso popular nos processos decisórios.
Com a "doutrinação midiática", os eleitores pensam que estão elegendo
representantes. Na verdade, elegem, majoritariamente, os donos do
capital ou os seus prepostos e as elites partidárias que colonizam a
maioria dos partidos, inclusas as agremiações autodenominadas de
"esquerdas".
A ideia de eleições livres, diretas e regulares esconde,
sorrateiramente, uma série de regras procedimentais que impedem a
representação efetiva da maioria da população. É só verificarmos o
perfil socioeconômico dos representantes eleitos nas câmaras de
vereadores, assembleias e no congresso nacional. Constataremos,
cabalmente, que a maioria esmagadora da população não está representada
(de fato) nas casas legislativas, apesar das regras procedimentais da
democracia (eleições livres, diretas e regulares; mídia livre, etc.)
funcionarem perfeitamente. O mesmo se dá em relação ao executivo: os
donos do dinheiro e as elites partidárias sempre se beneficiam das
regras eleitorais e da ação direta do sistema de justiça para dominarem
esse poder.
Por óbvio, se a democracia fosse realmente levada às últimas
consequências, os trabalhadores, que são a maioria, teriam o mesmo poder
dos burgueses. E, sendo maioria, os operários definiriam os rumos da
sociedade.
Na verdade, há muitas aristocracias (governos constituídos por
aqueles considerados como os melhores ou os mais capazes) e plutocracias
(governos dos ricos; ou seja, daqueles que usam do poder econômico para
acessar o poder estatal).
No caso do Brasil atual temos uma cleptocracia: um governo de
ladrões, criminosos, perpetradores de fraudes, operadores da corrupção
em concorrências e licitações públicas e até líderes do tráfico de
drogas que ocupam os poderes dessa pseudo-república e assumiram o
controle do governo através de um golpe
parlamentar-judiciário-midiático-empresarial-elitista. E às favas o
povo...
Outra forma de domínio das democracias pelas elites se dá através da
burocracia. No sistema democrático, os representantes eleitos (membros
das elites econômicas, políticas, intelectuais, religiosas) controlam a
aprovação de leis de interesse dessas minorias; administram a justiça
favorecendo sempre essas classes e manipulam a chamada opinião pública
através de ideologias arquitetadas pelos seus parceiros nos meios de
comunicação de massa. E, hipocritamente, dizem que ideologias são coisas
de "esquerdopatas".
Outro exemplo de manipulação falaciosa do conceito de democracia se
dá através da ciência. Para substituir deus, origem do poder até a idade
moderna, o positivismo e as ciências sociais trataram de consolidar a
ideia segundo a qual o conhecimento tem a última palavra em relação aos
conflitos e dilemas sociais e políticos. A deusa, agora, é a ciência.
Você já reparou que sempre um especialista é chamado a pontificar
sobre os problemas sociais, políticos e econômicos, dando a "última
palavra"? Você percebe que esse especialista ou cientista é sempre um
cidadão da classe média ou um preposto das classes dominantes? (É só
ligar a Globonews ou ler os jornalões brasileiros e você perceberá que o
cientista sempre dá a receita em nome da sociedade e essa receita,
invariavelmente, é para a manutenção do status quo).
Não é à toa que a colonização da academia é um dos mais cuidadosos
meios para a manutenção doestablishment. Você pode até conhecer um
cientista que destoa do pensamento hegemônico, mas observe: para que ele
participe da mídia é preciso ser um dissidente dócil. Caso contrário,
entra para o index da mídia empresarial.
Aliás, a ideia de democracia capitalista se transformou num dogma, a
confirmar que devemos ter fé nessa narrativa. E, ai daqueles que
questionam a democracia...
Chega a ser ridículo ler artigos de renomados cientistas sociais e
políticos, economistas, historiadores, filósofos a defenderem a
democracia procedimental brasileira. Certamente, não vivem o dilema da
fome, do desemprego e das condições análogas à escravidão que fazem
parte do cotidiano de 70% dos brasileiros. E acham que é "natural" uma
democracia nesses moldes. São os colonizados de uma ciência serviçal do
sistema capitalista.
Quer conhecer como a maioria dos cientistas brasileiros (de renome)
são colonizados? É só pesquisar sobre as bolsas de financiamento da
pós-graduação no exterior, os congressos e eventos científicos
internacionais e as parcerias institucionais das nossas universidades e
centros de pesquisas financiadas por fundações e think tanks
norte-americanos. Você perceberá porque a ciência brasileira, no geral, é
voltada para o sucesso individual e o servilismo ao capitalismo.
Concluímos, até aqui, que a democracia é uma narrativa que atende a
certos interesses. Um conceito (teórico) muito bem arquitetado e
consolidado que não se concretiza no mundo real; afinal, não há
experiência concreta de "governo do povo".
Temos que admitir, não obstante, que os regimes democráticos
realizaram importantes avanços sociais no século XX, principalmente após
a segunda guerra mundial. Através de pactos entre elites ou na
adequação das demandas das esquerdas socialistas aos modelos
democráticos capitalistas, tais regimes melhoraram (e muito) a vida dos
trabalhadores em diversos países. Noutros, as migalhas concedidas aos
trabalhadores foram abundantes, passando a impressão que o povo, ou
seja, a maioria dos trabalhadores, decidia os rumos de suas vidas.
Ademais, a decadência de outros modelos de governança consolidou a
crença na eficácia inquestionável das democracias capitalistas.
Experiências de governos socialistas perderam a batalha (da disputa
acerca do melhor modelo de governança) na mídia empresarial, principal
front de manutenção dos governos democrático-capitalistas na atualidade.
No Brasil, nunca tivemos uma democracia real. Historicamente, as
elites nacionais sempre se apropriaram do erário e do estado para se
locupletarem e ampliarem seus negócios e domínios, oferecendo sobejos ao
povo. Em alguns raríssimos momentos, houve pífia expansão do estado
social, não alterando substantivamente uma ordem social excludente,
injusta, perversa e violenta.
Não experimentamos, ao longo do século XX, o "século dos direitos"
(Bobbio), mudanças estruturais na nossa sociedade. A Constituição
Federal de 1988, tardiamente, propiciou alguns parcos avanços sociais à
maioria dos brasileiros.Governos mais sensíveis aos trabalhadores, como
nas gestões do PT, colocaram o estado um pouquinho mais à serviço dos
setores historicamente excluídos e marginalizados.
Mas, veio o golpe. E os neocoronéis, filhos dos eternos saqueadores
do erário e das riquezas nacionais, tomaram novamente de assalto o
poder. E, como uma horda de bárbaros sem temor e pudor, respaldados pela
velha justiça da Casa Grande e vitaminados pela mídia empresarial e
pela classe média dos privilegiados lançaram o país de volta ao passado.
Não à toa, os golpistas recorreram ao lema da velha república (criada
num golpe por latifundiários, maçons, militares e positivistas), "ordem
e progresso", para caracterizar um governo que, entre inúmeros
retrocessos históricos, sociais e políticos não tem um pingo de vergonha
em legalizar o trabalho análogo à escravidão e anistiar os
latifundiários, os banqueiros e os grandes empresários – eternos
larápios do patrimônio e das riquezas nacionais.
O golpe confirmou a tese: a democracia capitalista brasileira só é
boa enquanto uns poucos se locupletam do trabalho e da vida da maioria. E
quando essas castas de privilegiados e perversos resolvem se unir para
defenderem seus interesses a qualquer custo, nem mesmo as aparências
(democráticas) são mantidas.
No Brasil nunca tivemos um processo revolucionário de cima para
baixo. As poucas tentativas de sublevação do andar de baixo foram
violentamente sufocadas pelas elites no poder. Também nunca convivemos
com uma guerra - que desperta solidariedade entre as classes. Talvez,
por isso, os trabalhadores, maioria da população, sempre se contentaram
com as migalhas. Os poucos avanços sociais só foram possíveis em
governos que vigoraram através de pactos entre elites.
Portanto, não há mudanças significativas à vista, pelo menos no curto
prazo. Nas condições históricas atuais, não há espaço para processos
revolucionários. O nível de controle social nunca foi tão sofisticado. O
individualismo, exacerbado pelo capitalismo, destrói a solidariedade e
produz seres humanos que se preocupam só com seus umbigos.
Nesse contexto, defender essa democracia à brasileira e nos iludirmos
na crença segundo a qual eleições regulares corrigirão as mazelas
históricas dessa "coisa pública" que é (e sempre foi) de e para poucos é
falácia.
Como bons cristãos (de paletó), podemos acreditar que o lobo e o
cordeiro viverão desinteressadamente e em paz nesses trópicos marcados
pela pornográfica desigualdade e pela violência e justiça seletivas sob
as bênçãos de Deus. Mas, isso é um "ato de fé".
Desgraçadamente, não há, até o momento, um programa de governo que
trata de debater e pautar as reformas estruturais que conformam esse
modelo vergonhoso de sociedade. E, sem reformas estruturais, teremos que
nos conformar na defesa de uma democracia farsante, que nunca produzirá
verdadeira equidade nessa banda dos trópicos. Continuaremos a viver no
país mais desigual e violento do mundo.
Fonte Brasil 247
"Se eu desejar algo para mim, não seriam riquezas nem poder, mas apenas a paixão da possibilidade. Eu desejaria ter um olho eternamente jovem, ardendo eternamente com a exigência de ver a possibilidade" (Ernst Bloch, filósofo da utopia e da esperança)
"Se eu desejar algo para mim, não seriam riquezas nem poder, mas apenas a paixão da possibilidade. Eu desejaria ter um olho eternamente jovem, ardendo eternamente com a exigência de ver a possibilidade" (Ernst Bloch, filósofo da utopia e da esperança)