segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

A DITADURA DE TOGA


Estamos galopando rumo à ditadura dos ilustres togados, “seres humaninhos” sem-votos e sem legitimidade, que impõem sua vontade sobre a vida e patrimônio das pessoas, sem medir as consequências (...) A desobediência civil, diria o grande mestre da não violência, “está no mesmo patamar jurídico do direito de greve (para proteger os direitos dos trabalhadores), e o direito de revolução (para resguardar o direito do povo exercer a sua soberania quando esta é ofendida). 




Por Antonio Cavalcante Filho 


Leio com atenção o artigo do jurista Lenio Streck, um dos mais conceituados pensadores do mundo jurídico nacional, professor universitário e procurador de Justiça aposentado. Em seu texto intitulado “O juiz Marcelo Bretas tem razão: a Justiça nos dá medo! Mas fracassamos?” Streck mostra muito bem em que está se transformando o sistema de justiça no Brasil. Não se trata de uma disfunção que atinge somente magistrados, mas também se estende aos delegados de polícia e membros do Ministério Público.

Tudo leva a crê que estamos galopando rumo à ditadura dos ilustres togados, “seres humaninhos” sem-votos e sem legitimidade, que impõem sua vontade sobre a vida e patrimônio das pessoas, sem medir as consequências, sem avaliar danos colaterais, gerando prejuízos irreparáveis à nação. Quando o juiz Bretas, em vez da caneta, posa para fotos com fuzil, o recado está dado: ele sonha, que a velha deusa dos olhos vedados, com a balança rota, e espada já cega de tanto decepar pescoços de pobres, em vez de ditadura militar, como a de 1964, ela própria acoberte agora, com o seu manto impuro, a sua própria ditadura para nos impor a “política” dos rentistas nacionais e dos abutres internacionais.

Não sabe ele, o juiz desajuizado, que, seja com a espada da velha “deusa” que aqui, em nosso país, sempre servil aos poderosos, seja com a caneta ou com o fuzil, a verdade é, como diria Gandhi, que também cursou direito, foi advogado e membro do Supremo Tribunal de Bombaim: “quando alguém compreende que é contrário à sua dignidade de homem, obedecer a leis injustas, nenhuma tirania pode escravizá-lo”.

A desobediência civil, diria o grande mestre da não violência, “está no mesmo patamar jurídico do direito de greve (para proteger os direitos dos trabalhadores), e o direito de revolução (para resguardar o direito do povo exercer a sua soberania quando esta é ofendida). Ou ainda, “se a lei não for um instrumento de realização da justiça, o seu descumprimento é legítimo, vale como uma espécie de legítima defesa contra a arbitrariedade e a injustiça”.

No início do próximo mês, por ocasião da abertura do ano judiciário, poucos dias depois de já terem condenado sem provas o ex-presidente Lula, está previsto uma mega manifestação em Brasília, em frente ao prédio da Suprema Corte. Os promotores e juízes querem chamar a atenção da opinião pública para si (que se dane a injustiça cometida dias antes em Porto Alegre contra a esperança dos empobrecidos). Os jornais dizem que o que eles desejam, na verdade, é manter alguns penduricalhos (o STF vai julgar o tal auxílio-moradia).

Uma decisão do ministro Luiz Fux, do STF, de estender o auxílio-moradia para todos os juízes federais do país levou os gastos do governo federal com a moradia de magistrados e procuradores a crescer 20 vezes em apenas três anos. Segundo a BBC Brasil, o custo saltou de R$ 96,5 milhões, de janeiro de 2010 a setembro de 2014, para R$ 1,3 bilhão de outubro de 2014, quando o ministro ampliou as regras do benefício até novembro de 2017.

Em sua defesa, uma associação de classe afirma que há uma defasagem salarial de mais de 40%, mas que nada disso é motivo para manifestação. Segundo ela, as categorias querem chamar a atenção da sociedade para a valorização das carreiras da magistratura e Ministério Público, cuja imagem perante a sociedade não vive o melhor momento.

Nisso eles têm razão!

Nunca houve tanta desconfiança em relação a atuação de alguns togados, seja do Ministério Público ou de juízes, cujas manifestações políticas, partidárias e ideológicas ultrapassaram o limite do aceitável. Os órgãos de correição, inertes, permitiram os excessos, e hoje todo o conjunto sofre com a desconfiança da sociedade. Há um claro desejo de acabar com a vitaliciedade dos juízes (uma garantia de emprego para a vida inteira). Um anteprojeto de lei que prevê a escolha de juiz, por meio de eleição, retomou o andamento, e o fim de uma série de benefícios pode ocorrer.

A culpa é de quem? Bom, se você, “meritíssimo”, viu um colega atuar no processo de acordo com o “nome da capa dos autos”, e notou abuso de autoridade ou exercício arbitrário do cargo público, e não pôs a “boca no trombone”, ou não coibiu, parabéns! Você colaborou para que a boa imagem dos togados e tribunais esteja fragorosamente derretendo.

No texto do jurista Streck, a que me referi na abertura deste artigo, ele comenta as palavras do juiz federal Marcelo Bretas, 7ᵃ Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro. Após ter postado nas redes sociais algumas fotos com um fuzil nas mãos, o juiz teria concedido entrevista a um jornal do grupo da Globogolpe (antiga parceira dos golpistas, desde Getúlio Vargas). Argumentou ele, que a justiça deve ser temida. Veja bem, não disse que juízes e promotores mereçam respeito e admiração da população. Para este juiz, as pessoas devem temer o sistema.

Em parte, ele tem alguma razão!

Jamais me esquecerei de alguns episódios aqui, em Mato Grosso, em que vi de perto o comportamento de certos “magistrados” na defesa dos interesses de fichas-suja. Uma vez, eu estava em um ônibus me dirigindo para uma manifestação contra um desses bandidões da politicalha e fui impedido. Um oficial de justiça conseguiu me localizar e apreender comigo os panfletos denunciando o poderoso corrupto. Outra vez, foi um colega nosso do MCCE, que foi abordado pela polícia comandada pelo coronel Paredes e pelo então procurador da Assembleia Legislativa, Eduardo Jacob, advogado e depois juiz do TRE/MT. Além de perder os impressos que denunciava José Riva, tido, na época, como o “maior ficha-suja do Brasil”, o militante levou uns “sacodes” dos “meganhas”.

Em ambos casos, uma decisão judicial nos proibia de denunciar os ladrões do erário num momento em que as penitenciárias de Mato Grosso estavam superlotadas apenas de “batedores de carteira”, “ladrõezinhos de galinhas”.

Sinceramente, não levo meus sonhos e frustrações para que um juiz ou promotor me apresente uma “solução estatal para o conflito”. Mas tinha a esperança de que, ao menos, o espírito democrático pudesse ingressar nos tribunais, que decisões judiciais humanitárias pudessem diminuir a dor dos nossos irmãos que não possuem terra para plantar, um teto para viver com sua família, nem emprego ou política pública para estas necessidades de primeira grandeza.

Sempre achei que as greves e manifestações dos trabalhadores devessem ter a proteção dos juízes e promotores, mas pelo que vejo é exatamente o contrário. Basta uma movimentação popular, fechando ruas exigindo direitos fundamentais, que lá vem a gloriosa PM em nome da “ordem”, com uma liminar judicial numa das mãos e cassetete, balas de borracha e “bombas de efeito moral” na outra para reprimir os que têm fome e sede de justiça. Mas se for, por exemplo, a televisão afiliada da Rede Globo em Cuiabá, fechando a Avenida do CPA por uma semana (em defesa do próprio lucro) não há problema algum!

Pois bem.

Vi, com vergonha e tristeza alguns juízes de tribunais superiores decidirem de acordo com os interesses da bandidagem de determinados grupos de políticoides, e em harmonia com os interesses econômicos dos lesa-pátria e do grande capital. E isso é feito sem que nenhuma entidade de classe de juízes, delegados de polícia e promotores se manifeste questionando a legitimidade.

Agora mesmo, sabe-se que a chefe de gabinete do presidente do Tribunal Federal da Quarta Região, lá de Porto Alegre, iniciou a coleta de assinaturas pedindo a prisão do ex-presidente Lula que, por acaso, possui recursos para serem julgados por aquele tribunal. Mas isso não te incomoda, não é mesmo, “meritíssimo”? Bom, você pode não concordar com as ideias do Lula, mas pode imaginar que uma pessoa, que lhe seja muito próxima (ou mesmo você), tenha que se submeter a um julgamento em que todos os funcionários do juiz estejam na sala de audiência gritando por sua condenação? Imaginou o absurdo?

Fecho o raciocínio, retomando o texto do professor Lenio Streck. Ele escreve que na sua infância tinha medo do “caminhão que levava criancinhas”. Na cidade onde moravam, seus pais costumavam assustar os filhos desobedientes com a ameaça de que seriam levados por um caminhão que por ali passava recolhendo crianças que não se comportavam bem, fazendo-as desaparecer, entregando-as às bruxas. É uma versão interiorana do “bicho papão” e do “homem do saco”, entidades abstratas que geravam medo às crianças.

Então, em vez de respeito ao sistema de justiça, devemos ter medo, como diz o juiz Bretas? Mas, medo de que? Da tirania? Do abuso de autoridade, da ditadura togada? Medo, quem devem sentir são eles, os golpistas. A história da humanidade indica que no final os tiranos sempre caem.

Mohandas Gandhi (chamado de “Mahatma” ou a “Grande Alma") pregou a resistência à dominação e a luta contra o império britânicos por meio da não-violência e da desobediência civil. E assim, desarmado, orando e jejuando, dizia, “a posse de armas insinua um elemento de medo, se não mesmo de covardia”.

Não será isso que o juiz Bretas, ao postar nas redes sociais suas fotos armado com fuzil está sentindo? Um “medinho” da “bruxa, do “homem do saco”, ou do “bicho papão” levar seus penduricalhos, suas regalias?

Antonio Cavalcante Filho, o Ceará, é sindicalista e escreve neste espaço às sextas-feiras - E-mail: antoniocavalcantefilho@outlook.com

Fonte RD News