Condições totalitárias fazem parte das estruturas da acumulação capitalista", afirma a professora de Teoria Política Zeynep Gambetti.
Por Tatiana Carlotti
“Nós
estamos testemunhando a reemergência do fascismo no alvorecer do século
XXI? Estariam os sinais dessa reemergência a ser buscado no regresso da
linguagem e da prática racista, sexista, xenofóbica e explicitamente
incitadora do ódio? A resposta é sim se considerarmos que a história
parece estar se repetindo”.
Com
essas considerações, Zeynep Gambetti, professora de Teoria Política na
Bogazici University (Turquia), deu início à sua conferência no seminário
Os Fins da Democracia, realizado entre os dias 7 e 9 de novembro, no SESC Pompeia.
“Valores
progressistas estão sendo derrubados ou totalmente desmantelados.
Milhões de imigrantes, refugiados e pessoas apátridas não são
reconhecidas como seres humanos portadores de direitos por países que
afirmam defender os direitos básicos. Contudo, a história não pode se
repetir de forma idêntica visto que o mundo em 2017 não é mais o mesmo
que o mundo de 1917”.
Inspirada pelos estudos de Hannah Arendt relativos às conexões entre totalitarismo e imperialismo, Gambetti destacou:
“Se
admitirmos que nem todos os totalitarismos precisam ser fascistas, mas
que todos os fascismos tendem ao totalitarismo, temos boas razões para
acreditar que a análise de Arendt pode nos ajudar a ver como o fascismo
ressurgiu no século XXI, e as relações possíveis entre imperialismo e
totalitarismo podem se repetir hoje, mas, dessa vez, entre
neoliberalismo e os novos fascismos.”
“Apesar
das diferenças no pano de fundo político e social, o que é comum em
todos os casos de tendências fascistas percebidas ao redor do mundo – de
Trump a Putin, Le Pen a Erdo%u01Fan – parece ser a operação de uma economia política neoliberal”, contou.
Em
sua avaliação, seria um erro “supor que a financeirização neoliberal
tem somente impacto econômico, deixando intactas tanto a conduta
política quanto as subjetividades coletivas e individuais”. Destacando
que o capitalismo financeirizado traz “imperativos econômicos em
questões sociais e políticas”, Gambetti detalhou seu impacto:
“Além
de transformar estratégias de governança dos Estados, o
[neoliberalismo] produz um tipo específico de moralidade e
subjetividade. Os desempregados, os assistidos, usuários de serviços
públicos, populações inteiras são moralizadas e responsabilizadas pelo
seu próprio fracasso em se integrar ao sistema. O poder da dívida não é
somente discursivo, mas consiste na reorganização da totalidade das
esferas sociais de forma a reforçar um modo de vida compatível com o
reembolso”.
Mecanismos do neoliberalismo
Em
sua exposição, ela elencou alguns dilemas do neoliberalismo, visando
captar as continuidades e descontinuidades entre os fascismos de agora e
de antes. Segue abaixo, cada um desses dilemas. É interessante notar
como todos se aplicam perfeitamente ao caso brasileiro e às lutas
travadas pela esquerda nos últimos anos, inclusive, o golpe:
Diminuição de direitos e erosão dos horizontes normativos
“Não
somos mais seres humanos portadores de direitos. Muitos estudiosos
concordam que a própria noção de direitos universais, liberais ou
sociais, foi relegada ao esquecimento pelo neoliberalismo. Isso não
significa apenas que eles estão sendo desrespeitados, mas que o próprio
desejo pelos direitos está sendo minado (...) Sob o sistema neoliberal
de avaliação, o cidadão deve algo ao Estado. Ele é o devedor e não o
contrário. Ele se torna responsável e culpado. O capital humano busca
fortalecer sua posição competitiva e aumentar o seu valor. Em suma: nas
condições neoliberais a cidadania implica apenas obrigações e não
direitos, uma noção sacrificial de cidadania”.
Atomização e massificação dos indivíduos
“A
reorganização societária neoliberal implica tanto a atomização, quanto a
massificação. A inconstitucionalidade dos direitos assume uma forma
cotidiana tangível com a aplicação de padrões de sucesso e progresso
feito sob medida (...) Cada indivíduo é monitorado individualmente a
partir dos chamados critérios de desempenho, a inabilidade de atingi-los
não apenas impele punições e perdas materiais, mas também consequências
subjetivas na forma de perda da autoestima. Por outro lado, processos
societários neoliberais são extremamente massificadores, já que as
normas, de acordo com as quais a economia da dívida funciona, são
derivadas de curvas de normalidade baseadas em estatísticas relativas à
população como um todo.”
Falta de externalidade
“A preocupação com a segurança, insiste Foucault, é um componente indispensável do laissez-faire,
porque a liberdade dos mercados está ligada à regularização e à
securitização de práticas sociais diretamente ou indiretamente
relacionadas a processos de produção, distribuição e consumo.
Securatização é o controle de fluxos incalculáveis através de outros
fluxos. É a técnica que permite que o poder opere sobre populações e não
sobre pessoas. Notem que a população é uma entidade estatística
impessoal, enquanto que a última [pessoas] sempre é abordada como
sujeito coletivo. Os espaços de experiência da população não são
definidos por lei, mas pela normalização”.
“Ao
oposto da lei, a securidade não só admite risco, mas também é nutrida
por ele. Enquanto a lei impõe fronteiras absolutas para determinados
tipos de comportamento, a securidade permite flutuações dentro de alguns
âmbitos, por exemplo, a lógica securitarista impõe competitividade na
população por decretos. O seu recurso é a multiplicação de tipos de
contrato, qualificações, benefícios e assim por diante. E a
flexibilização do mercado de trabalho produz o efeito de competição”.
Sacrifício de parte da população
“É
crucial à lógica da segurança que se sacrifique uma parte da população.
A preocupação com a segurança é um componente indispensável do
moralismo atual e dependente da existência de corpos disponíveis (...).
Isso significa que populações, necessariamente, devem ser compostas por
anomalias de tal forma que a eliminação desta permitiria o retorno à
curva da normalidade quando necessário. A noção de risco da ameaça se
torna parte integrada à vida cotidiana.”
Insegurança permanente
“O
paradoxo da socialização dos riscos subjuga o indivíduo a um estado
permanente de insegurança e precariedade. As curvas da normalidade e os
riscos são inconstantes e oscilam conforme as forças indisciplinadas da
flutuação financeira. Portanto, nenhuma quantia de esforço gasto para se
transformar a si mesmo em ´capital humano vendável´ irá realmente
salvar alguém de ser sacrificado.”
Violência contra obstáculos
“Por
mais de 40 anos, as economias competitivas de mercado e a
financeirização do capital levam à eliminação violenta de obstáculos no
novo regime de acumulação. Poder sindical, direitos sociais,
dissidências políticas foram eliminados por meio de golpes em certas
partes do mundo (...) Pacotes de austeridade, guerras étnicas, guerras
contra o terror foram usados para o mesmo fim em outros países. Para o
inventário precisamos utilizar o termo ´capitalismo de desastre´, no
qual, turbulências sociais, desastres naturais e até quebras na bolsa de
valores tornam-se meios de transferir capital e propriedade de credores
afetados aos poderosos”.
Neoconservadorismo
Ao
analisar os discursos que sustentam o neoliberalismo, ela salientou que
“o neoconservadorismo se tornou uma ferramenta ideológica para promover
os mercados liberais. O discurso do neoconservadorismo esconde
problemas sociais e econômicos, fazendo com que apareçam problemas
militares”.
Exemplos
não faltam. “A luta contra o chamado terrorismo se tornou o instrumento
eficiente para a criminalização de identidades dissidentes. Uma das
consequências disso é a declaração e o prolongamento dos estados de
emergência que convenientemente restringem direitos básicos e permitem
que líderes políticos adquiram mais poder e influência”.
Ponderando que “a racionalidade econômica ainda permeia o neoliberalismo”, que ele não poder ser considerado “totalitário per se” e que “novos
fascismos não surgem automaticamente” dos processos neoliberais,
Gambetti ressaltou que um aspecto é evidente: “as condições totalitárias
não são mais momentos extraordinários causados pelos apertos do
capital, mas fazem parte das estruturas da acumulação capitalista
neoliberal”.
Neste
sentido, destacou, “seria realista prever a produção esporádica e
sistêmica de fascismos pelo mundo já que a racionalidade neoliberal está
predisposta a produzir o fascismo”.
Luta contra o fascismo
Em
suas considerações finais, Gambetti disse não acreditar que a luta
contra o fascismo possa ser vencida somente pelo esforço de se
contrabalancear abertamente grupos fascistas ou supremacistas. “É
preciso encontrar outras formas de renovar a lutar contra o capitalismo
neoliberal encontrando ações políticas diferentes capazes de transcender
essas forças”.
Dentre
essas ações, ela destacou os esforços do Fórum Social Mundial,
mostrando uma foto (imagem acima) do primeiro encontro em Porto Alegre,
em 2001.
“Vocês
provavelmente lembram desta foto, tirada em 2001, em Porto Alegre,
quando o Fórum Social Mundial, o primeiro do mundo, começou neste país.
Ali havia um grande esforço de renovação da luta política em todo o
mundo e de encontrar alternativas aos modos de vida política, social e
econômicas para o combater o neoliberalismo. De alguma forma, nós
devemos reanimar este espírito”, concluiu.