República farmacopornográfica: Oscar Maroni simula assassinar mulher sob imagem de Cármen Lúcia e Moro no salão do Bahamas, casa de prostituição em São Paulo. Essa cena é emblema de um país dominado por elitistas, escravocratas e machos valentões
Cena na Bahamas é emblema de um país dominado por elitistas,
escravocratas e machos valentões. Como proporia Deleuze, é tempo de
encontrar brechas não só para mudar a sociedade, mas a vida mesma
Por João Vitor Cardoso
“O padrão majoritário é vazio. O homem macho, adulto, não tem devir. Pode devir-mulher e virar minoria.” Gilles Deleuze
Como observou Suely Rolnik em Outras Palavras, o script dos novos golpes de Estado “é um verdadeiro show de psicopatia”. A imagem de Cármen Lúcia sob o letreiro iluminado da boite Bahamas, enquanto Oscar Maroni simula assassinar uma mulher seminua, para alguns, celebra a vitória da moralidade pública contra a corrupção. A cena do corpo feminino extirpado, forçado ao ato de exposição sexual, abaixo do quadro de Cármen Lúcia, é não só metafórica, mas também paradoxal: um gran finale para o seriado pós-verídico que coroa o golpe de 2016.
“É sexy gritar contra o Lula”, disse a coordenadora do Vem pra Rua. Por sua vez, Sabrina Boing Boing
postou uma foto sensual para comemorar a ordem de prisão. Nessa senda,
uma série de iniciativas e movimentos que não se dizem políticos, nem
têm qualquer relação com a política representativa — não só cafetões
moralistas, mas também elitistas, escravocratas, racistas, machos
valentões — uniram Cármen Lúcia a Oscar Maroni. Esses novos personagens
de poder, que apalpam e depauperam, que nos atravessam e nos torpedeiam,
entorpecem, abaixo da linha da consciência, para não dizer, abaixo da
linha da cintura. Seria a constatação de algum tipo de regime “narcoticosexual”, como diria Paul B. Preciado, vigente no Brasil?
Vale lembrar, a presidente da Suprema Corte (nota
gramático-política: Cármen recusou o uso do termo presidenta), que não
se confunde com a Musa da Lava Jato, desde o início adotou uma postura masculina: renunciou ao “fazer-se mulher”
como categoria ético-política para engajar-se na vida pública,
filiando-se a uma corrente ideológica segregada e dominada por homens
embolorados.
Em Mil Platôs, Deleuze & Guattari (2008, 70) apontam que “todos os devires começam e passam pelo devir-mulher”. Os autores argumentam que a noção de “ser humano homem macho heterossexual branco adulto” é o ponto focal que estrutura o pensamento ocidental, que é excludente e repressivo em vários níveis. Em suma, dizem: “o padrão majoritário é vazio. O homem macho, adulto, não tem devir. Pode devir-mulher e virar minoria”.
Ou seja, o homem não entra em devir porque, para a forma homem, que
dizima modos de vida minoritários, frágeis, hesitantes, ora ainda
nascentes, tudo está em segundo plano, tudo veio depois dele; ao passo
que o devir-mulher, devir-revolucionário, causa a transformação daquilo
que somos, questionando as instituições e acontecimentos que reproduzem
as estruturas de dominação.
Com inspiração nestes conceitos, a pós-feminista
Paul B. Preciado identifica na atualidade um regime farmacopornográfico,
que se define por dois polos, que operam mais em convergência do que em
oposição: a farmacologia (tanto legal quanto ilegal) de um lado e a
pornografia de outro. Nesse sentido, como dispositivo virtual
(audiovisual, masturbatório, cibernético), a Lava Jato foi alçada à
qualidade de espetáculo sexual. A imagem que viralizou nas redes revela
de forma singular a pragmática do capitalismo narcotisexual
institucionalizado. Difícil ser mais explícito.
Sobre a presunção de inocência, mesmo com Lula
preso, outros condenados em segunda instância seguirão soltos. O
julgamento tão aberrantemente anti-isonômico, vale lembrar, não recebeu a
benção dos gerontes mais antigos da Corte. A proteção de direitos
fundamentais, a supremacia da Constituição, o império da lei, tudo isso
cedeu ao triunfo da colonização do Poder Judiciário pela grande imprensa,
esta responsável pelo modus operandi do novo regime
colonial-capitalístico. O julgamento de quarta-feira (4 de abril) foi um
atentado ao pudor, ou como disse Lenio Streck, “um tsunami jurídico”. Nessa jusante, “é
preciso distinguir redemoinho de pororoca, quais direções são
constituintes, quais apenas repisam o instituído e quais comportam risco
de retrocesso institucional”, lembrando o alerta de Peter Pál Pelbart, ao comentar as jornadas de julho de 2013.
É tempo de reativar a micropolítica tropical, nossa capacidade coletiva
de descolonização do inconsciente e de resistir cotidianamente aos
agenciamentos capitalísticos e neocoloniais que grassam por toda parte —
não só para mudar a sociedade, senão a vida mesma. Nesse cenário de
crise constitucional, a restauração da legitimidade de nossas lutas
constituintes passa por devir-mulher, por devir-negro, por devir-animal,
devires que estão na linha de frente da resistência à barbárie
capitalista.
Fonte Outras Palavras