Pacote “anticrime” do ministro inclui medida que, copiada dos EUA, ataca garantias civis, produz encarceramento em massa e vitima, em especial, negros e pobres. Há alternativas
Por João Telésforo
Entre as propostas apresentadas pelo Ministro Sérgio Moro na
segunda-feira, 4 de fevereiro, como parte de seu pacote de medidas
“anticrime”, uma das mais graves e perigosas é a importação do
“plea bargain” (ou “plea bargaining”),
instituto fundamental do sistema de justiça criminal dos Estados
Unidos – país com maior população carcerária do mundo. Nesse
modelo, o Ministério Público e o investigado ou denunciado podem
celebrar acordos de não persecução penal ou de redução de penas,
mediante confissão de culpa.
Argumentaremos, aqui, que se trata de uma medida vocacionada a
aprofundar graves problemas do nosso direito processual penal,
aspecto fundamental da epidemia de violência que assola o Brasil.
Apontaremos também, ao final, uma proposta de reforma do processo
penal, no sentido oposto àquela apresentada por Moro, que pode
contribuir para um enfrentamento efetivo à crise sistêmica da nossa
justiça criminal.
A experiência do “plea bargain” nos Estados Unidos: instrumento para o Estado policial e o superencarceramento
Os defensores da proposta de Moro argumentam que a celebração
desses acordos geraria ganhos de celeridade e eficiência do processo
penal, beneficiando a sociedade com menos gastos com a máquina do
sistema de justiça e menos tempo para dar início à execução das
penas. Os infratores, por sua vez, teriam, supostamente, a
oportunidade de cumprir penas menores. Não é isso que demonstra,
entretanto, a experiência internacional.
Nos Estados Unidos, 97% dos processos criminais são concluídos com
acordo de plea bargaining, de modo que a
função de julgar foi transferida, sistemicamente, dos juízes para
os promotores. Assim também acontecerá caso a proposta
de Sérgio Moro seja aprovada: na
prática, o Ministério Público acumulará a função de acusar com
a de sentenciar no processo penal, e o juiz será reduzido a uma
função residual, de homologar acordos já celebrados pelas
partes, devendo deixar de fazê-lo somente em caso de manifesta
ilegalidade ou desproporcionalidade.
Esse modelo tem sido cada vez mais criticado pelos próprios
norte-americanos, como se viu recentemente, em dia 2/11/18, em sessão
plenária da seção de justiça criminal da American Bar
Association (análoga à nossa OAB), dedicada ao debate do tema
(ver aqui).
Conforme a respeitada organização Fair Trials – uma das
convidadas para aquela sessão –, a experiência mostra que o “plea
bargain” não promove “livre acordo” entre denunciado e
Ministério Público, e sim o peso da ameaça de um processo penal ou
de uma condenação à cadeia, como forte “incentivo” ou coação
para que o acusado aceite a proposta dos promotores.
Jed Rakoff, juiz federal sênior em Nova York, que também participou
do painel, tem argumentado há anos que esse modelo de processo penal
padece de falta de transparência: consiste em um “sistema de
justiça totalmente secreto”, menos passível de controle público;
promove forte desequilíbrio a favor da acusação; e conduz à
condenação sistemática de pessoas inocentes, sem que elas tenham
podido, sequer, se defender em juízo. Vide, a esse respeito, o
artigo “Why
Innocent People Plead Guilty”, publicado por Rakoff em novembro
de 2014, entre outras matérias
sobre o assunto.
Na prática, esse modelo de
persecução penal sepulta, definitivamente, os princípios da
presunção da inocência, ampla defesa e contraditório, por
possibilitar a condenação criminal sem ter por base a produção de
provas em juízo, a instrução criminal conduzida pelo juiz, segundo
o devido processo legal, com garantias à presunção da inocência,
ao contraditório e à ampla defesa.
Quandoa parte acusadora se confunde com a julgadora, não
subsiste a concepção democrática do processo penal, como anteparo
do cidadão ante o arbítrio punitivo do Estado; temos, antes, um
Estado policial. Não surpreende que a generalização da condenação
penal “negociada” tenha sido um dos responsáveis por gerar, nos
Estados Unidos, a maior população carcerária do mundo. Rakoff
argumenta
que esse modelo ganhou cada vez mais força para ampliar a capacidade
do sistema de justiça processar o rápido aumento dos crimes levados
a julgamento, em especial a partir da década de 1970, com o impacto
de políticas de ampliação do Estado penal, notadamente a “guerra
às drogas”.
Geram indignação, mas tampouco produzem surpresa, as pesquisas que
têm demonstrado que os acordos penais produzem maiores taxas de
encarceramento da população negra e latina do que da branca,
inclusive pelos mesmos crimes (relacionados a drogas por exemplo) –
vide aqui,
aqui
e aqui.
Deve-se recordar que negros e latinos são 31% da população
estadunidense, mas quase o dobro (59%) da população prisional do
país.
Justiça penal “negociada” ou imposta?
O que ocorre, no modelo realmente existente de “justiça penal
negociada”, não é a manifestação livre e voluntária de vontade
por parte do acusado, mas a criação de uma forte estrutura de
incentivos para que abdique de seu direito de ampla defesa, da
produção de provas no processo, e se autoincrimine, para evitar uma
pena maior, ainda que a considere injusta. Conforme Rakoff, esses
“acordos” equivalem a um “contrato de adesão”, em que uma
parte pode efetivamente impor sua vontade à outra. Segundo explica o
jurista Geraldo Prado, professor de Direito Processual Penal da UFRJ,
ex-Promotor de Justiça e Desembargador aposentado, “não se produz
consenso entre sujeitos que estão em posição desigual”.
Prado lembra
que o professor John Langbein, da Faculdade de Direito da
Universidade de Chicago, em texto da década de 1970, comparou o
sistema penal do “plea bargaining” com a justiça criminal
medieval europeia, baseada na tortura – que também visava a
extrair a confissão dos acusados, também com supostas salvaguardas
para que esta não decorresse somente do afã de se livrar do
sofrimento imposto. Segundo Langbein (v. aqui),
há paralelos notáveis quanto à “origem, função e até mesmo
pontos específicos da dotrina”, entre os dois sistemas.
O caráter não consensual da “justiça penal negociada” já pode
ser observado no Brasil, na experiência das transações realizadas
pelos juizados especiais criminais (para crimes de menor potencial
ofensivo, de penas de até dois anos), desde 1995. Vera Ribeiro de
Almeida, na dissertação de mestrado “Transação
Penal e Penas Alternativas: uma pesquisa empírica nos juizados
especiais criminais do Rio de Janeiro” (Universidade Federal
Fluminense, 2014, p. 219-220), concluiu: “durante as audiências
preliminares e na fase de aplicação das transações penais, o
‘acordo’ foi gerado pelo mecanismo da imposição da vontade do
agente estatal, fosse ele representado pelo atuar do conciliador ou
do promotor de justiça. Os diálogos entre as partes foram evitados
pelas interferências dos operadores e as reivindicações das
vítimas foram afastadas, em face do objetivo exclusivo da
penalização do autor do fato. (…) Em geral, a transação penal
foi representada como imposição de uma pena, de forma antecipada,
prevalecendo o caráter repressivo deste procedimento”.
A autora observou também “práticas que, fundadas na mesma lei,
variaram conforme o juizado, a situação econômica ou social do
infrator, ou ainda, a necessidade de se confirmar e assegurar a
autoridade do promotor de justiça, entre tantos outros critérios. O
‘processo’, por sua vez, foi representado como uma ameaça ao
cidadão e não como uma garantia”. Ela também chama a atenção
para a “ausência das justificativas das escolhas dos promotores de
justiça” – um dos aspectos da falta de transparência desse
instituto, apontada por Rakoff –, o que “refletiu sua
desobrigação quanto à prestação de contas de seus atos e sua
irresponsabilidade frente ao serviço público, comportamentos estes
que embora se aproximem do perfil de um Estado de polícia,
representam a forma muito característica do Estado Democrático de
Direito brasileiro”.
Sérgio Moro pretende, agora, ampliar a possibilidade de celebração
de acordos de não persecução penal (em que o Ministério Público
não apresenta a denúncia, em troca da confissão e ajustamento da
pena) para crimes com penas de até quatro anos. Além disso, propõe
também a possibilidade de celebração de acordos já após o
recebimento da denúncia; nesses casos, aplicáveis a todo e qualquer
crime (inclusive aqueles com penas maiores), não se trata de acordo
de não persecução penal, por óbvio (uma vez que a denúncia já
foi apresentada), mas para a aplicação imediata das penas, com
renúncia à produção de provas e à apresentação de recursos,
pelo denunciado. Que dizer, então, da pessoa que já esteja presa
provisoriamente – situação de mais de um terço dos mais de 650
mil presos do Brasil? Estará em condições de negociar “livremente”
um acordo penal?
Não se trata, portanto, de uma mudança marginal, mas de uma
transformação estrutural do processo penal brasileiro, para que,
tal como nos Estados Unidos, o modelo da justiça penal “negociada”
– ou imposta – pelos promotores torne-se predominante.
O rechaço a esse modelo de negociação não implica negar quaisquer
métodos “alternativos” de resolução de conflitos. Devemos
fortalecer a participação ativa das vítimas no processo penal,
conforme propõe o paradigma da justiça restaurativa; a proposta de
Sérgio Moro, entretanto, não caminha nessa direção.
A inconsistência do discurso neoliberal que sustenta o modelo punitivista do “plea bargain”
Os defensores da justiça criminal “negociada” argumentam que
produzirá redução de gastos com a máquina do processo penal e a
conclusão dos processos em tempo mais breve. Em suma, ganhos de
eficiência. Trata-se de um modelo impulsionado pela crescente força
da abordagem do “Law and Economics” ou “análise
econômica do direito”, que submete a estrutura do Judiciário e as
suas decisões a cálculos de natureza econômica, vinculados à
redução do gasto público e maximização do lucro privado.
Contra o raciocínio econômico estreito da propaganda do “Law
and Economics”, devemos considerar, em primeiro lugar, que
direitos fundamentais – ao devido processo legal, à presunção de
inocência, contraditório e ampla defesa – não podem ser
sacrificados porque seriam muito “caros”, em nome da lógica da
“austeridade fiscal”. A análise de custo-benefício da L&E
(ou AED) depara-se com sérios limites, diante do fato de que não é
possível mesurar quanto vale uma vida, ou condenar uma pessoa
inocente a passar anos na prisão, ou produzir uma catástrofe social
por meio da política de encarceramento em massa [sobre o assunto, v.
o livro “Priceless:
On Knowing the Price of Everything and the Value of Nothing”,
de Frank Ackerman e Lisa Heinzerling, de 2004]. O nosso desafio é
estruturar as decisões de política econômica e política pública
para garantirem direitos fundamentais (segundo propõem abordagens
como a “análise
jurídica da política econômica”, AJPE), e não nos
conformarmos à violação de direitos em nome de decisões
econômicas contingentes, apresentadas como necessárias.
De qualquer modo, em segundo lugar, a generalização do sistema de
“justiça penal negociada”, nos Estados Unidos, ao ser um dos
instrumentos para o superencarceramento, não gerou economia para o
Estado – pelo contrário, dados os altos custos do sistema
prisional. Produziu, isto sim, lucros vultosos para grades empresas
privadas que têm explorado a privatização dos presídios, nesse
país, ao longo das últimas décadas. O “plea bargaining”
avançou decisivamente, nos EUA, a partir da década de 1970, de modo
simultâneo às políticas neoliberais de privatizações, desmonte
dos serviços públicos, precarização das relações trabalhistas e
aumento do desemprego. Não se trata de uma coincidência, mas fruto
da maior incidência de uma determinada classe sobre as
decisões do Estado, vinculado à dinâmica do capitalismo
crescentemente concentrado, financeirizado e “improdutivo”.
Em terceiro lugar, e não menos importante, há propostas de reformas
da legislação penal e do sistema de justiça criminal que, ao mesmo
tempo que promoveriam efetiva redução de gastos estatais (e,
inclusive, aumento de arrecadação), também seriam positivas para a
política de segurança pública e para a garantia de direitos. Entre
estas, encontram-se: o fim
da política da guerra às drogas;
o estímulo à justiça restaurativa e às chamadas “medidas
alternativas” à prisão; e ofortalecimento das garantias no
processo penal.
A reforma necessária do processo penal: contra o encarceramento em massa
A reforma do processo penal de que precisamos caminha precisamente no
sentido oposto ao da proposta de Sérgio Moro. São urgentes medidas
como aquela proposta pelo ex-deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ),
no PL 7973/2017, que cria a figura do juiz
de garantias, responsável pelo controle da legalidade da
investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos fundamentais
do acusado. Atualmente, um mesmo juiz participa da fase de inquérito
e profere a sentença. Esse projeto atribui ao juiz de garantias
atuar na fase da investigação, e ao juiz do processo julgar o
mérito do caso, tendo competência para controlar a legalidade das
provas produzidas na fase de investigação.
“Trata-se de alteração indispensável à materialização da
ideia de sistema processual penal acusatório, em que as figuras
do acusador e do julgador estão organicamente separadas”,
argumenta Wyllys.
O projeto apresentado por ele foi elaborado pelo Instituto Brasileiro
de Ciências Criminais (IBCCRIM), em conjunto com a Pastoral
Carcerária Nacional – CNBB, a Associação Juízes para a
Democracia e o Centro de Estudos em Desigualdade e Discriminação
(da Faculdade de Direito da UnB), como parte de um conjunto de dez
medidas processuais
penais contra o encarceramento em massa.
O desencarceramento,
enfim, é a saída para aumentar a eficiência do nosso processo
penal; gerar maior celeridade dos julgamentos; debilitar uma das
fontes do poder de organizações criminosas, que recrutam novos
membros em prisões superlotadas e sucateadas; e, sobretudo, reduzir
injustiças estruturais cometidas por um sistema de justiça que
opera com gritantes filtros de seletividade de classe e raciais.
É exatamente para isso que tem apontado o crescente movimento, nos
Estados Unidos, em defesa da reversão da política de encarceramento
em massa. Da luta social à inserção institucional, essa pauta tem
ganhado ressonância e força crescente na sociedade americana. Se é
para seguir exemplos gringos, nossos políticos precisam de menos
“Law and order”, e mais aprendizado com Angela
Davis e Alexandria
Ocasio Cortez.
* Com colaboração de Pedro Brandão (Doutor em Direito pela Universidade de Brasília)
Fonte Outras Palavras
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