Menos de seis meses após a posse, centenas de milhares protestam contra Bolsonaro. Atos sugerem caminho para enfrentar ultra-capitalismo e ignorância, mas expõem lacuna: falta saída alternativa
Por Antonio Martins
Saiu melhor que a encomenda. Os sinais de que a oposição aos cortes
de verbas na Educação e Ciência era potente, visíveis há dias em
centenas de assembleias, desaguaram caudalosos nas ruas. Mais de cem mil
pessoas no Rio, Recife e em São Paulo. Dezenas de milhares em Salvador,
Fortaleza, Belém, Brasília, Belo Horizonte, Florianópolis, São Luís e
Porto Alegre. Centenas de cidades com protestos numerosos. Mais uma vez,
ficou claro que a hipótese de “onda de apatia” é falsa. A tentativa de
submeter o Brasil à tirania dupla do ultracapitalismo e do obscurantismo
cultural e comportamental tem brechas e contradições. Elas vão se
manifestar com mais frequência, daqui em diante. Quando houver sabedoria
política – como nas últimas semanas – irão se traduzir em novas
derrotas, e provocar divisões no bloco conservador.
No caso da Educação, a grande fissura foi cavada pelo próprio
ministro. Ele chegou ao posto porque a ala lunática da coalizão
governamental, responsável por dar ao presidente algum verniz antiestablishment o
exigiu. Mas foi o caráter provocador de Weintraub que o levou a
“politizar” os cortes de verbas; a transformar o que o neoliberalismo
atribui a puro cálculo matemático em punição por “balbúrdia”; a
despertar a indignação dos estudantes e encher as ruas. As entidades
estudantis foram sagazes. UNE e UBES compreenderam que seriam tanto mais
fortes quanto mais respeitassem a autonomia, iniciativa e criatividade
das escolas e universidades. Nas manifestações, não houve dirigismo
relevante – e, na maior parte dos casos, nem carros de som. Esta
abertura é de enorme importância, porque até o momento parece faltar,
por exemplo, às centrais sindicais, na luta contra o desmonte da
Previdência pública.
* * *
A massividade e a popularidade dos protestos provocaram um curioso
efeito na velha mídia. Até ontem, este outro ator essencial para a
vitória de Bolsonaro ignorava os preparativos para a grande mobilização.
Certamente, preferiria que esta não ocorresse. Mas quando se tornou
incontornável, as TVs e os jornais adotaram um estratagema ambíguo – e
engenhoso, do ponto de vista de seus interesses. A manifestação era
legítima porque Weintraub – e também o presidente – foram grosseiros e
arrogantes, o que não condiz com as boas maneiras da política
institucional… Mas os cortes seriam necessários – afinal, a economia
está em declínio e o governo não tem como produzir riquezas, segundo a
lógica hegemônica. Portanto, os estudantes e professores têm razão,
desde que ousem criticar apenas o personagem caricato, nunca o sistema
que o ampara.
Um comportamento
ambíguo foi adotado, no mundo parlamentar, pela maioria do Congresso
– cuja expressão maior é o Centrão. Uma vasta maioria de
parlamentares do grupo impôs uma derrota humilhante ao governo
ontem, quando o ministro Weintraub foi convocado, a contragosto, a
explicar-se no Congresso. Mas hoje, quando ele compareceu ao
Parlamento e fingiu alguma civilidade, mesclando o fundamentalismo
com a defesa da ortodoxia econômica (além de se amparar na
simploriedade de uma fala francamente pueril), a valentia do
“Centrão” se desfez e o governo evitou que a fissura se
transformasse em abismo inconsertável.
* * *
A postura de Bolsonaro foi mais áspera. De Dallas, ele atacou,
grosseiro, os manifestantes (“massa de manobra”, “idiotas úteis”, que
“não sabem quanto é sete vezes oito, nem a fórmula da água”). Talvez
seja sua empáfia ignorante: a crença de que, por ter vencido as eleições
com postura ultrabeligerante, poderá mantê-la agora, quando se espera
que governe). Talvez, seja um cálculo político esperto, visando a
própria sobrevivência: que restará de Bolsonaro, se até sua imagem se
reduzir à de um político tradicional, agora que sua presidência
mostra-se tão desencantadora, tão incapaz de resolver os problemas do
país?
Mas esta atitude beligerante terá um preço. À medida em que o governo
naufraga, e em que o presidente insiste em fazer o papel de outsider, irá
se converter em candidato a bode expiatório fácil de ser sacrificado –
inclusive pelos neoliberais “clássicos”. É o que mostram, por exemplo,
as manchetes cada vez mais críticas da Folha. Ou, muito mais
importante, o espaço que todos os jornais dão às investigações do
Ministério Público sobre a íntima relação entre a famiglia Bolsonaro e as milícias cariocas.
* * *
Em meio a tantos êxitos, o tsunami da Educação voltou a evidenciar uma imensa lacuna política. Não há,
na esquerda institucional brasileira, crítica ao núcleo do projeto
neoliberal – apenas a suas bordas. Esta ausência ficou clara nas
reações, no fundo tímidas, à fala de Weintraub no Congresso. Fez-se a
contestação fácil a seu fundamentalismo, a seus ataques gratuitos.
Debateu-se a amplitude de seus cortes. Seriam maiores ou menores que os
de Dilma, na reviravolta pós-eleitoral de 2015?
Mas
não houve oposição a uma lógica: a de que o Estado deve funcionar
como se fosse uma empresa, buscando o lucro; ou ao menos examinando,
com olhar de contador, as planilhas de receita e despesa do Fisco.
Estar em sintonia com o tsunami de hoje exigiria outra
coragem. Dizer (como fazem Alejandra Ocasio nos EUA, Jeremy Corbyn na
Grã-Bretanha ou mesmo Pedro Sánchez, na Espanha) que o Estado precisa – e
tem elementos para – perseguir outras éticas. Bem-estar para todos. Redução das desigualdades. Proteção do meio ambiente. Geração de
ocupações. Ou ainda mais concretamente, nas condições brasileiras:
esboço de um novo programa. Garantia de que as periferias deixarão de
ser as senzalas pós-modernas. Cidades sem cercas – e livres da ditadura
do automóvel e do cimento. Agricultura sem ruralismo e sem venenos.
Enfrentamento da crise laboral, com Renda da Cidadania e serviços
públicos de excelência. Oferta, pelo Estado, de um posto de trabalho —
com direitos — a quem queira participar do novo projeto de país.
Parece muito difícil, porque a esquerda institucional foi poder, por
treze anos, e não rompeu com as velhas lógicas. Mas será cada vez mais
necessário se quisermos, ao invés de nos voltar para o passado,
construir as condições para superar o neoliberalismo agora.
Fonte Outras Palavras