Sob a ditadura, Geisel foi co-responsável por assassinatos políticos. Em suposta democracia, Moro repetiu práticas da Inquisição e atuou como acusador e juiz. Nos dois casos, a verdade só veio à tona graças à abertura de documentos secretos
Geisel e Moro: um ensaio sobre a verdade em dois momentos
Por Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano, na Revista Cult
Foi a revelação de um memorando de 1974, escrito pela mais alta
autoridade de agência de inteligência dos EUA, Willian Colby, então
diretor da CIA, que contribuiu para recompor a verdade histórica sobre a
responsabilidade do general Ernesto Geisel nas execuções sumárias de
adversários da ditadura militar praticadas pelo Estado brasileiro.
O documento, apenas liberado em 2015 pelo governo dos EUA e divulgado
no Brasil três anos depois graças a pesquisa do professor Matias
Spektor, é um relato de uma reunião ocorrida em 30 de março de 1974, no
início do governo Geisel, entre o presidente, o chefe do Centro de
Informações do Exército, general Milton Tavares e o general que iria
assumir a chefia no CIE, Confúcio Danton de Paula Avelino.
Tavares ressaltou o trabalho do CIE contra alvos da subversão interna durante a administração do presidente Médici (1969-1974):
“Ele enfatizou que o Brasil não pode ignorar a ameaça subversiva e
terrorista. Neste sentido, o General Milton disse que cerca de 104
pessoas nesta categoria tinham sido sumariamente executadas pelo CIE
durante o último ano. Figueiredo apoiava esta política e sugeriu sua
continuação”.
O documento revela, ainda, que no dia 1º de abril, o presidente
Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, e
concordaram que quando o CIE apreendesse uma pessoa, o chefe do órgão
deveria consultar o general Figueiredo quanto a aprovação da execução.
Pouco mais de um ano após essa reunião, em 25 de outubro de 1975, o
jornalista Vladimir Herzog, então diretor de jornalismo da TV Cultura,
foi executado nas dependências do DOI-CODI, após intensas torturas
durante o seu interrogatório. Os militares à época do crime afirmaram
que Herzog havia cometido suicídio dentro da prisão e forjaram uma foto
com o corpo pendurado por uma tira de pano.
No caso do memorando, foram necessários mais de 40 anos para que o
povo brasileiro tivesse acesso à divisão de tarefas na execução dos
crimes praticados por autoridades públicas durante aquele período
histórico. A trama toda, como se vê, longe de ser mero voluntarismo de
agentes públicos de pouca relevância na estrutura de poder do Estado,
foi conspirada dentro do próprio palácio presidencial.
Por óbvio, como gatunos contumazes, essas autoridades fizeram de tudo
para apagar os rastros criminosos. Foram necessárias a participação e
conivência de órgãos de imprensa, grana de grandes empresários, proteção
internacional para que as denúncias não ultrapassem as fronteiras do
país e, uma vez ultrapassadas, fossem elas descredibilizadas, enfim,
toda uma engrenagem de poder baseada na mentira e na sonegação de
informações. Válido lembrar que não vai muito longe o ano de 2004, em
que foi flagrada uma queima de arquivos na Base Aérea de Salvador, na
Bahia.
Autoridades que praticam crimes utilizam os aparelhos do Estado para
apagá-los e, sobretudo, com indisfarçável cinismo agem como se nada
tivesse acontecido. Atuam para negar pesquisas, estudos históricos e se
colocam contra qualquer iniciativa do Estado em recuperar documentos e
construir monumentos em homenagem às vítimas. Tentam até mesmo
constranger autoridades públicas contemporâneas a dar uma outra versão
dos fatos, sendo que nos últimos meses nem esse constrangimento tem sido
mais necessário, há autoridades que para permanecer próximo ao eixo de
poder político não se sentem melindradas, essa é a palavra da moda, de
dizer que em 1964 não houve golpe militar.
De certa forma, a exposição das entranhas de funcionamento do poder
na 13ª Vara Federal de Curitiba pelo trabalho do The Intercept,
revelando estarrecedoras conversas entre o juiz Sergio Moro e
procuradores da Operação Lava Jato em seus aparelhos funcionais de
trabalho, contribui, efetivamente, para a reconstrução da verdade
histórica de importante e conturbado período da nação.
Mesmo já sendo de conhecimento de grande parte da população que nos
últimos anos em Curitiba se formou um Tribunal de Exceção para
criminalizar importante partido político de centro-esquerda, a revelação
das conversas e da forma como autoridades públicas tomavam decisões é
uma contundente prova dos crimes ali praticados e de um método de ação
estatal paralegal, como já o dissemos no artigo “A conspiração que destruiu o Estado de Direito no Brasil”.
Mas, além disso, é o restabelecimento da verdade histórica pela boca
dos seus próprios protagonistas. As matérias do The Intercept fornecem
aos brasileiros e aos historiadores uma visão de dentro do poder, uma
verdadeira lição de como autoridades públicas praticam e tramam crimes
mantendo uma cínica postura pública. Um verdadeiro tratado sobre a
hipocrisia humana e de como poderes do Estado foram sequestrados por
personagens vis, deploráveis em um verdadeiro banquete de hipócritas.
A comparação entre os dois episódios, no que eles coincidem e no que
diferem, é extremamente rica. A categoria é a mesma: o adversário
político torna-se inimigo político, o que significa que não se quer o
exercício da democracia, o conflito político regular em que opiniões e
conceitos são diferentes, mas coexistem e buscam a hegemonia pelos meios
próprios do Estado de Direito, respeitando direitos e garantias e
preservando a minoria. Ao fazer do adversário político um inimigo, a
diferença é que a estratégia passa a ser o da sua aniquilação e exclusão
da esfera política e da esfera social. Em ambos os momentos se vê esse
fenômeno.
Também o objetivo é o mesmo: a dominação para tornar possível uma
política de classe antipopular. Em 1974 estava em pleno curso o processo
iniciado pelo golpe de 1964, que visou abortar as reformas que
transformariam o país e retirariam da miséria massas urbanas e rurais
excluídas da cidadania, concedendo-lhes um mínimo de bem-estar social.
Agora, a ascensão dessas massas, que alcançavam acesso a bens de consumo
e a alguma possibilidade de ascensão social, também foi bruscamente
interrompida.
Diferem a forma política e a execução. Em 1964 instala-se a ditadura
clássica, com a ruptura jurídica, institucional, com perseguições
políticas, execuções, torturas, revogação explícita das liberdades
públicas, de direitos fundamentais, censura. Agora há uma aparente
manutenção das formas políticas do Estado de Direito e uma Constituição
democrática, distributiva e garantidora de direitos está em vigência,
mas esvaziada de eficácia. O presidente não é deposto pela força e
obrigado ao exílio. É destituído do mandato popular por mecanismos
jurídicos que são a sombra do devido processo legal, a sombra que tem o
dom de iludir. Não são presos ou tem os mandatos cassados por atos
jurídicos à parte do ordenamento democrático.
São processos judiciais que camuflam a perseguição política, órgãos
jurisdicionais que mantêm apenas a aparência do devido processo legal e
em que, como se viu agora, reproduziu-se clandestinamente o procedimento
típico da velha Inquisição que reunia no mesmo órgão ou na mesma pessoa
acusação e julgamento.
Ao fim de tudo vê-se que, considerar diferenças e semelhanças, as
categorias essenciais são sempre as mesmas e bem assim as vítimas: a
democracia e a massas excluídas.
MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP
PATRICK MARIANO é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP
Fonte Revista CULT