Como nenhum fato isolado se explica por si só, é necessário articular conscientemente a cadeia entre as causas. A lei parece não se aplicar a Moro e sua quadrilha. Será por que assegura o saque do Estado e das riquezas nacionais pela elite endinheirada?
O escândalo da “Vaza Jato”, provocado pelo The Intercept e
pela extraordinária coragem de Glenn Greenwald, desmascarou a hipocrisia
do jeito brasileiro de fazer política que já vem acontecendo há mais de
cem anos. A Lava Jato não é, afinal, uma história de cinco anos que
começa em 2014 com o “escândalo da Petrobras”, mas sim uma história que
vem desde 1930, quando Getúlio toma da “elite do atraso” o poder de
Estado. Foi aí que se construiu a ideia estapafúrdia de que a “corrupção
só da política”, usando o conceito de patrimonialismo como contrabando,
é a raiz de todos os problemas brasileiros. A construção dessa ideia
ridícula como suposta explicação central para os problemas brasileiros
“coincide” com a ascensão de Vargas ao poder político contra as elites
do dinheiro. Como a elite do dinheiro tem que “moralizar” sua rapina,
desde então seus inimigos são perseguidos e sistematicamente depostos do
poder com falsas acusações de irregularidade pelo uso supostamente
“patrimonialista” e corrupto do Estado e da política.
Como nenhum fato isolado se explica por si só, é necessário articular
conscientemente a cadeia entre as causas. Toda exploração econômica tem
que se servir de um “álibi”, ou seja, de um recurso simbólico que torne
o fato da exploração invisível enquanto tal, para poder ser exercida de
modo que os próprios explorados a considerem aceitável ou inevitável. O
caso brasileiro é, no entanto, um caso limite. Alguma forma de
distorção da realidade está sempre presente em todos os casos de
sociabilidade humana conhecidos na história. No caso do nosso país, como
o escândalo da “Vaza Jato” mostra tão bem, a capa de moralidade não é
mera distorção da realidade vivida. Aqui, tal realidade é “invertida” e
posta de cabeça para baixo, o que explica o caráter patológico e
neurótico para quem vive a conjuntura política atual.
Afinal, a descoberta irrefutável de uma quadrilha funcionando dentro do aparelho de Estado, usando os cargos públicos não apenas para enriquecimento
e vantagens pessoais, mas também como uma forma despudorada de
manipular a opinião pública e minar todos os pressupostos da democracia
com fins partidários, não levou – ainda –sequer à perda dos cargos nem à
prisão dos responsáveis. A lei parece não se aplicar aos desmandos de
Moro e sua quadrilha, muito menos para as fontes de renda misteriosas da
família Bolsonaro. Será que é porque esse pessoal assegura, por outro
lado, o saque do Estado e das riquezas nacionais pela elite
endinheirada? Quem ainda possuir dois neurônios intactos saberá
responder.
Mas, e como fica a necessidade de se criar uma capa de moralidade e
de falseamento da realidade para legitimar os desmandos? A Lava Jato
funcionou como articulação explícita para a “corrupção real”,
a da apropriação por agentes privados de empresas públicas a preço de
banana, o mesmo que, aliás, aconteceu recentemente com a BR
Distribuidora, pelos bancos que tiveram uma reunião secreta com Fux e
Deltan. Ao que parecia, a questão era que o PT não podia ser alçado ao
poder para não melar os “bons negócios”. Então, com uma corrupção tão
descarada como essa, como ninguém dos “camisas amarelas” vai às ruas
para pedir que a honestidade volte?
Ora, só pode ser porque a maior parte dos “camisas amarelas” nunca
esteve de fato interessada em combater a corrupção. O que, de resto,
apenas comprova a tese do falso moralismo do “combate à corrupção”,
visto que só vale para partidos populares. A dificuldade geral,
especialmente para a elite e a classe média, é a perda do único “álibi”
existente para mascarar seu ódio e desprezo pela população negra e mais
humilde sob a forma da falsa criminalização dos seus representantes. É a
compreensão intuitiva disso, o que explica também as idas e vindas de
órgãos da elite, como a Veja e a Rede Globo, na cobertura do caso. Eles
precisam manter um vínculo com a realidade, agora desmascarada, sob o
risco de perder qualquer legitimidade, até para a parte mais esclarecida
do próprio público. Por outro lado, estão envolvidos até o pescoço na
manipulação desse mesmo público. O jogo havia sido controlado de cima
pela elite e sua imprensa venal. Moro e Deltan foram apenas os
“laranjas”, os pequenos oportunistas que ficam com as sobras do negócio
grande. Tudo indica que a parte mais esclarecida da classe média já
desceu do barco. Reinaldo Azevedo e outros arrependidos falam para esse
público.
É Bolsonaro e sua base de poder infensa a argumentos racionais que
permite a continuidade da farsa. O seu público não precisa de
legitimação porque seu protesto radicalizado está vincado em sentimentos
irracionais como ressentimento, inveja social e preconceitos racial e
de classe. Inveja e ressentimento contra os de cima, o que explica os
ataques à arte, à cultura e ao conhecimento em geral. Também a vingança,
há muito esperada, contra séculos de desprezo dos “doutores” contra os
remediados entre os pobres, a base real de Bolsonaro, muitos dos quais
são brancos e, por isso, se acham no direito “racial” de um futuro
melhor do que de fato possuem. Contra os de baixo, por sua vez, a raiva
se volta para os negros e mestiços pobres que tiveram a ousadia de
ascender socialmente no período recente e de chegar ainda mais perto
deles. É difícil saber o que causa mais revolta nestes 20% da população
brasileira que são a base real da força de Bolsonaro: a raiva contra os
de cima ou contra os de baixo. Esse é seu público cativo, os 20% que
sempre apostaram nele mesmo antes da “fakeada”.
Para esse pessoal, a democracia não é mais do que uma palavra odiada,
afinal ela nunca lhes serviu para nada. Ela só parece vantajosa para os
já privilegiados e para a população negra e humilde que ascendeu com o
PT. Por causa disso, Bolsonaro lhes parece o “vingador” perfeito. O
discurso contra as elites, utilizado para a arregimentação dos
“bolsominions” para o último dia 26 de maio, mostra o sequestro do tema
da luta de classes pela direita, já que a esquerda foi covarde e incapaz
de qualquer protagonismo nessa área. Por outro lado, a única política
pública informal efetiva do bolsonarismo é armar milícias e polícias para a chacina indiscriminada dos negros, índios e pobres,
o que alimenta seu desprezo e o de seu público pelos mais frágeis. Da
mesma forma que a distância em relação à “cultura” os inferioriza, a
violência aberta contra os mais frágeis os torna “aparentemente”
poderosos. A destruição da cultura e do conhecimento satisfaz sua
inveja. A destruição dos fragilizados satisfaz seu desprezo e seu medo
deles. É tudo aparência para mentes doentias, mas a aparência pode ser
tudo para quem não tem mais nada.
Essa “minoria barulhenta” pressente que o momento da vingança chegou.
Ela se tornou abertamente fascista porque é ela que diz: não importa se
é ou não verdade o que diz a “Vaza Jato”. O que importa é o que é
“necessário” para se sentir melhor do que se é. São pessoas em boa parte
frustradas na vida privada, que usam a política como forma de dar
sentido a uma vida vazia e sem direção. O “bolsominion” típico é um
pobre remediado, na maioria um “lixo branco” sem cultura e sem grandes
esperanças na vida, que, de repente, pode se ver como protagonista de
alguma coisa. Ao se definir como conservador e de direita, se sente como
alguém que “protesta”, um pequeno herói, supostamente contra as
tendências de seu tempo, que ao se identificar com o tirano que “tira
onda” de poderoso, se sente igualmente poderoso. Como é incapaz de
compreender uma realidade complexa, refugia-se em bravatas
estereotipadas e finge conhecer muito do que nada conhece.
Para essas pessoas, Moro é, hoje, tanto seu herói quanto Bolsonaro.
Os “likes” de Moro desceram a escala social, embora ele não tenha a
menor ideia disso. Acredita-se onipotente. Como sua valia para Bolsonaro
era ser uma ponte com a classe média estabelecida pseudomoralista, toda
a sua base de apoio mudou ou está mudando. Os 20% de supostos
“empoderados” barulhentos é a única sustentação real do atual arranjo de
poder. Bolsonaro, por sua vez, também depende de Moro. Afinal, a
mentira da Lava Jato se alongou na própria mentira. Sem a Lava Jato não
existiria Bolsonaro. Os dois são carne da mesma carne e sangue do mesmo
sangue. A solução não é simples para ninguém neste jogo. Ver a “casa
cair” é o que o “bolsominion” mais quer. Enquanto isso, a elite mais
saqueadora quer a grana fácil das grandes mamatas e sequer se dá conta
do perigo. Bolsonaro institucionaliza o roubo pequeno e miliciano do
botijão de gás sem bandeira. Esses são, hoje em dia, os apoios efetivos
da Lava Jato. Os 80% restantes observam bestializados um mundo que não
mais compreendem.
Fonte Rede Brasil Atual
“Uma mentira é como uma bola de neve; quanto mais gira, maior se torna.” (Martinho Lutero)