Declarações de Bolsonaro em favor da tortura reavivam a memória da luta de Dom Hélder
Patrono dos Direitos Humanos recebe homenagens nos 20 anos de sua morte. Comissão Justiça e Paz conclama cidadãos a “cultivarem a esperança" diante das ações do governo
Brasília – No dia 27 de agosto o Brasil completa 20 anos da morte de Dom Hélder Câmara,
que desde 2017 é considerado o patrono nacional dos Direitos Humanos.
Homenagens, missas, andamento do processo que pede sua beatificação ao
Vaticano, realização de seminários sobre o tema e atos comemorativos
fazem parte da agenda de reconhecimento ao trabalho do arcebispo emérito
de Olinda e Recife para reduzir as desigualdades no Brasil. Mas o que
mais tem evocado a memória de Dom Hélder é sua luta contra a tortura e as injustiças sofridas pelas vítimas da ditadura, em contraponto ao comportamento do presidente da República, Jair Bolsonaro, de elogios a torturadores e críticas aos desaparecidos políticos daquela época.
Por isso, juntamente
com as homenagens tradicionais ao arcebispo que era chamado pelos mais
humildes de “Dom”, “o Dom dos Pobres” ou “o Dom do Amor”, representantes
da sociedade civil pretendem aproveitar a lembrança para protestar e
chamar a atenção contra o período de retrocesso e inversão de valores que tem sido observado no país. E fazer comparações entre as décadas de 1960 e 1970 com os dias atuais.
Um dos primeiros
feitos foi carta divulgada recentemente pela Comissão de Justiça e Paz
(CJP) da Arquidiocese de Olinda e Recife. A comissão foi criada por Dom
Hélder nos anos 1960, teve suas atividades encerradas nos anos 1990 e
voltou a ser fundada dois anos atrás, por iniciativa do arcebispo de
Olinda e Recife, Dom Fernando Saburido. Seu objetivo é “promover os
direitos humanos (direitos sociais, civis e políticos, assim como os
direitos econômicos, culturais e ambientais), à luz da doutrina social
da Igreja”.
Na nota, emitida na
última semana, os integrantes da CJP conclamam os cidadãos a “cultivarem
a esperança diante das ações do Governo Federal e seus impactos futuros
e presentes”.
O atual coordenador
da comissão, Antônio Carlos Maranhão, que assina a nota (e que também
fez parte da primeira comissão, criada durante o episcopado de Dom
Hélder), cita uma frase de Santo Agostinho em sua abertura, segundo a
qual “a esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem”.
“A indignação nos
ensina a não aceitar as coisas como estão, a coragem, a mudá-las”,
acrescenta. De acordo com ele, o país está vivendo tempos sombrios. “A
justiça e a paz, que têm na justiça sua base verdadeira e duradoura,
estão sendo diuturnamente atacadas. A escalada de destruição de direitos
dos cidadãos, o incentivo, pela ação ou omissão, ao desmatamento da Amazônia, à invasão das terras indígenas, à entrega do nosso patrimônio mineral, são sinais diários de violência”, destacou.
“Não bastassem esses
sinais, vemos entre outros e sem reação, a valorização do crime pela não
apuração das ações das milícias, o desinteresse em apurar e punir
crimes políticos, e a tentativa de criminalização de organizações não
governamentais. Mais ainda, o ódio, a ironia, o desprezo e o pejorativo
sendo usados sem limites, como plataformas de comunicação”, observou
Maranhão, no documento.
O coordenador lembrou
ainda que na última semana “todas essas sombras que envergonham o país
como nação civilizada estiveram presentes”. Ele citou a invasão da
aldeia Waiãpi por garimpeiros e o “irracional ataque à memória de
Fernando Santa Cruz (desaparecido político pernambucano, pai do atual
presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa
Cruz), feito pelo presidente Jair Bolsonaro”.
“Por isso a Comissão
Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife conclama todos e todas a
vivenciarem a esperança como definida por Santo Agostinho, mãe da
indignação que nos impele a não aceitar as coisas como estão, e da
coragem para mudá-las, usando todos os instrumentos democráticos para
eliminar privilégios e garantir os direitos civis, sociais, econômicos e
ambientais, que nos estão sendo usurpados, e que são indispensáveis
para a construção de uma sociedade inclusiva e justa”, afirma ainda o
documento – que está sendo chamado de “uma ode à esperança”.
Denúncias sobre o Brasil
Dom Hélder se
notabilizou por denunciar ao mundo, em suas viagens, o que estava
acontecendo no Brasil: ruptura de direitos, com perseguição e tortura
nos porões da ditadura. “Ele ficou conhecido por ter se tornado um líder
contra o autoritarismo e os abusos aos direitos humanos, frequentemente
praticados pelos militares”, definiu o deputado Luiz Couto (PT-PB),
relator da proposta legislativa que instituiu o religioso como patrono
dos direitos humanos.
O arcebispo chegou a ter seu nome postulado para o prêmio Nobel da paz por quatro vezes, mas isso não aconteceu.
No ano passado, descobriu-se que no início dos anos 1970 houve
intervenção por parte do governo militar do general Emílio Garrastazu
Médici para que ele não fosse agraciado.
A articulação foi
descoberta pela Comissão Estadual da Memória e Verdade, que leva o nome
do religioso, durante o lançamento da obra Prêmio Nobel da Paz: A atuação da ditadura militar brasileira contra a indicação de Dom Helder Câmara,
em Pernambuco. A publicação reúne correspondências diversas trocadas
por autoridades entre os anos de 1970 e 1973. O combate às violações de
direitos humanos também custou a dom Helder uma perda pessoal: a prisão,
tortura e morte, em 1969, do seu assessor pessoal, Padre Henrique.
O arcebispo, que foi
um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
publicou 23 livros, onde defendeu seu ideal de “não-violência” e a
necessidade de profundas reformas por um Brasil menos desigual. Autor da
frase “feliz de quem passa pela vida semeando fé, esperança e amor e
feliz de quem passa pela vida semeando confiança, amizade e paz”,
propagada em um dos seus livros, Dom Hélder foi quem criou as
organizações pastorais para atuar junto aos mais pobres, ideia que tem
sido disseminada ao longo de décadas pela CNBB.
Foram ideia dele
também vários projetos criados para atender as comunidades em situação
de miséria. “Pobre é aquele que só tem na vida o que comer. Miserável é
aquele que não tem nem o que comer”, costumava afirmar.
“Os brasileiros que
buscam a justiça concordam que Dom Hélder é o patrono das minorias
fragilizadas no país”, afirmou Dom Fernando Saburido ao comentar sobre
as comemorações.
Cearense, Dom Hélder
nasceu em 1909, em Fortaleza. Foi ordenado padre em 1931. Aos 43 anos,
tornou-se bispo auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, e em 1964,
arcebispo de Olinda e Recife, até 1985. As organizações para as
homenagens estão sendo feitas nos estados de Pernambuco, Ceará e Rio de
Janeiro.
Fonte Rede Brasil Atual