Há aí uma tremenda ruptura filosófica: nas esferas moral e política desaparece a relação da parte com o todo. Do indivíduo com a sociedade. Se isso desaparece, não há mais juízos morais minimamente razoáveis e a política se transforma em exercício de poder sem limites quando convém.
Por Marcio Sotelo Felippe*
Em 1947, uma aprazível localidade suíça, Mont Pelerin, abrigou uma
reunião que afetou profundamente o rumo do nosso tempo. Somos todos
hoje, de um ou de outro modo, prisioneiros de Mont Pelerin. Ali se
iniciou a brutal trajetória do neoliberalismo.
O encontro foi organizado pelo economista austríaco Friedrich Hayek, que poucos anos antes publicara O caminho da servidão.
Os conceitos da obra foram a tônica da reunião de Mont Pelerin. Nela,
estavam presentes Ludwig von Mises, Milton Friedman, Karl Popper, entre
outros campões do liberalismo. A partir dali, fundada a Mont Pelerin
Society, uma extensa profusão de trabalhos se difundiu mundialmente.
Demoraria algumas décadas para que a teoria fosse testada em um
“laboratório”, o Chile de Pinochet. Mais alguns anos, Thatcher e Reagan a
puseram no centro do poder mundial.
Ambos logo trataram de deixar claro que tipo de liberdade estava
associada ao “liberal” da expressão neoliberalismo. A primeira, com o
enfrentamento da greve dos mineiros, que desarticulou e paralisou o
movimento sindical inglês. O segundo, com a reação à greve dos
controladores de voo, demitindo 11 mil grevistas e banindo-os do serviço
público. Nesses dois episódios, o neoliberalismo mostrou seu cartão de
visitas.
O neoliberalismo é um fenômeno multifacetado. Não se trata de mais
uma entre outras doutrinas econômicas porque, para além da economia,
atinge aspectos da existência. É uma ruptura profunda que precisa
alcançar a consciência das pessoas para que vingue como doutrina
econômica. Nesse aspecto, há uma semelhança com o fascismo, que se
legitimar buscando e obtendo apoio de massa e, quiçá, podem andar
juntos, como no Chile de Pinochet.
A doutrina estritamente econômica é bem conhecida. Desregulamentação,
privatizações, diminuição do papel do Estado, revogação de direitos ou
obstáculos a direitos.
Mas é uma ruptura profunda porque implica uma base filosófica moral
para reconfigurar as relações sociais. Fazer de virtudes defeitos e de
defeitos virtudes.
George Monbiot, acadêmico britânico e colunista do The Guardian, em
texto lapidar, fez uma síntese disto. O neoliberalismo é “uma tentativa
consciente de remodelar a vida humana e alterar o foco do poder”.
Nele, prossegue Monbiot, a concorrência passa a ser a característica
definidora das relações humanas. Organizações de trabalhadores são
distorções do mercado, que impedem a formação de uma hierarquia natural
de vencedores e perdedores. A desigualdade é uma virtude. O
igualitarismo é moralmente corrosivo. Rico é quem merece ser rico,
desconsideradas educação e origem social. Pobres são pobres porque,
ineptos, fracassaram: “em um mundo governado pela competição, aqueles
que ficam para trás são tidos e autodefinidos como perdedores”.
Nesse mundo de indivíduos isolados e competidores, mundo da
hierarquia natural de vencedores e perdedores, compreende-se a frase de
Margaret Thatcher, uma síntese cabal do neoliberalismo: “mas o que é a
sociedade? Não existe esta coisa. O que existe são homens e mulheres,
indivíduos e famílias”.
Há aí uma tremenda ruptura filosófica: nas esferas moral e política
desaparece a relação da parte com o todo. Do indivíduo com a sociedade.
Se isso desaparece, não há mais juízos morais minimamente razoáveis e a
política se transforma em exercício de poder sem limites quando convém.
Tudo se passa como no estado de natureza de Hobbes, uma luta
desenfreada de todos contra todos, de indivíduos atomizados. Hobbes
supôs esse estado de natureza para construir uma teoria da sociedade
politicamente organizada, que seria exatamente a relação da parte com o
todo, representado pelo soberano. O neoliberalismo resgata o estado de
natureza de Hobbes e congela a existência humana nele. Usando uma
expressão de Marx, indivíduos são mônadas dobradas sobre si mesmas.
Competem, os mais fortes vencem e não pode haver solidariedade social. A
solidariedade é moralmente corrosiva.
São visíveis várias consequências do neoliberalismo. Na esfera
econômica estão à nossa volta, comprometem nossas existências materiais,
pauperizam a massa, tornam possível uma acumulação desenfreada,
particularmente do capital financeiro. Mas há aspectos velados,
consequências ocultas que somente agora podemos começar a vislumbrar.
Nessa remodelação da existência humana em que a meritocracia substitui a
solidariedade e fica internalizada a ideia de uma competição entre
indivíduos, o desvalor da solidariedade, abre-se um buraco na alma.
O filósofo italiano Franco Berardi afirma que “não pode ser acaso o
fato de que nos últimos 40 anos o suicídio tenha crescido enormemente
(em particular entre os jovens). Segundo a Organização Mundial de Saúde,
trata-se de um aumento de 60%. É enorme. Trata-se de um dado
impressionante, que precisa ser explicado em termos psicológicos e
também em termos sociais”.
Berardi, ao constatar esse quadro, perguntou-se: o que aconteceu nos
últimos 40 anos? Por que as pessoas, justo nesses 40 anos, se suicidaram
mais do que em outro tempo? O período coincide com a hegemonia do
neoliberalismo. Ele encontrou duas explicações: uma delas expressa na
frase de Tatcher negando o conceito de sociedade, reduzindo a existência
a relações entre empresas em incessante competição, em guerra
permanente; outra, a relação entre os sujeitos sociais ter perdido a
corporeidade. A comunicação tornou-se funcional, econômica, competitiva.
Conclui: “o neoliberalismo foi, em minha opinião, um incentivo maciço
ao suicídio. O neoliberalismo – mais a mediatização das relações sociais
– produziu um efeito de fragilização psíquica e de agressividade
econômica claramente perigosa e no limite do suicídio”.
A solução final dos nazistas, que desencadeou o holocausto, foi
planejada em 1942 em uma reunião no subúrbio berlinense do Wansee. Em
Mont Pelerin, em 1947, uma reunião planejou outra solução final: o
genocídio de almas. Essa visão de mundo neoliberal é dominante nos
grandes meios de comunicação no Brasil. A maioria esmagadora dos
formadores de opinião, colunistas de jornais, editoriais, tem traços –
nítidos por vezes, subjacentes outras vezes – de conceitos próprios do
neoliberalismo. Isso, em boa parte, explica o fenômeno absurdo da
“normalização” da loucura moral de Bolsonaro.
Quem, afinal de contas, está a serviço ou usufrui dos interesses
protegidos pelo neoliberalismo e tem sua consciência forjada por ele,
não se sentia assim tão desconfortável com a ruptura das virtudes
públicas expressa no discurso do candidato. De algum modo havia uma
projeção do que o neoliberalismo internaliza naquilo que ele
representava ou na rejeição do que ele rejeitava.
O mundo adoeceu de neoliberalismo. O fator Bolsonaro
faz o Brasil adoecer mais. Começam a surgir depoimentos de médicos,
psiquiatras, cardiologistas e psicanalistas relatando um impressionante
aumento de casos de ansiedade, transtornos psíquicos, depressão ou de
certos sintomas físicos relacionados com a esfera mental.
Artigo de Eliane Brum trouxe alguns desses depoimentos. Psicanalista
de São Paulo acredita que o adoecimento do Brasil de 2019 expressa a
radicalização da impotência. Afirma que as pessoas não sabem como reagir
à quebra do pacto civilizatório representada pela eleição de uma figura
violenta como Bolsonaro, que prega a violência e violenta a população
todos os dias. Alia-se a grupos criminosos, desmatadores e grileiros na
Amazônia, mente compulsivamente. Sentem-se impotentes diante de uma
força que atropela e esmaga sem vislumbrar algo que detenha isto tudo.
Outro depoimento trazido por Brum é lapidar: “não é que estamos
vivendo o mal-estar na civilização. Isso sempre houve. A questão é que,
para ter mal-estar é preciso civilização. E hoje, o que está em jogo, é a
própria civilização. Isso não é da ordem do mal-estar, mas da ordem do
horror. ”
São rupturas morais que adoecem a alma. Internalizada a visão de
mundo do neoliberalismo, por exemplo, o equilíbrio da consciência é
rompido porque nossa constituição abriga valores próprios do gregário,
da sociabilidade. Surge uma cisão na alma porque o que está na base do
impulso civilizatório perde seu lugar na ordem das coisas. O aumento no
número de suicídios é a prova empírica dessa patologia social. O
capitalismo chega, enfim, ao momento em que, para bater nossa carteira
material, bate também nossa carteira espiritual.
MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado, mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP. Foi procurador-geral do Estado de São Paulo