Exclusivo, artigo de Luís Felipe Miguel em Relações Obscenas: É com o nome de ‘Conspiração Lava Jato’ que operação passará à história; leia íntegra
O livro Relações Obscenas — As revelações do The Intercept/BR, da editora Tirant Lo Blanch, está sendo lançado em todo o Brasil.
A estreia ocorreu em Curitiba (PR), em 10 de setembro.
Nesta terça-feira, 17/09, acontece em Belo Horizonte, na Faculdade de Direito da UFMG, às 18h30 (veja ao final a lista dos lançamentos confirmados).
No dia 1º de outubro, será em São Paulo, durante o debate “A Mídia e
as Relações Obscenas da Lava-Jato”, promovido pelo Centro de Estudos
de Mídia Alternativa Barão de Itararé.
O advogado Wilson Ramos Filho, o Xixo, a jornalista Maria Inês Nassif
e o linguista Gustavo Conde dividirão a mesa. O evento começa às 19h.
Antes que alguém pergunte, Maria Inês antecipa: não haverá um lançamento oficial.
“Optamos por lançar o livro no maior número de cidades. A intenção é
aproveitarmos todos esses eventos para debater, em todo o país, a fraude
judicial que é a Lava Jato, comprovada pela série de reportagens do
Intercept Brasil — a VazaJato”, observa.
Wilson Ramos (advogado trabalhista), Maria Inês Nassif (jornalista),
Hugo Cavalcanti Melo Filho (juiz do trabalho) e Miriam Gonçalves são os
organizadores do livro.
A obra de 431 páginas, com prefácio do jornalista Fernando Morais, é dividida em cinco partes escritas por mais de 60 autores.
Entre eles, o cientista político Luís Felipe Miguel, que assina o artigo Conspiração Lava Jato, que o Viomundo reproduz com exclusividade.
CONSPIRAÇÃO LAVA JATO
Para quem acompanha a política brasileira dos últimos anos, os documentos revelados por The Intercept Brasil têm mais sabor de confirmação do que de revelação.
Restavam poucas dúvidas sobre a motivação política da Lava Jato ou sobre o comportamento anti-ético do juiz Sergio Moro.
Vendida pela mídia e pela direita em geral como a maior operação
de combate à corrupção da história, a Lava Jato é, ela própria,
profundamente corrupta.
Seu objetivo central nunca foi combater desvios, mas sim retirar o
Partido dos Trabalhadores do poder, pelos meios que fossem necessários,
interrompendo suas tímidas políticas sociais compensatórias.
Agora, essa conclusão não é mais uma mera especulação, ainda que sustentada em evidências. Está comprovada.
A Lava Jato não foi capaz de garantir a eleição de Aécio Neves em
2014, mas permitiu a deflagração do golpe de 2016, abriu as portas
para a criminalização do PT e da esquerda, colocou Lula na prisão e
fez do amigo de milicianos Jair Bolsonaro o novo presidente da
República.
Seu saldo líquido é o recuo das instituições democráticas e do
império da lei, a obsolescência da Constituição de 1988, a
degradação dos três poderes, a maior vulnerabilidade da república a
grupos criminosos, a retirada de direitos, a perda da soberania nacional
e o aumento da vulnerabilidade social.
O nome com que a operação passará à história, não resta mais dúvida, é “Conspiração Lava Jato”.
Os documentos que estão sendo publicados indicam com clareza que
Moro, os desembargadores do TRF-4 e os procuradores conspiraram no
sentido preciso da palavra – para prender Lula e para influenciar
resultados eleitorais.
Para o campo democrático, as novas informações redimensionam a campanha pela libertação de Lula.
A vinculação da corrupção do Judiciário com os demais
retrocessos que ocorreram no país tornou-se ainda mais gritante. E a
ilegitimidade da eleição de 2018 também não tem mais como ser
escondida.
Entendido como bandeira que sintetiza a denúncia do ataque às
instituições democráticas, o “Lula livre” deve representar não só a
defesa da liberdade do ex-presidente e de todos os outros presos
políticos, como também a oposição ao golpe e às políticas que ele
implementou – e, enfim, a exigência de anulação do pleito do ano
passado.
Para a extrema-direita, pouco muda. O cinismo, que ela se habituou a praticar no debate público, já está a pleno vapor.
Nas mídias sociais, robôs e robotizados reagiram às reportagens do The Intercept Brasil com
falsificações primárias que visam sobretudo desmerecer o jornalista
Glenn Greenwald e seu marido, o deputado David Miranda – tão primárias
que fica claro que a única motivação por trás do auto-intitulado
“Pavão Misterioso” é alimentar a militância bolsonarista com
factoides que afastem o risco de que ela se confronte com a realidade.
Outra reação comum é a repetição de frases como “Lula tá preso, babaca”.
No contexto, a frase é uma confissão de culpa e revela o universo
mental deste grupo: a política é um vale-tudo e, se Moro e Dallagnol
desrespeitaram as regras básicas da ética e da lei para prejudicar
seus adversários, ainda mais “heróis” eles são.
Quem ficou em maus lençóis mesmo foi o amplo setor do lavajatismo
que se quer “civilizado” – aqueles que não desejavam se confundir com
Bolsonaro, que não queriam se comprometer com o desmonte da democracia
brasileira, mas ficavam satisfeitos com a criminalização do petismo e
incorporaram a versão do “combate sem tréguas à corrupção” como
justificativa.
É um amplo grupo, que inclui parte da cúpula do Judiciário e parte
da grande imprensa; políticos conservadores que se projetam como
respeitáveis, como Fernando Henrique Cardoso e Marina Silva; e também o
udenismo de ultraesquerda.
Para estes, chegou a hora da verdade. Ou mandavam publicamente os
escrúpulos às favas ou teriam que romper sua conivência com a
conspiração.
No início relutantes, os meios de comunicação corporativos
acabaram tendo que noticiar o vazamento, mesmo que de forma tímida e
enviesada.
Alguns deles firmaram parcerias com The Intercept Brasil.
A tentativa de minimizar o episódio, emblematizada pela reação
inicial de Fernando Henrique Cardoso (”tempestade em copo d’água”),
logo mostrou fôlego curto; o próprio ex-presidente foi envolvido nos
diálogos e teve que passar à defensiva.
A natureza dos crimes cometidos por Moro, Dallagnol e seus cúmplices
faz com que eles, ainda que não pareçam tão espetaculosos para os
desavisados, sejam imediatamente identificados como gravíssimos nos
meios jurídicos.
É aí que os “isentos” se apresentam, para sugerir um caminho. Trata-se de afastar Moro, mas manter de pé suas decisões.
Como escreveu um colunista da Folha de S. Paulo,
Hélio Schwartsman, embora esteja demonstrado que “o ex-juiz e os
procuradores estabeleceram uma relação de proximidade absolutamente
inadequada, que dá substrato à suspeita, desde sempre levantada pela
defesa do ex-presidente, de que Moro não atuava com imparcialidade”, os
julgamentos não devem ser anulados, já que “não há sugestão de que
Moro e os procuradores tenham interferido na realidade fática das
provas”.
Se o raciocínio tivesse lógica, poderíamos abolir a magistratura: a
“realidade fática das provas”, por si só, condenaria ou absolveria.
Mas, na verdade, a “realidade fática das provas” exige interpretação;
por isso é que se cobra imparcialidade do juiz. Quando esse juiz
colabora com um dos lados, não há como salvar o processo.
Outro colunista do mesmo jornal, Pablo Ortellado, advertiu para o “falso dilema”.
Diz ele: “No jogo amarrado da polarização, o público é levado a
escolher entre o atropelo do devido processo legal e a impunidade pura e
simples“. Em vez disso, seria “preciso articular uma posição
independente na qual se reconheça a gravidade do que foi revelado pela
Operação Lava Jato, a atribuição da responsabilidade política de
quem governava durante o período e a necessidade de que a
investigação e o julgamento dos ilícitos aconteçam dentro dos
parâmetros da lei e da Constituição”.
São palavras bonitas, mas carentes de sentido. O que foi revelado na
Lava Jato é indissociável de seus métodos. Se o julgamento estava
enviesado, se havia predisposição para condenar mesmo com evidências
frágeis e impermeabilidade aos argumentos da defesa, não há caminho
possível exceto a anulação do processo.
No texto, o autor ridicularizou o fato de que a esquerda apresenta os diálogos publicados no Intercept Brasil
como provas cabais “da parcialidade da Lava Jato, do caráter político
do julgamento do ex-presidente Lula e de que o impeachment de Dilma
Rousseff foi efetivamente um golpe parlamentar”.
Ele pode falar à vontade em “disputa de narrativas”, mas não muda o fato de que, sim, os diálogos provam tudo isso.
No Twitter, Ciro Gomes escreveu:
“Antes que as paixões contra ou a favor do ex-presidente Lula – o mais notável atingido pela Lava Jato – venham aqui defender cegamente seus interesses, lembrem-se de Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima, Palocci… todos esses poderão se beneficiar com o que está acontecendo”.
Portanto, a manutenção de “homens maus” presos compensaria a violação de todas as regras do correto processo judiciário.
Falando para um público diferente, ele admite que a prisão de Lula
pode ser injusta, mas na essência sua postura não difere do amoralismo
da extrema-direita punitivista.
Os diálogos publicados até agora mostraram com clareza uma
conspiração entre Judiciário e Ministério Público para condenar
Lula.
Caso mostrem trama igual contra outras pessoas, as condenações precisam também ser revogadas.
Ao contrário do que Ciro insinua, a campanha “Lula livre” não se
baseia numa suposta imunidade do ex-presidente, mas na defesa do direito
de defesa e das regras do justo processo penal.
Também a ex-ministra Marina Silva se manifestou. Uma longa nota, com
ênfase em evitar que “possíveis erros sirvam de pretexto para
desconstruir a luta anticorrupção”, mostra que a opção é também
afastar ou até punir Moro e Dallagnol, mas manter Lula preso. A “luta
anticorrupção” é alçada à posição de valor máximo; em nome dela,
todos os direitos podem ser atropelados.
O caminho sugerido é esse: punir os punitivistas para manter o punitivismo. Isso não serve para o campo democrático.
É preciso restaurar a vigência dos direitos e das garantias. É
preciso anular as condenações tendenciosas e injustas. E é preciso
desmitificar o discurso do “combate à corrupção”, que
convenientemente esquece o caráter estrutural da relação entre
capital e Estado e serve apenas para destruir a democracia.
Esse é outro ponto central. Quando a Lava Jato eclodiu, muita gente a
apoiou de boa fé. Os vieses da operação eram evidentes a qualquer
olhar um pouco atento, mas era possível admitir o discurso de que, cedo
ou tarde, a “limpeza” iria alcançar todos.
Desde o começo, os métodos eram, digamos, heterodoxos, mas também
era fácil aceitar que um tanto a mais de “pressão” era o preço a
pagar para romper o ciclo de impunidade.
Mesmo à esquerda, colava a ideia de que a corrupção – sempre vista
como um problema do caráter de alguns indivíduos, não um elemento
sistêmico da relação entre capital e política – era o maior problema
nacional.
Poucos se preocupavam em analisar as afinidades eletivas entre a Lava
Jato e o discurso antipolítico, que tornaram a operação instrumental
seja para o desmonte das empresas estatais, seja para o avanço da
extrema-direita. Era grande o custo de ser contra a Lava Jato: era como
ser a favor da corrupção.
Políticos à esquerda saudavam com entusiasmo a operação. Alguns
de fato podiam acreditar na retórica da “limpeza geral” do sistema
político. Outros antecipavam a derrocada do PT e sonhavam com herdar o
espólio – o nome de Luciana Genro é apenas o primeiro da lista.
Mas mesmo petistas sentiam que o custo de criticar os heróis do
momento era alto demais e adotavam um discurso público conciliador.
Não foram poucas as declarações de Fernando Haddad, já como
candidato em 2018, garantindo apoio à Lava Jato e mesmo elogiando o
juiz de primeira instância: “Em geral, Sergio Moro fez um bom
trabalho”.
Por convicção, por ingenuidade ou por oportunismo, muitos abriram
as portas para o discurso punitivista e, assim, para a derrocada do
Estado de direito e da democracia.
Mas, depois das reportagens de The Intercept Brasil, só os cínicos são capazes de defender a Lava Jato.
O mais ativo porta-voz do autoritarismo iliberal no STF, o ministro
Luiz Roberto Barroso deu uma declaração pública de transparente
clareza:
“A corrupção existiu e precisa continuar a ser enfrentada, como vinha sendo. De modo que tenho dificuldade em entender a euforia que tomou os corruptos e seus parceiros [com as revelações do conluio entre juiz e procuradores]”.
O que Barroso está dizendo é que o respeito às regras do processo
penal, ao direito de defesa e à imparcialidade judiciária não é
apenas uma bobagem, mas uma forma de leniência com a corrupção.
Trata-se de punir os “maus” e pronto – e, na ausência do julgamento
correto, sabemos quem são os “maus” graças à opinião publicada…
Pouco separa Barroso dos brados de “deporta Greenwald” que ecoam nas
redes sociais, vindos da extrema-direita em fúria. Que esta mentalidade
tenha assento na máxima corte brasileira, aquela que deveria proteger a
Constituição, é um sintoma grave da situação que atravessamos.
A pusilanimidade do campo democrático na defesa dos princípios que o
caracterizam, sua capitulação diante do discurso fácil e interessado
da mídia e sua falta de disposição em fazer a disputa das narrativas
são corresponsáveis pelo peso que o punitivismo autoritário ganhou
no Brasil.
Mas não há conciliação possível: é uma visão que aponta inequivocamente para o fascismo.
*Luís Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), professor titular do Ins-
tituto de Ciência Política da Universidade de Brasilia (UnB) e
coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades
(Demodê).