Se nossa hipótese estiver correta, não há a menor possibilidade de que as pessoas envolvidas neste escândalo sejam denunciadas e julgadas com imparcialidade, porque todos os envolvidos sempre tiveram pleno conhecimento e sempre aprovaram as práticas ilegais do ex-juiz e de seu “procurador-assistente”, práticas que foram decisivas para a instalação do capitão Bolsonaro na Presidência da República.
Por José Luís Fiori e William Nozaki
É comum falar de “teoria da conspiração”, toda vez que alguém revela
ou denuncia práticas ou articulações políticas “irregulares”, ocultas do
grande público, e que só são conhecidas pelos insiders, ou
pelas pessoas mais bem informadas. E quase sempre que se usa esta
expressão, é com o objetivo de desqualificar a denúncia que foi feita,
ou a própria pessoa que tornou público o que era para ficar escondido,
na sombra ou no esquecimento da história. Mas de fato, em termos mais
rigorosos, não existe nenhuma “teoria da conspiração”. O que existem são
“teorias do poder”, e “conspiração” é apenas uma das práticas mais
comuns e necessárias de quem participa da luta política diária pelo
próprio poder. Esta distinção conceitual é muito importante para quem se
proponha analisar a conjuntura política nacional ou internacional, sem
receio de ser acusada de “conspiracionista”. E é um ponto de partida
fundamental para a pesquisa que estamos nos propondo fazer sobre qual
tenha sido o verdadeiro papel do governo norte-americano no golpe de
Estado de 2015/2016, e na eleição do “capitão Bolsonaro”, em 2018. Neste
caso, não há como não seguir a trilha da chamada “conspiração”, que
culminou com a ruptura institucional e a mudança do governo brasileiro. E
nossa hipótese preliminar é que a história desta conspiração começou na
primeira década do século XXI, durante o “mandarinato” do
vice-presidente americano, Dick Cheney, apesar de que ela tenha
adquirido uma outra direção e velocidade a partir da posse de Donald
Trump, e da formulação da sua nova “estratégia de segurança nacional”,
em dezembro de 2017.
No início houve
surpresa, mas hoje todos já entenderam que essa nova estratégia
abandonou os antigos parâmetros ideológicos e morais da política
externa dos Estados Unidos, de defesa da democracia, dos direitos
humanos e do desenvolvimento econômico, e assumiu de forma explícita
o projeto de construção de um império militar global, com a
fragmentação e multiplicação dos conflitos, e a utilização de
várias formas de intervenção externa, nos países que se
transformam em alvos dos norte-americanos. Seja através da
manipulação inconsciente dos eleitores e da vontade política
dessas sociedades; seja através de novas formas “constitucionais”
de golpes de Estado; seja através sanções econômicas cada vez
mais extensas e letais, capazes de paralisar e destruir a economia
nacional dos países atingidos; seja, finalmente, através das
chamadas “guerras híbridas” que visam destruir a vontade
política do adversário, utilizando-se da informação mais do que
da força, das sanções mais do que dos bombardeios, e da
desmoralização intelectual dos opositores mais do que da tortura.
Desse ponto de vista, é interessante acompanhar e evolução dessas
propostas nos próprios documentos norte-americanos, nos quais são
definidos os objetivos estratégicos do país e as suas principais formas
de ação. Assim, por exemplo, no Manual de Treinamento das Forças
Especiais Americanas Preparadas para Guerras Não-Convencionais,
publicado pelo Pentágono em 2010, já está dito explicitamente que “o
objetivo dos EUA nesse tipo de guerra é explorar as vulnerabilidades
políticas, militares, econômicas e psicológicas de potências hostis,
desenvolvendo e apoiando forças internas de resistência para atingir os
objetivos estratégicos dos Estados Unidos”. Com o reconhecimento de que
“em um futuro não muito distante, as forças dos EUA se engajarão
predominantemente em operações de guerra irregulares”1.
Uma orientação que foi explicitada, de maneira ainda mais clara, no
documento no qual se define, pela primeira vez, a nova Estratégia de
Segurança Nacional dos EUA do governo de Donald Trump, em dezembro de
2017. Ali se pode ler, com todas as letras, que o “combate à corrupção”
deve ter lugar central na desestabilização dos governos dos países que
sejam “competidores” ou “inimigos” dos Estados Unidos2.
Uma proposta que foi detalhada no novo documento sobre a Estratégia de
Defesa Nacional dos EUA, publicado em 2018, em que se pode ler que “uma
nova modalidade de conflito não armado tem tido presença cada vez mais
intensa no cenário internacional, com o uso de práticas econômicas
predatórias, rebeliões sociais, cyber-ataques, fake news, métodos
anticorrupção3”.
É importante
destacar que nenhum desses documentos deixa a menor dúvida de que
todas estas novas formas de “guerra não convencional” devem ser
utilizadas – prioritariamente – contra os Estados e as empresas
que desafiem ou ameacem os objetivos estratégicos dos EUA.
Agora bem, neste
ponto da nossa pesquisa, cabe formular a pergunta fundamental: quando
foi – na história recente – que o Brasil entrou no radar dessas
novas normas de segurança e defesa dos EUA? E aqui não há dúvida
de que cabem muitos fatos e decisões que foram tomadas pelo Brasil,
sobretudo depois de 2003, como foi o caso da sua política externa
soberana, da sua liderança autônoma do processo de integração
sul-americano, ou mesmo, da participação no bloco econômico do
BRICS, liderado pela China. Mas não há a menor dúvida de que a
descoberta das reservas de petróleo do pré-sal, em 2006, foi o
momento decisivo em que o Brasil mudou de posição na agenda
geopolítica dos Estados Unidos. Basta ler o Blueprint for a
Secure Energy Future, publicado em 2011, pelo governo de Barack
Obama, para ver que naquele momento o Brasil já ocupava posição de
destaque em 3 das 7 prioridades estratégicas da política energética
norte-americana: (i) como uma fonte de experiência para a produção
de biocombustíveis; (ii) como um parceiro fundamental para a
exploração e produção de petróleo em águas profundas; (iii)
como um território estratégico para a prospecção do Atlântico
Sul4.
A partir daí, não
é difícil rastrear e conectar alguns acontecimentos, sobretudo a
partir do momento em que o governo brasileiro promulgou – em 2003 –
sua nova política de proteção dos produtores nacionais de
equipamentos, com relação aos antigos fornecedores estrangeiros da
Petrobras, como era o caso, por exemplo, da empresa norte-americana
Halliburton, a maior empresa mundial em serviços em campos de
petróleo, e uma das principais fornecedoras internacionais das
sondas e plataformas marítimas, e que havia sido dirigida, até o
anos 2000, pelo mesmo Dick Cheney que viria a ser o vice-presidente
mais poderoso da história dos Estados Unidos, entre 2001 e 2009. A
Odebrecht, a OAS e outras grandes empresas brasileiras entram nessa
história, a partir de 2003, exatamente no lugar dessas grandes
fornecedoras internacionais que perderam seu lugar no mercado
brasileiro. Cabendo lembrar aqui que a complexa negociação entre a
Halliburton e a Petrobrás5,
em torno à compra e entrega das plataformas P43 e P48, envolvendo
2,5 bilhões de dólares6,
começou na gestão de Dick Cheney e se estendeu até 2003/4, com a
participação do Gerente de Serviços da Petrobrás na época, Pedro
José Barusco, que se transformaria depois no primeiro delator
conhecido da Operação Lava-Jato7.
Nesse ponto, aliás,
seria sempre muito bom lembrar a famosa tese de Fernand Braudel, o
maior historiador econômico do século XX, de que “o capitalismo é
o antimercado”, ou seja, um sistema econômico que acumula riqueza
através da conquista e preservação de monopólios, utilizando-se
de todo e qualquer meio que esteja ao seu alcance. Ou ainda,
traduzindo em miúdos o argumento de Braudel: o capitalismo não é
uma organização ética nem religiosa, e não tem nenhum compromisso
com qualquer tipo de moral privada ou pública que não seja a da
multiplicação dos lucros e a da expansão contínua dos seus
mercados. E isto é que se pode observar, mais do que em qualquer
outro lugar, no mundo selvagem da indústria mundial do petróleo,
desde o início de sua exploração comercial do petróleo, desde a
descoberta do seu primeiro poço pelo “coronel” E. L. Drake, na
Pensilvânia, em 1859.
Agora bem, voltando
ao eixo central da nossa pesquisa e do nosso argumento, é bom
lembrar que este mesmo Dick Cheney que vinha do mundo do petróleo, e
teve papel decisivo como vice-presidente de George W. Bush, foi quem
concebeu e iniciou a chamada “guerra ao terrorismo”, conseguindo
o consentimento do Congresso norte-americano para iniciar novas
guerras, mesmo sem aprovação prévia do parlamento; e o que é mais
importante, para nossos efeitos, conseguiu aprovar o direito de
acesso a todas as operações financeiras do sistema bancário
mundial, praticamente sem restrições, incluindo o velho segredo
bancário suíço, e o sistema e pagamento europeus, o SWIFT.
Por isso, aliás,
não é absurdo pensar que tenha sido por esse caminho que o
Departamento de Justiça norte-americano tenha tido acesso às
informações financeiras que depois foram repassadas às autoridades
locais dos países que os Estados Unidos se propuseram a
desestabilizar com campanhas seletivas “contra a corrupção”. No
caso brasileiro, pelo menos, foi depois desses acontecimentos que
ocorreu o assalto e o furto de informações geológicas sigilosas e
estratégicas da Petrobras, no ano de 2008, exatamente dois anos
depois da descoberta das reservas petrolíferas do pré-sal
brasileiro, no mesmo ano em que os EUA reativaram sua IV Frota Naval
de monitoramento do Atlântico Sul. E foi no ano seguinte, em 2009,
que começou o intercâmbio entre o Departamento de Justiça dos EUA
e integrantes do Judiciário, do MP e da PF brasileira para tratar de
temas ligados à lavagem de dinheiro e “combate à corrupção”,
num encontro que resultou na iniciativa de cooperação denominada
Bridge Project, da qual participou o então juiz Sérgio Moro.
Mais à frente, em
2010, a Chevron negociou sigilosamente, com um dos candidatos à
eleição presidencial brasileira, mudanças no marco regulatório do
pré-sal, numa “conspiração” que veio à tona com os vazamentos
da Wikileaks, e que acabou se transformando num projeto apresentado e
aprovado pelo Senado brasileiro. E três anos depois, em 2013,
soube-se que a presidência da República, ministros de Estado e
dirigentes da Petrobras vinham sendo alvo, havia muito tempo, de
grampo e espionagem, como revelaram as denúncias de Edward Snowden.
No mesmo ano em que a embaixadora dos EUA que acompanhou o golpe de
Estado do Paraguai contra o presidente Fernando Lugo foi deslocada
para a embaixada do Brasil. E foi exatamente depois desta mudança
diplomática, no ano de 2014, que começou a Operação Lava Jato,
que tomou a instigante decisão de investigar as propinas pagas aos
diretores da Petrobrás, exatamente a partir de 2003, deixando fora
portanto os antigos fornecedores internacionais, no momento exato em
que concluíam as negociações da empresa com a Halliburton, em
torno da entrega das plataformas P 43 e P48.
Se todos estes dados
estiverem corretamente conectados, e nossa hipótese for verossímil,
não é de estranhar que depois de cinco anos do início desta
“Operação Lava-Jato”, os vazamentos divulgados pelo site The
Intercept Brasil, dando notícias da parcialidade dos
procuradores, e do principal juiz envolvido nessa operação, tenham
provocado uma reação repentina e extemporânea dos principais
acusados desta história que se homiziaram, praticamente, nos Estados
Unidos. Provavelmente, em busca das instruções e informações que
lhe permitissem sair das cordas, e voltar a fazer com seus novos
acusadores o que sempre fizeram no passado, utilizando-se de
informações repassadas para destruir seus adversários políticos.
Entretanto, o pânico do ex-juiz e seu despreparo para enfrentar a
nova situação fizeram-no comportar-se de forma atabalhoada, pedindo
licença ministerial e viajando uma segunda vez para os Estados
Unidos, e com isto tornou público o seu lugar na cadeia de comando
de uma operação que tudo indica que possa ter sido a única
operação de intervenção internacional bem-sucedida – até agora
– da dupla John Bolton e Mike Pompeu, os dois “homens-bomba”
que comandam a política externa do governo de Donald Trump. Uma
operação tutelada pelos norte-americanos e avalizada pelos
militares brasileiros.
Por isso, se nossa
hipótese estiver correta, não há a menor possibilidade de que as
pessoas envolvidas neste escândalo sejam denunciadas e julgadas com
imparcialidade, porque todos os envolvidos sempre tiveram pleno
conhecimento e sempre aprovaram as práticas ilegais do ex-juiz e de
seu “procurador-assistente”, práticas que foram decisivas para a
instalação do capitão Bolsonaro na Presidência da República. O
único que lhes incomoda neste momento é o fato de que sua
“conspiração” tenha se tornado pública, e que todos tenham
entendido quem é o verdadeiro poder que está por trás dos chamados
“Beatos de Curitiba”.
1
U.S. Department of the Army. U.S.Army Special Forces Unconventional
Warfare Training Manual. Headquarters, Washington D.C., 2010. Disponível
em: https://publicintelligence.net/u-s-army-special-forces-unconventional-warfare-training-manual-november-2010. Acessado em 22/07/2019.
2
U.S. Department of Defense. National Security Strategy, Washington
D.C., 2017. Disponível em:
https://www.whitehouse.gov/wp-content/uploads/2017/12/NSS-Final-12-18-2017-0905.pdf.
Acessado em 22/07/2019.
3
U.S. Department of Defense. National Defense Strategy, Washington
D.C., 2018. Disponível em:
https://dod.defense.gov/Portals/1/Documents/pubs/2018-National-Defense-Strategy-Summary.pdf
Acessado em 22/07/2019.
4
U.S. Department of Energy. Blueprint for a Secure Energy Future,
Washington D.C., 2011. Disponível em:
https://obamawhitehouse.archives.gov/issues/blueprint-secure-energy-future.
Acessado em 22/07/019.
5 “Petrobrás
fecha negócio bilionário com Halliburton, www.dci.com.br,
20/04/04.
7 “Veja
na íntegra a delação premiada de Pedro Barusco”,
https://poliitca.estadao.com.br,
05/02/2015
Fonte Outras Palavras