Empresário de si mesmo. Iludido pelo consumo. Alienado da natureza. Suscetível a seitas que o impedem de desabar. Em novo livro, Pierre Dardot e Christian Laval mostram como a nova racionalidade capitalista criou o sujeito que a reproduz
Por
Eleutério F. S. Prado
Os economistas de direita costumam ridicularizar a ideia de
economista neoliberal, assim como o conceito de neoliberalismo. Será que
eles são apenas competentes na formulação e na aplicação de teorias
econômicas ou, ademais, eles são na verdade bons produtores de fake-theories que
são funcionais – isto é, permitem que as coisas funcionem melhor e de
acordo com as conveniências do sistema econômico ora existente? É
preciso examinar isto cuidadosamente.
No
livro El ser neoliberal (Gedisa, 2018), publicado na Espanha,
os pesquisadores franceses Pierre Dardot e Christian Laval mais uma
vez interpretam o neoliberalismo, não como uma ideologia, mas como
uma racionalidade e uma mentalidade que se impõe. Uma ideologia é
uma representação do mundo – nele baseada, mas em última
análise falsa ou apenas aparente. Uma racionalidade é algo que
constitui o ser social em sua prática cotidiana, posta
historicamente por meio de práticas de poder que, segundo Foucault,
são também formas de governar as mentalidades.
O
modo de produção capitalista sob a regência do neoliberalismo é,
segundo os autores, inseparável da produção contínua de uma
subjetividade apropriada. No referido livro, Dardot e Laval travam um
diálogo com o psicanalista espanhol Enric Berenguer sobre essa
questão. Como pano de fundo, esses três intelectuais encontram-se
claramente preocupados não só com os sintomas mórbidos que
proliferam na sociedade atual, mas também, principalmente, com a
forte deterioração da democracia liberal em quase todos os países
do Ocidente. Tomando tudo isso como um sintoma, eles analisam o
neoliberalismo como um modo de constituição de um novo sujeito. Eis
como Berenguer resume a abordagem psicossocial e crítica dos dois
autores franceses:
Isto significa que as mudanças subjetivas que se pode verificar nos homens e nas mulheres do nosso tempo, alterações que abarcam a forma de viver, mas também de sofrer, não são meras consequências ou efeitos secundários de um sistema. Ao contrário, a produção da subjetividade é um elemento fundamental em sua reprodução e expansão. Para dizer brevemente, um novo sujeito assume em si e por si mesmo os objetivos e os funcionamentos do sistema, converte-se em agente principal de sua expansão. Nessa perspectiva, para falar em termos marxistas, não se trata de pensar apenas que há um modo de produção que se reflete nas formas de consciência, mais ou menos alienadas. Mas sim, de um modo de subjetividade, um modo de vida, que é essencial ao próprio modo de produção, assim como chave para que ele se imponha em nível planetário.
Como
o ser social existente é abraçado e, assim, tomado até certo ponto
por essa racionalidade? Afirmam eles que é por meio da construção
de ficções socialmente plausíveis e eficazes, as quais funcionam
como “modelos” e/ou “espelhos” para os seres humanos reais. O
velho liberalismo, fundado no utilitarismo, criou o homem econômico
racional. A socialdemocracia inventou o homem funcional e o homem
administrativo. O neoliberalismo cunhou o homem como empresário de
si mesmo. Este último foi capaz de se apropriar de uma tradição
que se inicia no século XVII e XVIII e permanece em vigor até
agora, modificando-a conforme a necessidade do momento histórico.
Essa
técnica de formação do ser social e, assim, da conformação da
própria sociedade nasce junto com o capitalismo. Veja-se brevemente
como o homem econômico é projetado nos Princípios sobre moral e
legislação de Jeremy Bentham (autor que viveu entre 1748 e
1832):
“A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer”; “o princípio da utilidade [ou maior felicidade] reconhece essa sujeição e a coloca como fundamento desse sistema, cujo objetivo consiste em construir o edifício da felicidade por meio da razão e da lei”. Ademais, “a comunidade constitui um corpo fictício, composto por pessoas individuais que se consideram como seus membros”.
Ou
seja, a comunidade não é comunidade, mas um mero agregado de
indivíduos racionais que buscam o auto-interesse.
Para
Dardot e Laval, o próprio homem se inventou na época moderna por
meio do discurso da ciência. Assim, o utilitarismo, o liberalismo e,
depois, o neoliberalismo, são encarados por eles não como meras
ideologias ou meras fonte de políticas econômicas, mas como
práticas históricas que modificam a sociedade e os próprios seres
humanos de acordo com as necessidades do sistema econômico. Eis o
que dizem:
O utilitarismo de Bentham (…) definiu uma nova figura do homem, uma figura antropológica específica: o “homem econômico”. Essa figura nasceu de um discurso que explica como o ser humano trabalha, que concebe o homem como uma pequena máquina de prazer e sofrimento, um ser de cálculo que é governado em todas as coisas pelo seu interesse e que, pela mesma razão, é governável por meio do referido interesse. Essa invenção da ficção do homem econômico foi o fundamento e a estrutura para justificar e promover o que mais tarde foi chamado capitalismo.
Segundo
Dardot e Laval, o utilitarismo é o berço do homem econômico
racional, mas não a forma última de embalá-lo. O liberalismo do
século XIX transformou-se no neoliberalismo do século XX sem que o
fundamento utilitarista fosse abandonado. Se o indivíduo fictício
como tal sofreu uma certa mudança, o individualismo e egocentrismo
não foram abandonados. Na condição ainda de calculista inveterado,
o otimizador continua sendo a base lógica da alocação de recursos
escassos entre fins alternativos. Proposição esta que supostamente
resume a tarefa da Economia e dos economistas.
No
último quartel do século XIX, a teoria neoclássica substituiu a
economia política clássica no discurso econômico dominante; com
ela, a linguagem da matemática, que se orgulha de sua exatidão
formal, invadiu os textos na construção das teorias. Assim, o homem
econômico passou a ter racionalidade perfeita. Ora, essa ficção de
um ser individual que maximiza utilidade continua presente na teoria
econômica atual – e não só nos livros de economia. Eis que ele
se impõe até certo ponto como forma de comportamento também á
sociedade. Ademais, os economistas, com base nele, se apresentam como
os profissionais que, mais do que nunca, fornecem a racionalidade
decisória que determina os meios e os fins legítimos da ação
governamental.
Mesmo
se o homem econômico permanece como fundamento do discurso
dominante, no curso da segunda metade do século XX apareceu em
paralelo uma nova figura de ser racional, o homem econômico
transfigurado em homem-empresa, naquele que se vê como capital
humano e que, tal como o capital industrial, precisa se valorizar
constantemente. Trata-se, é certo, de uma nova ficção que vem para
revalorizar a concorrência capitalista real, já que a teoria
neoclássica a havia suprimido por meio da noção de concorrência
perfeita. Já não se trata de “uma maquininha homeostática que
tende, tal como o próprio mercado, ao equilíbrio”. Ao invés, o
que se tem agora é o empreendedor que tem como tarefa “produzir o
desequilíbrio, romper sempre a rotina, gerar inovação, mantendo
sempre a capacidade de se adaptar ao movimento perpétuo do capital.”
Esse
novo homem econômico, portanto, é aquele que, subjetivamente, vê-se
como uma empresa. Essa nova ficção abandona a racionalidade
perfeita para adotar uma racionalidade constrangida pela incapacidade
de obter informação completa sobre as condições em que
supostamente acontece a ação econômica. De qualquer modo, ele
continua sendo o homem que busca sempre mais, mais utilidade, mais
consumo, mais dinheiro, mais capital de modo insaciável.
Ao
lado do homem-empresa ascendeu, no capitalismo da segunda metade do
século XX, o consumidor voraz que assim se comporta na vida
cotidiana segundo a própria lógica da acumulação de capital –
uma lógica que, como se sabe, tem-se por ilimitada. O próprio
capitalismo constrói o indivíduo consumidor que precisa para o seu
próprio movimento acumulativo. E ele aproveita, para tanto, a pulsão
que mora no ser humano real. “Como todo trabalho é uma renúncia
ao gozo, no consumo, no mercado de bens, há uma busca vã de
recuperar o gozo perdido, o qual pode ser qualificado como um
‘mais-gozar’”. Assim, “para o proletário” – dizem eles
–, “trata-se finalmente de consumir cada vez mais com o objetivo
de se converter, imaginariamente, em um capitalista”.
Assim
como a lógica do capital acaba sendo cada vez mais destrutiva do
mundo natural e do mundo social, a lógica do consumismo, do
mais-consumo, termina destruindo a individualidade real e mesmo,
eventualmente, o ser vivo como tal. Ora, o homem-consumidor, como se
sabe, é um produto da governamentalidade posta pela propaganda e
pelo marketing que a imprensa corporativa, a qual se esmera em
gritar “liberdade” e “democracia” a todo momento, não para
nunca de propagar. Assim, é claro, ela sabota a verdadeira liberdade
e a verdadeira democracia porque estas pressupõem uma certa
autonomia das pessoas e uma formação da vontade que emerge das
interações comunicativas delas mesmas.
A
discussão travada por Dardot e Laval enfrenta também a questão do
crescimento dos fundamentalismos, em particular, da expansão das
seitas evangélicas e pentecostais. Para eles, essa difusão não é
incompatível com o capitalismo neoliberal – ao contrário, é-lhe
necessária e funcional. Formam um mercado da fé que acaba cumprindo
uma função necessária num mundo em que há poucos vitoriosos e
muitos perdedores. Essas seitas espalham-se e competem entre si,
procurando mais-suplantar e mais-remediar os males engendrados
incansavelmente pelo próprio capitalismo neoliberal. Elas se
esforçam na tarefa de recondicionar ilimitadamente os indivíduos
que sofrem com toda sorte de dificuldades, assim como de falta de
solidariedade e de comunidade, readequando-os mais do que os
consolando, para que continuem capazes de competir nos mercados, sem
colapsar como ser humanos.
Mas
a construção de ficções que passam a fundamentar a
governamentalidade na sociedade atual não descansa sob os “louros”
do passado. A discussão dos três autores no livro resenhado vai
também do presente para o futuro. Examinam em adição como os novos
saberes científicos, em particular, as neurociências, ensaiam
atualmente a criação de novas ficções. Eis que se fala agora no
transumano e no pós-humano, ou seja, no ciborgue,
um ser que é meio humano e meio máquina. É desse modo que se
pretende ir não só além do homem econômico racional, mas também
da própria condição humana; eis que se ousa pensar assim na
possibilidade de superar a natalidade, a mortalidade, a pluralidade,
o aperfeiçoamento de si mesmo, a simpatia pelos outros etc. Entra-se
assim no campo da neuropolítica: “a utopia transumanista é uma
utopia” – dizem eles – “que opera levando ao limite o que
considera potencialidade ilimitadas do mercado”.
Para
eles, enfim, para resumir e para terminar, “o neoliberalismo pode
ser definido como a racionalidade política cujo efeito é levar o
mais longe possível a ampliação da lógica do valor, isto é, do
‘mais de…’, do ‘valor a mais’, do mais-valor”. O que
implica também no transbordamento da lógica do ilimitado para todos
os âmbitos da vida social. Não parece, portanto, haver para ele
barreiras intransponíveis sejam estas psíquicas, sociais e
ecológicas…
Como
os economistas de direita encarnam essa lógica do ilimitado, eles
continuarão a ridicularizar aqueles que falam em neoliberalismo –
sem deixar, é claro, de pô-lo em prática. Diferentemente deles,
aqui se pergunta mais uma vez: essa lógica cada vez mais sem freios
não produz o niilismo e, depois, o neofascismo, tal como foi
mencionado no artigo anterior? (Ruinas
do neoliberalismo: Chile, caso precursor,
em 14/11/2019).
Fonte Outras Palavras