Leonardo Boff escreve sobre o sentido do Natal nos massacres de crianças
inocentes que marcam o Brasil de hoje: "Junto com a mãe de Aghtata
Félix, Vanessa Francisco Sales que carregava no enterro a boneca da
Mônica que sua filhinha tanto gostava, fazem-se ouvir as mesmas vozes
que a Raquel bíblica: As mães do Morro do Alemão, do Jacarezinho, da
Chatuba de Mesquita, da Vila Moretti de Bangu, do Complexo do Chapadão,
de Duque de Caxias, da Vila Cruzeiro no Complexo da Penha, de Maricá.
Escutemos seus lamentos!
Leonardo Boff é filósofo, teólogo e professor aposentado de Ética da UERJ
Natal sempre possui o seu idílio. Não pode haver tristeza quando nasce a vida, especialmente quando vem ao mundo o puer aeternus,
o Divino Infante, Jesus. Há anjos que cantam, a estrela de Belém que
brilha, os pastores que velam à noite o seu rebanho. Mas lá estão
principalmente Maria, o bom José e o Menino deitado numa manjedoura,
“porque não havia lugar para eles na hospedaria”. E eis que apareceram
também vindo do Oriente, uns sábios, chamados magos, que abriram seus
cofres e ofereceram ouro, incenso e mirra, símbolos misteriosos.
Mas havia também um rei mau, Herodes, crudelíssimo a ponto de dizimar
toda sua família. Ouviu que nascera na cidade de Davi, Belém, um menino
que seria o Salvador. Temendo perder o trono, mandou matar em Belém e
arredores, todos os meninos de dois anos para baixo.
Os textos sagrados conservam um lamento dos mais pungentes de todo o Novo Testamento: ”Em Ramá se ouviu uma voz, muito choro e muito gemido. É Raquel que chora os filhos e não quer ser consolada porque os perdeu”(Evangelista Mateus 2,18).
O Natal deste ano nos traz à mente os atuais Herodes que estão
dizimando nossas crianças e jovens. Entre 2007-2019, 57 crianças e
jovens até 14 anos foram mortos no Brasil por balas perdidas, em ações
policiais. Só neste ano de 2019 no Rio de Janeiro, 6 crianças e 19
adolescentes perderam a vida em ações policiais, informa a Plataforma Fogo Cruzado.
Houve na região metropolitana do Rio 6.058 tiroteios com arma de fogo,
com 2.301 pessoas baleadas das quais 1.213 foram mortas e 1.088
gravemente feridas. O caso mais clamoroso foi da criança de 8 anos
Aghata Félix morta por disparo de fuzil pelas costas dentro de uma kombi
quando ia para casa com sua mãe.
Seus nomes merecem ser referidos. Embora com poucos anos a mais,
tiveram o mesmo destino dos mortos por Herodes: Jenifer Gomes,11 anos;
Kauan Peixoto 12 anos; Kauã Rozário 11 anos; Kauê dos Santos 12 anos;
Agatha Félix 8 anos; Ketellen Gomes 5 anos.
O governador do Rio de Janeiro com sua polícia feroz vem sendo
acusado de crime contra a humanidade pois manda atacar as comunidades
com helicópteros e drones, aterrorizando a população. O prefeito Marcelo
Crivella confessou que nas 436 escolas instaladas nas comunidades,
devido às ações policiais, as crianças perderam 7000 horas de aula.
Junto com a mãe de Aghtata Félix, Vanessa Francisco Sales que
carregava no enterro a boneca da Mônica que sua filhinha tanto gostava,
fazem-se ouvir as mesmas vozes que a Raquel bíblica: As mães do Morro do
Alemão, do Jacarezinho, da Chatuba de Mesquita, da Vila Moretti de
Bangu, do Complexo do Chapadão, de Duque de Caxias, da Vila Cruzeiro no
Complexo da Penha, de Maricá. Escutemos seus lamentos:
“Ouvem-se muitas vozes, muito choro e muitos gemidos. As mães
choram seus queridos, mortos por balas perdidas; não querem consolar-se
porque perderam suas crianças para sempre. Pedem uma resposta que não
lhes vem de nenhuma instância. Entre lágrimas e muitas lamentações
suplicam: parem de matar nossas crianças. Parem, pelo amor de Deus. Queremos elas vivas. Queremos justiça”.
Este é o contexto do Natal de 2019, agravado por uma política oficial que usa os meios perversos da mentira, do fake news,
de muita raiva e de ódio visceral. Jesus nasceu pobre e pobre viveu a
vida inteira. E surge um presidente que tem frequentemente Jesus em seus
lábios e não em seu coração porque difunde ofensas a homoafetivos, a
negros, a indígenas, a quilombolas e a mulheres.
Diz abertamente que não gosta de pobres, quer dizer, não gosta
daqueles que Jesus disse: “bem-aventurados os pobres” e e que os chamou
“meus irmãos e irmãs menores” e que no ocaso da vida serão nossos juízes
(Mt 25,40). Não gostar dos pobres significa que não quer governar para
as maiorias dos brasileiros que são pobres e até miseráveis, para os
quais deveria primeiramente governar e cuidá-los.
Apesar disso tudo, há que se celebrar o Natal. Faz escuro mas
festejamos a humanidade e a jovialidade de nosso Deus. Ele se fez
criança indefesa. Que felicidade em saber que seremos julgados por uma
criança que apenas quer brincar, receber e dar carinho e amor.
Que o Natal nos conceda um pouco daquela luz que vem da
Estrela que encheu de alegria os pastores dos campos de Belém e que
orientou o sábios-magos para a gruta. "Sua luz ilumina cada pessoa que
vem a este mundo”(Jo 1,9), você e eu, todos, não só os batizados.Feliz
Natal"
Fonte Brasil 247