Qual o motor das barbaridades do regime evocado por secretário de
Bolsonaro? Zizek discorda de Hannah Arendt. Para ele, obediência às
ordens não explica tudo — até porque atrocidades ficavam ocultas.
Haveria gozo compartido no horror alheio
Outras Palavras
Por Jodi Dean | Tradução: Eleutério Prado
Esta
nota1
é parte de meu esforço para apresentar a teoria política de Slajov
Zizek como um sistema coerente: versa, por isso, sobre a sua
compreensão do nazismo.
As
discussões de Zizek sobre o fascismo focam a Alemanha nazista e a
maneira pela qual o nazismo transtornou a luta de classes em um
confronto de raças. Ele apreende a dimensão estética da dominação
nazista, assim como o papel do mestre “totalitário” nessa
dominação. Como ele conjuga esses elementos? Adotando uma visão em
paralaxe. Ou seja, o seu relato sobre o nazismo percorre três
registros: o do Real em que se dá o confronto do nazismo com o
Capital, o do Simbólico em que opera o comando da burocracia nazista
e o do Imaginário em que acontece a estética nazista.
O
nacional-socialismo, explica Zizek, foi uma tentativa de mudar algo
para que nada mudasse. I) Confrontou as tendências revolucionárias
e desestabilizadoras do capitalismo. Fez isso, no entanto, de uma
maneira que procurava garantir a continuidade da produção
capitalista. O nazismo tentou eliminar o antagonismo fundamental do
capitalismo (e de sua sociedade), localizando-o em uma causa
específica que poderia ser eliminada. II) Em vez de ver e reconhecer
a divisão social, concebeu a sociedade como um corpo unificado.
Assim, a divisão efetiva dessa unidade foi tratada como um fato
social empírico, que poderia ser identificado e resolvido. Em outras
palavras, o nazismo tentou reter a produtividade capitalista,
sujeitando-a ao controle político, ou seja, deslocando a crise
econômica para o âmbito de uma coordenação política.
De
acordo com o relato feito por Zizek, o esforço nazista para ter um
capitalismo sem capitalismo baseou-se na atribuição de dois
sentidos chaves à noção de luta de classes. O primeiro deles
figura como histórico e envolve essa luta em sua dimensão positiva:
o nacional-socialismo surgiu como uma resposta específica aos
excessos e rupturas do capitalismo (as suas crises econômicas e
financeiras), à agitação trabalhista e à atuação dos partidos
comunistas e socialistas. Os nazistas subiram ao poder por meio da
supressão e eliminação dos comunistas. O segundo sentido aparece
como conceitual já que trata a luta de classes como uma abstração,
como um antagonismo ou uma espécie de negação. O nazismo procurou
controlar e conter os excessos revolucionários engendrados pelo
próprio capital, deslocando-os para a figura do povo judeu, visto
assim como a causa de toda perturbação. Desse modo, ele respondeu
aos antagonismos tratando aquilo que é constitutivo do capitalismo
como se fosse algo acidental, natural e remediável.
Zizek
argumenta que o nacional-socialismo buscava deslocar antagonismo de
classe, condensando-o num povo específico. Para apreendê-lo
enquanto forma de poder, classifica então o discurso nazista como um
“discurso de mestre”, o qual é o primeiro dos
quatro discursos descritos por Lacan. Todos eles, como se sabe,
consistem em modos de estabelecer os laços sociais por meio e no
interior da comunicação; além do mencionado, há três outros: o
discurso da universidade, o discurso da histérica e o discurso da
psicanálise (ou da teoria crítica em geral). Esses quatro discursos
combinam sempre quatro significantes: agente, outros, conhecimento e
produto/perda.
No
discurso do mestre, o mestre é o agente e ele tem o poder de dizer
aos outros o que não pode ser contestado. Ele ocupa a posição de
quem manda. As suas palavras dão suporte à verdade. Sendo o mestre
o significante principal, é ele que, na prática, fundamenta ou
estabelece conhecimento. Ele se dirige aos outros que figuram apenas
como aqueles que obedecem, ou seja, como sujeitos sujeitados. No
entanto, a verdade que o mestre fornece não pode ser correta ou
completa já que ele também é um intérprete, um sujeito bipartido
em um consciente e um inconsciente – entretanto, essa cisão é
ocultada daqueles que devem obedecê-lo. De qualquer modo, o seu
discurso produz um efeito naqueles sujeitos que a ele se submetem
na forma de um produto, um ganho ou uma perda.
O
que isso tem a ver com fascismo? Zizek lê o nazismo como uma força
estruturante: ele introduziu um mestre no campo social alemão que se
encontrava em estado caótico. Ao descrever o antissemitismo alemão
na década de 1920, Zizek escreve: “as pessoas se sentiam
desorientadas, sucumbindo a uma derrota militar imerecida, uma crise
econômica que corroía suas economias, ampla ineficiência política
e degeneração moral… ora, os nazistas criaram então um único
agente responsável por tudo: o judeu, a conspiração judaica. E
essa magia restauradora foi produzida pela introdução de um
mestre…”. Crucial para o apelo nazista à ordem, ele próprio
massivamente desordenado e excessivo, foi a produção de um
significado, a provisão de uma explicação que dizia aos alemães
quem eles eram. O discurso do mestre passa a ordenar assim o campo
social, propagando uma certa verdade para os sujeitos sujeitados (os
outros alemães), mas produzindo também um resto, algo que não
poderia mais caber no campo ordenado fornecido pelo mestre (os
judeus).
O
discurso do mestre se vale do que Lacan chamou de fantasia. A
presença de um certo imaginário dá suporte ao discurso do mestre,
mostrando-se bem necessário à sua autoridade. Em que consiste,
então, a estrutura fantasiosa do nazismo? Que os sujeitos haviam se
tornado um objeto para o desfrute de outros. A própria atividade,
força e ação que o mestre fascista agora promete e aparentemente
incute em seu povo tem como premissa que eles, como súditos, foram
fortemente passivos. Nessa perspectiva, lhes diz, então, que eles
foram e são vítimas de outros, os quais vinham furtando o seu gozo.
Mas ele garante agora a recuperação desse gozo devido ao próprio
fato de que agora eles podem se verem como formando uma nação.
Esta, então, é caracterizada por uma coisa bem concreta. Ao pô-la,
os sujeitos supostamente passam a obter de novo aquele prazer que
havia sido ameaçado e roubado.
Mesmo
que toda essa fantasia seja um complemento do discurso do mestre
nazista, o nacional-socialismo precisa também de um outro
complemento, este agora de ordem simbólica. Compreender o fascismo
simbolicamente, ou seja, enquanto um conjunto de normas e leis,
requer uma mudança de perspectiva. Zizek julga que, para isso, é
preciso entender o papel da burocracia nazista.
Considerando
a vasta infraestrutura burocrática do Terceiro Reich, Zizek rejeita
o relato de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal. Em seu relato do
julgamento do criminoso de guerra nazista Adolf Eichmann, como se
sabe, Arendt enfatiza o modo meticuloso de proceder de Eichmann no
cumprimento de regras, ordens, burocracia e papelada. Assim, o horror
do Holocausto não aparece como um mal monstruoso e aterrorizante,
mas como um acúmulo de detalhes, como mera obediência às ordens
vindas de cima, de tal modo que ele próprio deixava de se sentir
responsável pelo que havia feito. Ora, o regime nazista também
consiste nas regras e nas leis que o compõem, as quais lhe
permitiram funcionar enquanto tal. Zizek argumenta que o Holocausto
não pode de forma alguma ser reduzido a um subproduto mecânico da
administração burocrática. Pelo contrário, precisa ser entendido
em sua relação com o gozo.
O
extermínio sistemático de judeus, poloneses, romenos e
homossexuais, mesmo quando se tornou conhecido, nunca foi declarado
abertamente. Como Zizek ressalta, “a efetivação do Holocausto foi
tratada pelo próprio aparelho nazista como uma espécie de segredo
obsceno e sujo, que não podia ser reconhecido publicamente. Eis que
ele não podia aparecer como uma tradução simples e direta da ação
da máquina burocrática anônima do nazismo”. O fato de que a
administração do Holocausto tinha componentes ocultos, que aquilo
que estava sendo gerenciado tinha que permanecer camuflado, é o que
torna a explicação de Arendt bem insatisfatória. Havia claramente
mais no Holocausto do que simplesmente a administração de regras
por funcionários públicos. E esse “mais” precisa ser explicado
pela conexão entre a aplicação dessas regras burocráticas com o
gozo que o assassinato dos judeus lhes trazia.
Zizek
sugere três maneiras pelas quais a lógica simbólica da burocracia
operava com relação ao gozo. Primeiro, as regras permitiam aos
sujeitos manter uma lacuna entre seus deveres e os horrores que
estavam cometendo. Nesse sentido, as regras eram uma espécie de
escudo, um Grande
Outro em cujo nome
os sujeitos estavam agindo. Elas forneceram aos sujeitos uma projeção
imaginária que ocultava um prazer real. Segundo, as regras permitiam
aos sujeitos participar de transgressões compartilhadas.
Precisamente porque os horrores do Holocausto não puderam ser
oficialmente reconhecidos, precisamente porque os crimes continuaram
sendo crimes, permaneceram violações obscenas dos códigos de ética
alemães. Assim, quem os violou participou, sim, de uma transgressão
compartilhada. A violação coletiva forneceu um sentido e, assim, um
suporte de verossimilhança à experiência propriamente nazista:
todos eles estavam nisso juntos. Terceiro, as regras propiciavam um
impulso libidinal, um certo excesso que proporciona prazer àqueles
que estão cumprindo as ordens.
Ao
descrever a maneira como a própria burocratização era uma fonte de
gozo, Zizek escreve: “as regras burocráticas não dariam um ganho
libidinal se os assassinatos não fossem tomados como uma operação
administrativa, mas também criminal. Não é mais satisfatório
torturar prisioneiros como parte de algum procedimento ordenado –
por exemplo, por meio ‘exercícios matinais’ sem sentido que
serviram apenas para atormentá-los? Esse “remédio” não
produzia um impulso de satisfação aos guardas quando infligiam dor
aos prisioneiros? Não porque os espancavam diretamente, mas porque
as surras ocorriam sob o disfarce de uma atividade oficialmente
destinada a manter saúde dos desafortunados?”.
Ora,
se tudo isso parece absurdo, que se considere então os vilões nos
filmes de Hollywood. Eles não praticam em cena ações bem
elaboradas para torturar e confrontar os heróis? Veja-se que esse
ponto foi exposto claramente pelo filho do personagem Doctor Evil no
filme de Michael Myers denominado de Austin
Powers. Diante do
plano comicamente elaborado por seu pai, Scott, para torturar o
herói, o seu filho ingenuamente pergunta: “por que você não o
mata logo?
Além
de analisar o nazismo da perspectiva do antagonismo realmente
existente e da lógica simbólica das regras burocráticas, Zizek
empreende mais uma mudança paraláctica para considerar mais uma vez
a dimensão imaginária da ideologia nazista. Até certo ponto –
diz ele – pode-se entender essa ideologia provida pelo mestre
nazista, assim como as regras simbólicas que visam garanti-la. No
entanto, à medida que existe uma lacuna irredutível entre esses
três domínios do real, do imaginário e do simbólico, eles não
podem ser considerados como estritamente comensuráveis. Foi visto
que o discurso do mestre distorce o antagonismo da luta de classes,
transferindo-o para uma suposta diferença insuportável de raças.
Por esse meio, o nazismo procurar controlar a desordem própria do
capitalismo, abrigando agora os conflitos no âmbito de seu próprio
poder de atuação sobre eles; assim, vê-se como capaz de
identificar aquilo que supostamente corrompe a sociedade e, ao mesmo
tempo, capaz de purificá-la radicalmente dessa corrupção. Em
consequência, lógica racista da transferência posta pelo mestre
efetua um fechamento, uma solidificação completa dos excessos do
sistema.
A
fantasia antes apontada apoia, sem interromper, o discurso do mestre
fascista, na medida em que confirma o suposto roubo do prazer
praticado pelos judeus. Ora, abordar o nazismo a partir da
perspectiva do simbólico produz uma análise diferente. E esta se
baseia em uma incompletude ou divisão entre a face oficial das
regras e o gozo obsceno a que dão origem. Essa perspectiva ajuda a
compreender o apego dos súditos alemães ao regime, o fato de que as
próprias regras proporcionavam prazer. O domínio do imaginário,
por sua vez, mostra um gozo que era crucial para o nazismo, a saber,
um apego a um ideal estético de comunidade.
Contra
Heidegger e com Alain Badiou, Zizek afirma que o nazismo não
continha nenhuma “grandeza interior”. Ora, isso não significa
que lhe faltava “autenticidade” – para usar uma categoria
central do filósofo de Ser
e tempo. “A ideia
de fundar uma grande solidariedade para manter unida a comunidade das
pessoas” continha um núcleo não ideológico já que funcionava
como um ideal ou aspiração que não podia ser reduzida a um mero
instrumento de poder. É assim que Zizek argumenta sobre essa
questão: “É claro que a ideologia fascista ‘manipulava’ o
desejo popular autêntico de viver numa verdadeira comunidade em que
impera uma forte solidariedade social, superando assim a feroz
concorrência e exploração inerente do capitalismo. É claro que
ela ‘distorce’ a expressão desse desejo, a fim de legitimar a
continuação das relações de dominação e exploração social.
Para obter esse efeito, porém, teve que incorporar um autêntico
desejo popular”.
Logo,
as pessoas não eram simplesmente coagidas a aderir ao nazismo. Elas
não participavam diretamente das lutas e dos jogos de poder que se
desenrolavam no partido nacional-socialista. Antes, o vínculo que
mantinham com a formação ideológica estava garantido por desejos
utópicos, anseios por algo mais, por algo melhor. Toda ideologia,
incluindo o fascismo, depende de um núcleo não ideológico.
No
nazismo, esse núcleo era representado como “uma experiência
extasiada e estetizada de comunidade”. Longe de ser um elemento da
politização total da sociedade, os espetáculos nazistas dependiam
da suspensão do político por meio de rituais bem elaborados. Eram
encenações teatrais que produziam uma ilusão de comunidade, um
espelhamento falso de unidade comunal; a sua função era recobrir as
fissuras reais que a modernização e a mobilização tecnológica
haviam criado no corpo social – orgânico tal como imaginado. E
não apenas a experiência da comunidade foi estetizada, mas também
aquilo que era verdadeiramente horrível, o campo de concentração.
Zizek enfatiza que os campos nazistas envolviam uma “estética do
mal”. “A humilhação e a tortura dos detentos”, escreve ele,
“era um fim em si mesmo”. Não servia a nenhum propósito
racional e, na verdade, era contrário a um uso eficiente dos presos
no trabalho forçado. Zizek segue aqui Giorgio Agamben quando ele vê
os muçulmanos atuais viverem em horríveis campos de refugiados como
o “nível zero de humanidade” ou aquele ponto não simbolizável
do Real.
Ao
apreender o fascismo pelo visor de Zizek, enfatizou-se a sua análise
do nazismo como um deslocamento da luta de classes para um conflito
racial entre o povo alemão e o povo judeu. Esse desvio, mostrou-se,
consiste numa operação simbólica em que as regras burocráticas
fornecem também alimento para o gozo. A operação como um todo se
baseia num desejo imaginário de comunidade que é estetizado e
encenado teatralmente. No entanto, essas diferentes análises não
correspondem exatamente ou se encaixam em uma única explicação. A
sua relação com o objeto, ou seja, como o nazismo, tem o caráter
de uma paralaxe: são visões separadas por lacuna necessárias. Em
outras palavras, nessas análises fica claro que “não há uma
relação direta entre economia e política”, já que elas não se
encontram em um trajeto comum, não se fundem como se fossem
congruentes. Ou seja, pensar essa relação requer também que
acolham certas mudanças inevitáveis e certas distorções teóricas.
Além
disso, essa paralaxe se sobrepõe ao antagonismo real da luta de
classes. Os deslocamentos ocorrem justamente para evitar as
consequências das lutas entre as classes. Os nazistas tentaram
modernizar o capitalismo ao máximo, substituindo a luta de classes
por uma luta pelo poder “naturalizada” entre a sociedade orgânica
e seu suposto excesso corrupto. Assim, para Zizek, a “revolução”
nazista não foi de fato uma revolução, mas apenas uma farsa, uma
atuação espetacular que encobriu e sustentou o seu fracasso em
enfrentar verdadeiramente esse antagonismo.
1
Esta
tradução procurou respeitar antes os significados intencionados
pela autora do que o seu escrito propriamente dito. Uma tradução
ipse
litteris
teria ficado incompreensível.
Fonte Outras Palavras