Não precisamos expor aqui os diversos casos de empresários que gostavam de assistir a sessões de tortura.
Basta dizer que há uma rica produção historiográfica que demonstrou que o empresariado industrial auxiliava na infraestrutura da repressão e que trabalhava vigiando seus próprios funcionários, tendo como exemplo mais conhecido desse nefasto conluio a figura do empresário e sócio da FIESP Albert Hening Boilesen.
Por Jullyana Luporini de Souza*
A aproximação de dirigentes da FIESP (Federação das Indústrias do
Estado de SãoPaulo), que é a entidade mais representativa do
empresariado brasileiro, com o governo de Jair Bolsonaro parece
surpreender alguns articulistas e formadores de opinião.
Contudo, a ligação da burguesia industrial com o autoritarismo faz parte da história da entidade desde a sua fundação.
Em artigo publicado na Folha de São Paulo, um jornalista indaga, estupefato, se a FIESP é fascista.
Celso Rocha de Barros condena – com razão – a aproximação da entidade
com Bolsonaro e seu novo partido, caracterizando a movimentação como
vergonhosa para a indústria e para o Brasil.
O que o jornalista parece ignorar é a história da entidade e da própria formação da burguesia industrial brasileira.
O Centro das Indústrias do Estado de SãoPaulo, que alguns anos depois
originou a FIESP, nasceu em 1928, com o intuito de representar os
interesses da fração do empresariado industrial paulista em um momento
que a indústria brasileira começava a despontar como alternativa
econômica viável, em um país que passava por um processo de aparente
esgotamento do modelo agroexportador.
Com a iniciativa da entidade, o empresariado da maior cidade
industrial do país passou a se organizar coletivamente em busca de seus
interesses, quebrando a tradição de uma atuação centrada em ganhos
individuais.
Gestada em um período de transformações, a FIESP orientou-se através
de uma atuação corporativista, racional e pautada na defesa
intransigente da ordem, sendo possível observar esse movimento em
diversos momentos da história brasileira.
Ainda sob aRepública Velha, a entidade se tornou a inimiga principal
de uma prematuralegislação trabalhista que buscava garantir férias e
regular o trabalho demenores de idade em fábricas.
A atuação contra essas leis, aprovadas respectivamente em 1925 e em
1928, mobilizava a cúpula da FIESP que orientava juridicamente seus
associados a não cumprirem a legislação alegando que a entidade estava
trabalhando para que as leis fossem revistas.
A aversão aqualquer pauta trabalhista era notória.
A burguesia industrial paulista era irredutível diante das
reivindicações do proletariado, insistindo que a aceitação dessas pautas
significava a destruição da ainda incipiente indústria brasileira e que
não passava de vitimização por parte dos trabalhadores.
Se para os industriais a movimentação do proletariado deveria ser
respondida através da violência e da negação, visão diferente teve
Getúlio Vargas, que acreditava que a conciliação entre capital e
trabalho era primordial para a harmonia das classes sociais, necessária
para a construção de uma diretriz econômica industrial baseada em um
Estado forte e centralizador.
A criação doMinistério do Trabalho foi uma resposta dada pelo então
Governo Provisóriodiante da visão antiquada dos coronéis da República
Velha, algo que oempresariado paulista (que sempre cultivou relações
consanguíneas com estes)nunca engoliu.
O descontentamento e ressentimento com o governo de Vargas revelou-se
durante o levante paulista de 32, ofensiva conservadora com ares de
superioridade social e racial que a elite paulista promoveu, tentando
retomar a hegemonia política perdida pós década de trinta.
Antigosadversários, uma pretensa ameaça comunista uniu anos mais
tarde esses doisatores: a FIESP apoiou o Estado Novo, as torturas e as
prisões de militantes,sindicalistas e dirigentes operários — tudo em
nome da defesa da ordem, dafamília e da propriedade privada.
Estranhamente, como apontado pelo historiador Edgard Carone, o
integralismo foi visto com maior complacência por membros dessa elite,
que diziam rechaçar qualquer tipo de manifestação política radical**.
Outro aspecto interessante foi o flerte da burguesia industrial com o
fascismo no período. Muito se fala sobre o entusiasmo de Getúlio Vargas
com o totalitarismo, mas ironicamente não há menção à adesão pública e
fervorosa dos industriais italianos Francisco Matarazzo e Rodolfo Crespi
ao fascismo.
Também não se fala que Nami Jafet, o “pai de todos” da grande família
libanesa responsável pelo conglomerado Nami Jafet & Irmãos,
escreveu ensaios discutindo a diferença natural e sadia entre ricos e
pobres e a importância da sustentação das relações desiguais como ordem
natural do mundo.
Esses são
alguns exemplos de dirigentes industriais que representavam “a locomotiva da
nação” e que não se embaraçavam ao defender ideologias totalitárias e
conservadoras, para o espanto do jornalista Celso de Barros.
Os“empreendedores bandeirantes” aliavam-se a qualquer movimentação
golpista desdeque a contrapartida fosse o controle dos trabalhadores, a
destruição domovimento operário e das lideranças sindicais.
Isso explica o fim da relação com Getúlio Vargas alguns anos mais
tarde, no momento em que a mobilização operária ganhava fôlego e que o
presidente assumia contornos populistas.
Sobre ratos nas vaginas o jornalista parece desconhecer a relação promíscua entre a entidade e a ditadura.
Não precisamos expor aqui os diversos casos de empresários que gostavam de assistir a sessões de tortura.
Basta dizer que há uma rica produção historiográfica que demonstrou
que o empresariado industrial auxiliava na infraestrutura da repressão e
que trabalhava vigiando seus próprios funcionários, tendo como exemplo
mais conhecido desse nefasto conluio a figura do empresário e sócio da
FIESP Albert Hening Boilesen.
A crítica dos industriais veio tarde demais e em um momento que a defesa do regime de pouco valia.
A ditadura militar perdia seu prestígio e a abertura era uma questão de tempo para os próprios militares.
Diante de um clima de insatisfação geral com o regime, a greve dos
operários do ABC fez com que a entidade praticamente fosse obrigada a se
pronunciar afirmando a necessidade de uma política salarial justa e um
ambiente de livre negociação entre empresários e trabalhadores.
O arroubo progressista durou pouco e com o avanço do movimento
grevista a entidade assume um tom moderado até finalmente exigir que as
forças repressivas controlassem a situação, voltando à sua posição
habitual.
O período daredemocratização foi talvez o mais complexo para a FIESP.
Crises internas, abertura do mercado para o capital internacional e
declínio acentuado da indústria ocasionaram a perda de influência da
entidade.
Foi com o governo Lula que a federação, beneficiada pelo aumento das
taxas de crescimento, voltou a ter o protagonismo de outrora.
Mas arelação harmoniosa entre a burguesia industrial e o ex-líder sindical cobrouseu preço.
Acontece que não só essa fração de classe empoderou-se durante os
dois governos de Lula, mas também a classe trabalhadora e seus
organismos de classe, tornando a correlação de forças um problema de
longo prazo.
Com a diminuição da taxa de lucros causada pela crise global do
capitalismo, a ofensiva neoliberal chegou com força no terceiro mundo.
Agora a defesa do Estado mínimo veio acompanhada por uma ideologia
que enaltece o self made man, o individualismo exacerbado e o rechaço a
qualquer pacto social baseado na solidariedade.
Nesse meio tempo tivemos um golpe de Estado da primeira presidenta,
Dilma Roussef, acompanhado por uma sórdida narrativa misógina e
conservadora — em que a exaltação de torturadores e a conclamação a
pretensos valores cristãos faziam parte da ordem do dia.
De nada adiantaram os acenos da presidenta ao empresariado através da política de desoneração fiscal.
A relação entre Dilma e a FIESP foi interrompida por um enorme e
amarelo pato inflado na sede da federação endossando a sanha golpista
nos bastidores políticos e a exaltação de valores autoritários nas ruas
através de pedidos da volta da intervenção militar.
Taismanifestações abertamente autoritárias ocorridasem torno do
prédio da FIESP não enrubesceram seus sócios, muito menos o presidente
da entidade e aspirante a governador do estado de São Paulo, Paulo Skaf.
Skaf tem se sobressaído como personalidade atuante da FIESP e
candidatou-se pelo mesmo partido do vice-presidente Michel Temer (MDB).
Mesmo terminando seu mandato tampão em baixíssima popularidade, foi
tido como eficiente pelo empresariado industrial principalmente por ter
aprovado a ReformaTrabalhista, pauta tão cara aos empresários.
Paulo Skafsoube valorizar seu capital político à frente da entidade e
conseguiu 21,09% de votos do eleitorado paulista em sua primeira
eleição.
Não levou o governo, mas seu apoio foi disputado. No segundo turno apoiou para presidente Jair Bolsonaro.
A relação doempresário que personifica a FIESP com o presidente tem se estreitado.
O presidente não apresentou até agora nenhum plano de recuperação
econômica para a indústria brasileira, mas isso não parece ser um grande
problema para o homem que representa a vanguarda do nosso empresariado.
Quais as intenções por trás da pretensa irracionalidade de
apoiar um governo nitidamente despojado de qualquer possibilidade de apresentar
um projeto de desenvolvimento que fortaleça os interesses da indústria
nacional, ou seja, os interesses corporativistas da burguesia industrial
brasileira?
Não éirracionalidade, mas cálculo de sobrevivência.
A burguesia industrial brasileira, historicamente, sempre soube seu papel de sócio menor do capitalismo.
Diante de uma crise estrutural, onde a taxa de lucros se reduz e há
pouca esperança de voltarmos a alcançar os padrões de riqueza e
distribuição anteriores, o empresariado defende seu quinhão e busca
aniquilar os direitos trabalhistas, diminuindo o papel de contestação da
classe trabalhadora.
Pode pareceruma distopia, mas os fenômenos como o fascismo italiano e
o nazismo alemãodemonstraram a capacidade do empresariado se adequar e
se aliar a essemovimento a fim de se aproveitar de um regime de terror,
violência extralegal edesumanização do outro para a máxima extração da
mais valia.
É necessário lembrar que a irracionalidade fascista é fruto do
sistema racional capitalista: é a resposta violenta em momentos de
crises, onde o sistema distributivo falha e só resta a barbárie, a
exploração e finalmente o extermínio dos mais vulneráveis.
Não há surpresa, infelizmente, para quem conhece a história.
*Mestra em História Econômica pela Universidade de São Paulo.
Fonte Vi o Mundo