Podemos continuar com nosso estilo de vida consumista, depredador da natureza, ameaçador do equilíbrio da Terra, produzindo ilimitada riqueza em poucas mãos dentro de um oceano de pobres e miseráveis?
Por que não descobrimos ainda a única Casa Comum, a
Mãe Terra e o nosso dever coletivo de cuidar dela para que todos possam
caber dentro, a natureza incluída?
LeonardoBOFF.com
Por Leonardo Bof. Leonardo é teólogo, filósofo e escreveu: A Terra na palma de nossa mão uma nova visão do planeta e da humanidade, Vozes 2016
A pandemia do coronavírus nos obriga a todos a pensar: o que conta,
verdadeiramente, a vida ou os bens materiais? O individualismo de cada
um para si, de costas para os outros, ou a solidariedade de uns para com
os outros? Podemos continuar explorando, sem outra consideração, os
bens e serviços naturais para vivermos cada vez melhor ou cuidar da
natureza, da vitalidade da Mãe Terra e do bem-viver que é a harmonia
entre todos e com os seres da natureza? Adiantou alguma coisa os países
belicosos acumularem cada vez mais armas de destruição em massa, a ponto
de destruir toda a biosfera e estraçalhar a Terra, se tem que agora se
render a um vírus invisível que pode tornar ridículo todo esse aparato
de morte? Podemos continuar com nosso estilo de vida consumista,
depredador da natureza, ameaçador do equilíbrio da Terra, produzindo
ilimitada riqueza em poucas mãos dentro de um oceano de pobres e
miseráveis? Faz ainda sentido cada país afirmar a sua soberania,
opondo-se a dos outros, quando todos estamos dentro do mesmo Titanic
que pode afundar? Por que não descobrimos ainda a única Casa Comum, a
Mãe Terra e o nosso dever coletivo de cuidar dela para que todos possam
caber dentro, a natureza incluída?
São perguntas que não podem ser evitadas. Ninguém tem a resposta. Uma
coisa, entretanto é certa, atribuída Einstein: “a visão de mundo que
criou a crise não pode ser a mesma que nos vai tirar da crise”. Temos
que, forçosamente, mudar. O pior seria se tudo voltasse como antes, com a
mesma lógica consumista e especulativa, talvez, com mais fúria ainda.
Aí sim, por não termos aprendido nada, a Terra nos enviaria um outro
vírus, talvez aquele que pode pôr um fim ao fracassado projeto humano.
Mas podemos olhar a guerra que o coronavírus está movendo em todo o
planeta, sob um outro ângulo e este positivo. O vírus nos faz descobrir
qual é a nossa mais profunda e autêntica natureza humana.
Em primeiro lugar, somos seres de relação. Somos, como tenho
repetido inúmeras vezes, um nó de relações totais voltadas em todas as
direções. Portanto, ninguém é uma ilha.Lançamos pontes para todos os
lados.
Em segundo lugar, como consequência, todos dependemos uns dos outros. A compreensão africana “Ubuntu” bem o expressa:”eu só sou eu através de você”.
Portanto, todo individualismo, alma da cultura do capital, é falso e
anti-humano. O coronavírus o comprova. A saúde de um depende da saúde do
outro. Esta mútua dependência assumida conscientemente, se chama
solidariedade. Foi a solidariedade que outrora, nos fez deixar o mundo
dos antropoides e nos permitiu sermos humanos, convivendo e nos
auto-ajudando. Assistimos nestas semanas gestos comoventes de verdadeira
solidariedade, muitos ajudando a outros, fracos a fracos.
Em terceiro lugar, somos seres essencialmente de cuidado.
Sem o cuidado,desde de a nossa concepção e durante toda a vida, ninguém
subsistiria. Precisamos cuidar de tudo: de nós mesmos, caso contrário
podemos adoecer e morrer, dos outros que me podem salvar ou eu os posso
salvar, da natureza senão ela se volta contra nós com vírus deletérios,
com estiagens desastrosas, com enchentes devastadoras, com eventos
climáticos extremos, cuidado para com a Mãe Terra para que continue a
nos dar tudo aquilo que precisamos para viver e que ainda nos queira
sobre seu solo, já que, durante séculos, a agredimos de forma impiedosa.
Especialmente agora sob o ataque do coronavírus todos devemos nos
cuidar, cuidar dos outros mais vulneráveis, nos recolher em casa, manter
o distanciamento social e cuidar da infra-estrutura sanitária sem a
qual assistiremos a uma catástrofe humanitária de proporções bíblicas.
Em quinto lugar, descobrimos que devemos ser todos corresponsáveis,
vale dizer, ser conscientes das consequências benéficas ou maléficas de
nossos atos. A vida e a morte estão em nossas mãos, vidas humanas, vida
social, econômica e cultural. Não basta a responsabilidade do Estado ou
de alguns, mas deve ser de todos, pois todos são afetados e todos podem
afetar.Todos devem aceitar o confinamento.
Por fim, descobrimos a força do mundo espiritual que
constitui o nosso Profundo, lá onde se elaboram os grandes sonhos, se
colocam as questões derradeiras sobre o sentido de nossa vida e onde
sentimos que deve existir uma Energia amorosa e poderosa que tudo
perpassa, sustenta o céu estrelado e nossa própria vida sobre qual não
temos todo o controle. Podemos nos abrir a ela, acolhê-la e, como numa
aposta, confiar que é Ela nos segura na palma de sua mão e que, apesar
de todas as contradições, garante um fim bom para todo o universo, para
nossa história sapiente e demente e para cada um de nós. Se cultivarmos
esse mundo espiritual nos sentimos mais fortes, mais cuidadores, mais
amorosos, em fim, mais humanos.
Sobre estes valores nos é concedido sonhar e construir outro tipo de
mundo, biocentrado, no qual a economia,com outra racionalidade, sustenta
uma sociedade globalmente integrada, fortalecida mais por alianças
afetivas do que por pactos jurídicos. Será a sociedade do cuidado, da
gentileza e da alegria de viver.
Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escreveu: A Terra na palma de nossa mão uma nova visão do planeta e da humanidade, Vozes 2016