O jogo está sendo jogado. Não vai ganhar quem ficar apenas na defensiva e, tampouco, quem atacar desordenadamente, sem um plano compartilhado e consistente.
Carta Maior
Por Joaquim Ernesto Palhares
Breve análise da conjuntura me leva a discordar das ponderações feitas
por alguns companheiros, cujas histórias de vida merecem todo respeito,
em relação a possíveis enfrentamentos e violências com as PMs e os
bolsominions, no próximo domingo, 7 de junho.
Eles temem – e não
à toa – que infiltrados possam provocar os militantes pela democracia e
antifascistas, com total apoio das PMs, em virtude da parceria entre as
forças de repressão e os fascistas, reiterada pelas cenas do domingo
passado, 31 de maio. O temor, porém, vai além. Alguns vislumbram que o
governo Bolsonaro teria, finalmente, a justificativa para resgatar o
AI-5.
Discordo do prognóstico desses companheiros, de que se
houver conflito, Bolsonaro declararia Estado de Sítio, dando os
primeiros passos para a institucionalização do golpe.
Muitos,
com os quais concordo, afirmam que o golpe já foi dado. “Nós não estamos
em democracia”. Bolsonaro realmente acredita que pode mandar em tudo.
Pretende exercer o poder imperial, não consegue e se irrita publicamente
(“Acabou, porra!”). Possivelmente imagina que a alternativa seja sim um
novo AI-5, como revelou seu filho Eduardo, seguido agora pelo vice
Mourão.
Esse temor, portanto, não surge do nada. Ancora-se em
várias análises que apontam as PMs de todo o Brasil como uma espécie de
Guarda Nacional de Bolsonaro, a serem utilizadas em eventual de golpe de
Estado, já que as Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica),
através de seus comandos gerais e ativos, nunca se pronunciaram nesse
sentido. Na verdade, Marinha e Aeronáutica nunca abriram a boca a esse
respeito.
Quem vem se pronunciado – como sempre fez em relação a
possíveis golpes – é o Clube Militar do Rio de Janeiro, que aglutina
oficiais aposentados. Além desses, alguns generais integrantes do
governo e fiéis a Bolsonaro. Não há nenhuma novidade quanto a isso,
tampouco ao modus operandi da PM.
Eles agem assim desde
sempre. Basta recordarmos as manifestações de 2013. Possivelmente, os
“vândalos” ou parte deles eram policiais disfarçados, os chamados “P2”.
Lembrem-se que um capitão da ativa do Exército brasileiro, camuflado com
uma enorme barba, foi preso com jovens do movimento Passe Livre, e
depois desmascarado na Delegacia de Polícia.
Quando os militantes
dos “MBLs da vida” começaram a participar das gigantescas manifestações
contra Dilma, em 2014, nós não vimos ocorrer nenhum vandalismo. Cabe a
pergunta: “por quê”? No mesmo sentido, a forte interação e convivência
entre aqueles manifestantes e as PMs, inclusive com uma infinidade de
“selfies” entre manifestantes e PMs.
A militância contra a
ditadura nos Anos de Chumbo nos ensinou sobre os elos umbilicais que
unem fascismo e organização das forças de repressão neste país. O mesmo
ocorre nos Estados Unidos onde, aliás, o excludente de ilicitude é uma
lei que vigora há anos, tornando impunes, reduzindo a gravidade ou até
mesmo inocentando os assassinatos cometidos pela polícia. Moro tentou
importar essa lei americana para o Brasil, naquele pacote contra o crime
organizado.
Insisto: não há novidades em relação à repressão
policial. E não há como fazer manifestações contra um governo, onde quer
que seja, sem correr riscos. E sim é preciso muito cuidado. Até porque a
correlação de forças nos é desfavorável.
A grande dificuldade é
que estamos vivendo uma monstruosa epidemia, de contágio avassalador e
letal. E essa terá de ser o inimigo nº 1 dos manifestantes, antes de
qualquer outro. Esse desafio mostrará a capacidade de organização e a
habilidade das lideranças dos movimentos defensores da democracia e
antifascistas no próximo domingo.
A PM irá atacar? Irá. A
pandemia ameaça? De morte. E mesmo assim vale? Sou da opinião que sim,
porque nossa gente anda olhando para o chão há muito tempo, em um imenso
refluxo, cada vez mais agravado pela Covid-19. Discordo, portanto, das
posições contrárias à manifestação. Sua suspensão, além de criar
desmobilização, significaria perder a brecha da conjuntura
internacional.
Black Lives Matter
A beira do
fascismo, o mundo foi salvo pelos jovens pretos e brancos
norte-americanos, homens e mulheres de mais idade, e também por lindas
crianças que deram um tom de muita paz e tranquilidade às manifestações
nos Estados Unidos, que conta com apoio da população branca, somando
milhões nas ruas de mais de 80 cidades, inclusive, desobedecendo
decretos de “toque de recolher”.
Assim que ameaçados, eles se sentam no chão e gritam "Hands up,
don't shoot", desconcertando a polícia. Com essas atitudes, ganharam
70% de apoio da população norte-americana e conseguiram diminuir a
violência.
Assim como os diversos casos dos negros brasileiros,
George Floyd é apenas mais um preto norte-americano assassinado, outros
já o foram, inclusive no governo de Barack Obama, vencedor de um Nobel
da Paz.
Certamente, o movimento “Black Lives Matter” não é a
única demanda que move os revoltados jovens americanos. Uma bota está
esmagando o pescoço da democracia estadunidense. Desde 2008, quando o
sistema entrou em colapso e dobrou as apostas para subsistir, o joelho
se tornou ainda mais esmagador.
A morte bárbara de George Floyd,
as realidades reveladas pela miséria desigual do coronavírus, o
desemprego em massa em níveis de depressão jamais visto e o colapso
total da legitimidade da liderança política (em ambos os partidos), nos
Estados Unidos, estão derrubando a cortina do império estadunidense.
Alguns
intelectuais afirmam que o governo Trump agoniza e caminha para o lixo
da história, e que será derrotado por Joe Biden, um liberal de direita
do Partido Democrata. É o que temos para o momento...
Para nós, o
importante é as consequências da derrota de Trump, que levará consigo o
psicopata que se diz presidente democraticamente eleito do Brasil, mas
que, na próxima semana, poderá ter sua chapa impugnada pelo TSE, em
virtude de fraude eleitoral praticada em sua eleição. Ele, na verdade,
governa para menos de 15% dos 39% que o elegeram em 2018, ou seja, algo
em torno de 8.500 milhões de brasileiros. Esse é o apoio que ele tem e
estou totalmente de acordo com a análise feita por Marcos Coimbra.
Essa
história de encher a boca e falar em nome da “população brasileira”
segue o modelo criado pelas Organizações Globo, para justificar seu
apoio ao Golpe contra Dilma, idolatrar o juizeco de Maringá e colocar
Temer e Bolsonaro no governo.
Outro fator que fortalece a
manifestação de domingo é que as ruas das capitais da Holanda, França,
Alemanha, Londres, Portugal, Espanha, Irlanda e Nova Zelândia também
foram tomadas por milhões de jovens em protesto pela morte de Floyd, mas
também em defesa da democracia.
A crescente militarização da
sociedade dos EUA é inseparável das suas políticas imperiais (211 envios
de forças armadas em 67 países desde 1945). A resposta militarizada à
morte de Floyd conta a história da presença policial excessiva,
agressões gratuitas e força brutal.
Ironicamente, o debate mal interpretado sobre agitadores vs manifestantes / agitadores de fora vs cidadãos locais legítimos
desfoca a atenção sobre o quanto a presença de agentes da lei, em peso,
alimenta o desrespeito pela polícia. O contraste evidente da resposta
policial aos provocadores de direita, que aparecem dentro e fora das
capitais dos estados com armas, paira consideravelmente.
Engana-se
quem supõe que a escalada de tudo o que estamos vivendo anestesiou a
alma, e naturalizou a convivência com o intolerável.
Precisamos
protestar, o que estamos assistindo é o fogo que parecia morto irromper
em incêndios de indignação e revolta em todos os lugares, a partir dessa
chispa que não cessa de gritar: “não consigo respirar, não consigo respirar...”
Outras
chispas incendiaram cidades e nações em outras épocas; mas não se
tornaram fortes e organizadas o suficiente para transformar as
sociedades.
A sociedade só se transforma quando carrega no seu
interior a transformação já pulsando na forma de organização popular,
ancorada em agendas claras, críveis e prefiguradas em antecipações de um
futuro amplamente reclamado.
Em 1968, em Paris, as ruas estavam
nas mãos do sonho. Mas o poder permanecia encastelado nos seus abrigos e
quartéis. Quem tomou o poder foi o general De Gaulle. Ficou a lição
incontornável.
Não há nada mais urgente a fazer, diante de um
sistema que se contorce nas próprias tripas, do que organizar a
sociedade – sobretudo os que nunca tiveram vez nem voz – para
despachá-lo à lata de lixo da história.
A impressionante irrupção
humana nas ruas de todo o mundo, apesar da COVID-19, mostra que não
faltam nervos, nem musculatura dispostos a essa tarefa.
Falta a
clareza de como se desfazer do velho, e desassombro para erguer com as
próprias mãos o novo. Mas sobra, cada vez mais, a evidência de que,
não!, sob o joelho da mecânica opressiva não se pode respirar mais.
A pandemia acrescenta a essa angústia a urgência de se lutar pela sobrevivência agora.
A história apertou o passo.
O ministro Celso de Mello viu com argúcia: sopram ventos dos anos 30 sobre o Brasil; se não agirmos, o fascismo o fará. Como o fez Hitler na Alemanha em 1933.
Torcedores
de times de futebol e outros manifestantes democratas saíram
corajosamente às ruas para enfrentar grupos fanáticos fascistas. Foram
reprimidos pelas PMs, mas deixaram o exemplo e ganharam nossa admiração.
O
jogo está sendo jogado. Não vai ganhar quem ficar apenas na defensiva
e, tampouco, quem atacar desordenadamente, sem um plano compartilhado e
consistente.
“Quem sabe faz a hora, não espera acontecer".
Joaquim Ernesto Palhares é diretor da Carta Maior
Fonte Carta Maior