Ontem, escritor uruguaio, falecido em 2015, completaria 80 anos. Definia-se como “escutador de causos do povo” — e assim transformava História em apaixonante folhetim, denúncia em poesia e a memória em força insurgente
Por Aram Aharonian, no Sur y Sur | Tradução de Simone Paz
No dia 3 de setembro de 1940, nascia, em Montevidéu, o escritor e jornalista uruguaio, Eduardo Galeano. O autor d’As Veias Abertas da América Latina, que faleceu em 13 de abril de 2015, teria feito 80 anos. Considerado um dos maiores artistas da literatura latinoamericana, seus trabalhos transcendem os gêneros ortodoxos e combinam documentário, ficção, jornalismo, análise política e história.
Galeano, sedutor em e com sua prosa, é tido como o mestre dos relatos curtos. Fundador da Revista Crisis (“Crise”, em português) e autor de livros como a trilogia Memória do Fogo, Galeano foi preso e obrigado a abandonar o Uruguai em 1973. Na sequência, foi para a Argentina e precisou se exilar em 1976, com o começo da ditadura. Como consequência desse contexto, o livro As Veias Abertas da América Latina foi proibido em grande parte da região.
A editora Siglo XXI, que publicou todos os seus livros, anunciou que lançará a hashtag #Galeano nas redes sociais, para convidar as pessoas a compartilharem seus textos e leituras. Assim, estarão disponíveis as obras, Bocas do Tempo, Futebol ao Sol e à Sombra, O livro dos Abraços, Espelhos, os três volumes de Memória do Fogo, Dias e noites de amor e guerra, O caçador de histórias e Os filhos dos Dias, entre outras.
Eduardo da América “Lapobre”
Eduardo Germán María escolheu assinar com o sobrenome materno, Galeano, para não usar o paterno e anglo-saxão Hughes — mesmo tendo utilizado o Gius para assinar alguns desenhos e quadrinhos. Eduardo foi jogador de futebol frustrado (por ser perna de pau), pedreiro, mensageiro, cartunista, jornalista e, finalmente, escritor, para “ajudar a resgatar as cores e a luz do arco-íris humano, essa coisa mutilada por anos, séculos, milênios de racismo, machismo, guerras e mais. Sim, irmão, somos muito mais do que aquilo que nos contam”
Se, na casa dos vinte anos, já havia passado pela edição do semanário Marcha e pela gestão do jornal Época, aos 30 já havia escrito As veias abertas da América Latina — que apresentou ao prêmio Casa das Américas… mas não ganhou
Cerca de 40 anos depois, o presidente venezuelano Hugo Chávez
presenteou Barack Obama com uma cópia do livro (na Cúpula das Américas
de 2009), com suas análises socioeconômicas que por vezes tinham sabor
de manifesto, e ímpeto de proclamação. Mas Obama não se interessa pela
história, muito menos pelas interferências e genocídios executados por
seus antecessores — e, obviamente, não leu a obra.
Caminhante incansável da América “Lapobre” [brincadeira para substituir o “Latina”], foi correspondente da Prensa Latina na Venezuela e, para não sentir saudades do litoral de Montevidéu, se hospedava no decadente Hotel La Alemania, em Macuto, a cerca de 40 quilômetros de Caracas. Muitos anos depois, para esquecer que quase morreu de malária nos trópicos (chegou a escrever uma crônica sobre seu delírio), conseguiu se banhar novamente no Caribe, em frente ao mesmo hotel, que resistira à Vaguada de 1999 [ou “Tragédia de Vargas”, conjunto de desastres naturais que atingiram o estado de Vargas entre 14 de dezembro e 16 de dezembro de 1999, com chuvas torrenciais, inundações e deslizamentos].
Seu amigo Luis Britto García brinca que cada vez que a polícia, ou os
vírus, ou os infartos atacavam Eduardo, ele saía revigorado. Exílios
consecutivos o separaram da edição da Revista Marcha e do Época (em Montevidéu), e também, da Crisis,
uma das revistas de repercussão continental que a ditadura argentina
encerrou em 1973. No exílio, em Barcelona, as autoridades lhe exigiam
ter um emprego para renovar o visto, mas não o deixaram trabalhar
enquanto não tivesse o visto renovado.
Rico em exílios, Eduardo driblou diversos gêneros literários para fazer com que a plenitude de suas mensagens chegasse a todos. Conheceu e conviveu com guerrilheiros maias, mineiros bolivianos, garimpeiros venezuelanos, ciente de que dessa fragmentação surgiria a totalidade em suas Memórias do Fogo, um mural em que as partes se enxergam dentro de um todo, feito de detalhes que se tornam leis gerais e de análises ágeis feito aforismos.
Eduardo começou a escrever suas ideias em guardanapos e toalhas de
mesa de papel, e, posteriormente, em minúsculos cadernos, para se
transformarem em contos, romances, tratados sociopolíticos, entrevistas e
reportagens, com frases poderosas.
Britto se anima a concluir que, ao tratar a história como uma novela
emocionante, a mitologia indígena como notícia, e a denúncia como
poesia, Galeano vai se tornando cada vez mais propenso à antologia,
porque tudo nele é antologizável.
“Acho admirável a capacidade dos povos indígenas das Américas em perpetuar uma memória que foi queimada, punida, enforcada, desprezada ao longo de cinco séculos. E toda a humanidade tem que agradecer, porque graças a essa memória teimosa aprendemos que a terra pode ser sagrada, que fazemos parte da natureza, que a natureza não acaba em nós. Que existem possibilidades de organizar a vida coletiva, formas comunitárias que não se baseiam no dinheiro. Que a competição com os demais não é inevitável e que o próximo pode ser alguém, muito melhor do que um simples adversário”, escreveu em Memórias de fogo.
As Veias Abertas destrinchava a barbárie estadunidense no
continente, a obsessão norte-americana em apoiar ditaduras e genocídios
para realizar seus negócios. “Procurava ser um livro de economia
política, mas eu não contava com o preparo necessário”, afirmou.
Inclusive reconhecia, com humor, que não poderia lê-lo novamente
porque desmaiaria: “Para mim essa prosa da esquerda tradicional é
extremamente pesada e minha mente não tolera isso.” Obviamente, a
direita tentou usar esse argumento contra ele, mas com isso, fez com que
muitos que não tinham lido o texto, se interessassem.
Agora, sua obra Mulheres nos intoxica de beleza e feminismo, com a ajuda de Helena Villagra, a sonhadora, sua esposa por quatro décadas.
Eduardo era um grande ouvinte, o cacique Oreja Abierta
(Orelha Aberta), como ele próprio se definia. Sempre falou da e pela
juventude, dos e para os indígenas, contra os narco-Estados e o
neoliberalismo, a favor da ecologia e da legalização das drogas. Ele
falava contra o esquecimento e sobre o resgate da memória para encontrar
os caminhos do futuro comum.
Mas ele também foi um exilado político, e se absteve de fazer disso
uma profissão. Saiu do Uruguai depois de ter sido preso pela ditadura,
atravessou o rio da Prata para morar na Argentina, mas — ameaçado de
morte — teve de voltar à Espanha. Perdão, à Catalunha.
Em 1985 voltou ao seu país, onde foi cofundador do semanário Brecha. Nesse mesmo ano obteve o Prêmio Stig Dagerman, e ao longo de sua vida recebeu diversos doutorados Honoris Causa
de universidades em Cuba, El Salvador, México e Argentina; em 2010, o
Prêmio Manuel Vázquez Montalbán na categoria de Jornalismo Esportivo; e
em 2013, a Ordem Simón Rodríguez das mãos de Nicolás Maduro — Chávez não
sobreviveu para lhe entregar essa ordem, depois de Galeano recusar uma
condecoração com o nome de Francisco de Miranda, “agente inglês”.
Foi solidário por excelência, com os povos e as ideias. De seus
últimos textos publicados, lembramos: “Os órfãos da tragédia de
Ayotzinapa não estão sós na busca obstinada por seus entes queridos
entre o caos dos lixões queimados e das valas lotadas de restos humanos.
Vozes de solidariedade os acompanham, e sua presença calorosa em todo o
mapa do México e além, inclusive nos campos de futebol, onde há
jogadores que comemoram seus gols desenhando com os dedos, no ar, a
cifra 43, que homenageia os desaparecidos”.
Sempre do lado dos pobres e dos indignados, seu ativismo social e
compromisso com os mais vulneráveis o levou até Chiapas, para conhecer
de perto o Exército Zapatista de Libertação Nacional, experiência que
compartilhou ao longo de vários anos em inúmeros artigos, por exemplo,
em Uma marcha universal (2001).
“Aqueles que falam do problema indígena terão de começar a reconhecer a solução indígena. Afinal, a resposta zapatista a cinco séculos de acobertamento, o desafio dessas máscaras que desmascaram, abre o esplêndido arco-íris que o México tem dentro de si e devolve as esperanças àqueles condenados à espera perpétua”.
“Como já se percebeu, os indígenas são um problema apenas para aqueles que lhes negam o direito de ser o que são e, portanto, negam a pluralidade nacional e negam o direito dos mexicanos de serem totalmente mexicanos sem as mutilações impostas pela tradição racista, que diminui a alma e corta as pernas”.
Em 2008, Galeano recebeu a distinção do Mercosul — o primeiro ilustre
cidadão da sub-região — e fez um discurso inesquecível, no qual se
disse um “patriota de muitas pátrias”. “Só estando juntos poderemos
descobrir o que podemos ser, contra uma tradição que nos treinou para o
medo, a resignação e a solidão e que a cada dia nos ensina a não nos
amarmos”, disse.
Conheci Eduardo quando eu começava minha carreira de jornalista esportivo na Época e
nossa amizade se expandiu entre cafés, almoços e longos jantares em
diferentes cidades (o último, em Montevidéu, com Zé Fernando e Angelito
Ruocco como cozinheiros, com vinho Tannat para nós e cerveja para ele),
onde as histórias de e sobre seus netos foram ganhando espaço. Mas neste
3 de setembro não poderemos compartilhar comida armênia (e não será por
causa da peste).
Foi referência e fomentador de diversos empreendimentos, entre eles a
Telesur, quando nos ensinou a nos enxergarmos com os próprios olhos e
nos reconhecermos no próprio espelho, e a defendeu e promoveu como um
dos maiores sucessos da Revolução Bolivariana.
Solidário com os palestinos (“Desde 1948 eles vivem condenados à
humilhação perpétua. Eles não podem nem respirar sem permissão. Perderam
sua pátria, suas terras, sua água, sua liberdade, seu tudo. Eles não
têm nem o direito de eleger seus governantes”), os povos indígenas, os
haitianos, e os povos subjugados que lutam pelo seu futuro. Mas também
com seus amigos, que conseguiu distribuir pela América inteirinha e pelo
mundo. Os indignados, os batalhadores da América Lapobre e do mundo
perderam um de seus guias, uma de suas poucas referências intelectuais e
políticas das últimas cinco décadas. E um amigo.
“A identidade não é um objeto de museu, quietinha na vitrine, mas a
síntese sempre surpreendente das nossas contradições quotidianas. Nessa
fé, fugitiva, eu acho. Me parece ser a única fé digna de confiança, pela
sua semelhança com o inseto humano, ferrado porém sagrado, e com a
louca aventura de viver no mundo (…) Afinal de contas, somos aquilo que
fazemos para mudar quem somos: dos medos nasce a coragem; e das dúvidas,
as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível; e os
delírios, outra razão ”, dizia.
Que falta ele nos faz hoje, enquanto procuramos por um novo
pensamento crítico latino-americano e pensamos no relançamento de um
«outro» Fórum Social Mundial!
Hoje, Eduardo – Gius, Edu, Dudi, Abu – é um legado de milhões de
palavras, escritas em inúmeros livros, ditas em múltiplas falas,
transformadas em texto, som e imagem, arrebatadas por milhares e
milhares de jovens e adultos, homens e mulheres inconformados ao redor
deste planeta, nas entrevistas concedidas, em todas aquelas frases que
circulam na Internet… e que hoje, felizmente, as novas gerações
procuram.