Mapa não deixa dúvidas: queimadas, que já destruíram 25% do bioma este ano, atingiram em cheio territórios indígenas, parques e reservas ambientais. E a análise temporal demonstra que os focos surgiram fora destas áreas…
Mapa: Bruno Mioto | Texto: Igor Venceslau
O Pantanal dispensa apresentações. Não apenas por ser a maior planície inundável do planeta e Patrimônio Natural da Humanidade, mas como o bioma do encontro entre Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica e Chaco. Um mosaico produto da biodiversidade brasileira e sul-americana.
Não se trata mais de ameaça, mas de um avançado processo de devastação. O mapa revela que as queimadas em 2020 avançaram principalmente onde se localizam terras indígenas e unidades de conservação. Não obstante, a partir da análise temporal foi possível constatar que os focos surgiram fora dessas áreas.
Os dados que permitiram ao biólogo Bruno Mioto elaborar este mapa são do LASA – Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais, que desenvolveu o sistema ALARMES (Alerta de Área Queimada com Monitoramento Estimado por Satélite), inédito do Brasil, possibilitando quase em tempo real a detecção da localização, extensão e data de ocorrência das áreas afetadas com uso de imagens de satélite validadas por trabalho de campo georreferenciado. O LASA pertence à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), instituição pública que está completando um século de serviços prestados à ciência e à inovação brasileira, mesmo atravessando um período de cortes desastrosos no financiamento das pesquisas.
O último relatório divulgado pelo LASA/UFRJ1, apresentado em 29/09, compila a magnitude do desastre. Entre as terras indígenas afetadas, a Perigara, no Mato Grosso, teve 93,9% da área queimada, enquanto na Tereza Cristina, a 90km de Rondonópolis, 89,2% estão comprometidas. A Baía dos Guató (MT) está igualmente com mais de 80% do território queimado. No Mato Grosso do Sul, povos originários também estão gravemente afetados, como ocorre na terra indígena Kadiwéu (destacada no mapa), onde a perda em área absoluta foi a maior até agora, em torno de 2 mil km².
As queimadas estão avançando com muita rapidez. Quando você estiver lendo este texto, a realidade provavelmente já será pior do que as informações apresentadas. Quando o mapa foi elaborado com dados de janeiro a 16 de setembro, 19% do Pantanal já tinha sido queimado em 2020, mas os dados atualizados do último relatório revelaram que esse percentual subiu para 23% em apenas duas semanas.
Nas unidades de conservação a situação é igualmente aterrorizante. Em Mato Grosso, o Parque Estadual Encontro das Águas já teve 84,5% de sua área queimada, percentual equivalente ao que foi afetado no SESC Pantanal, no estado vizinho. E assim poderíamos listar mais de vinte áreas protegidas, como o próprio Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, que acumula destruição de 28,6 mil hectares. São áreas de proteção ambiental, parques, reservas particulares do patrimônio natural, estações ecológicas e tudo mais construído por décadas de ativismo e políticas ambientais.
Aqui cabe o reconhecimento do trabalho incessante de brigadistas e pantaneiros. Mas e o governo, com as instituições, agências e militares? O único eco que ecoa é o de economia, porque ecologia não cabe mais na Esplanada dos Ministérios. E pior: é a economia da morte, cega pelos lucros das empresas num mercado de especulação e exploração sem limites. Uma outra economia – da vida – em alternativa, não tem mais lugar para esse pensamento tão retrógrado quanto destrutivo, apenas preocupado com as cotações das commodities em Chicago. É a inestimável queima de ¼ do Pantanal: da fauna e flora; das nascentes dos rios; dos territórios das populações tradicionais; das atividades econômicas locais; da pesca; do ecoturismo. O que está em chamas e se convertendo em cinzas é a vida em todas as suas inseparáveis dimensões – biológica, ambiental, territorial, cultural, econômica, política e social.
São as “coincidências” de todos os recordes de crimes ambientais que o Brasil vem superando desde 2019. Primeiro as queimadas sem controle na Amazônia, depois o derramamento de óleo nas praias do Nordeste, e agora a devastação chega ao Pantanal. A apocalíptica cena da destruição do mundo em fogo. E continua na região amazônica, enquanto avança rapidamente na planície pantaneira, sem que o crime ambiental do litoral tenha sido solucionado. E, na epopeia das boiadas, acaba de ser permitida a ocupação e exploração de restingas e manguezais. O Brasil de 2020 abre a Assembleia Geral da ONU com o mesmo cinismo com que fecha os olhos para a proteção ambiental, lançando menos de uma semana depois um programa de mineração em terras indígenas. O projeto neoliberal nos expulsa de nosso próprio território. A ameaça nunca foi “natural”.
Bruno Mioto é biólogo e mestrando em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais na Universidade Estadual de Maringá.
Fonte Outras Palavras
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