Em 64, não havia uma sociedade organizada e diversificada como hoje. Os militares obtiveram uma maioria conjuntural, mas depois as coisas foram ficando mais complicadas. Não tem nada a ver com 64. Como disse, acho que o que acontece agora, em certo sentido, é pior em função do caráter profundamente antinacional desse bloco.
“Há um trabalho que vem sendo realizado há alguns anos junto ao
subconsciente da sociedade para cultivar a impressão de que tudo o que
vinha sendo feito desde 2002 era algo paliativo, populista e maligno”.
Foto: Thiago Ripper/RBA
Marco Weissheimer
“O governo de Michel Temer dá as primeiras passadas, acelerando para o
grande salto para trás e a grande queima de estoques. A massa
assalariada brasileira está sendo vendida a preços de saldo, com as
liquidações iniciais dos programas educativos e sociais. O patrimônio de
recursos materiais, como antes, será oferecido como xepa. A repressão à
divergência não será tímida. Não há nada a esperar”. Esse é o resumo da
obra que será exibida no Brasil nos próximos meses, talvez anos, na
avaliação do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos,
professor aposentado de Teoria Política da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ) e pesquisador sênior do Instituto de Estudos Sociais e
Políticos (IESP-UERJ). Em um artigo intitulado “O grande salto para trás de Michel Temer”,
publicado em seu blog “Segunda Opinião”, o cientista político prevê
dias sombrios para o país e aponta algumas características do bloco que
apoia Temer e que pretende implantar uma nova agenda política e
econômica no país, sem ser referendada pelo voto popular, com a
confirmação da derrubada da presidenta Dilma Rousseff.
Em entrevista ao Sul21, Wanderley Guilherme dos
Santos fala sobre essa agenda, destacando o seu caráter profundamente
antinacional. Para ele, o movimento golpista pretende recolocar o Brasil
no fluxo normal das relações do capitalismo que havia sido interrompido
com a eleição de Lula em 2002. “O que vai acontecer agora, e já começou
a acontecer, como tem ocorrido em várias democracias sociais no mundo
inteiro, uma redefinição programática drástico dos contratos de
solidariedade social com uma hegemonia desabrida da lógica do interesse
do capital”, assinala. Para tanto, acrescenta, a esquerda foi expulsa do
jogo político legal por algum tempo. “Eles não deixarão Lula ganhar a
eleição em 2018 em hipótese alguma. Não sei como vão fazer, mas não
deixarão”, diz, advertindo que a tentativa de prisão do ex-presidente
Lula é uma possibilidade real neste cenário.
Sul21: Como você definiria a atual situação
política do país e, mais especificamente, o que está acontecendo no
Senado nos últimos dias, com o julgamento do impeachment da presidenta
Dilma Rousseff?
Wanderley Guilherme dos Santos: Eu não tenho
acompanhado o Senado e nem o Supremo Tribunal Federal porque, já há
algum tempo, tenho a convicção de que está tudo essencialmente
resolvido. É uma peça cuja primeira montagem, para a minha
sensibilidade, teve alguma emoção. Agora, virou algo mecânico. Por isso
não estou acompanhando o que ocorre no Senado. Não vai daí nenhuma
depreciação das pessoas. Elas estão cumprindo o protocolo, mas, no
fundo, todos sabem que está resolvido.
Sul21: Com a confirmação do afastamento de Dilma, quais podem ser as repercussões políticas e sociais no país?
WGS: Acho que ocorrerão desdobramentos e aprofundamentos do telos,
da finalidade deste movimento que pretende recolocar o Brasil no fluxo
normal das relações do capitalismo que havia sido interrompido com a
eleição de Lula em 2002. A inserção do Brasil no sistema capitalista
evoluiu muito durante os governos de Fernando Henrique Cardoso, quando
foram construídos laços explícitos com o modelo internacional.
Previamente a isso, havia uma indefinição sobre o rumo que o país iria
tomar. Mesmo durante o período militar, havia uma disputa permanente
entre os nacionalistas e os mais, digamos cosmopolitas. Isso foi
resolvido, primeiro, com a vitória de Collor e, depois, com a de
Fernando Henrique, quando tivemos oito anos de ajustamento da dinâmica
brasileira ao modelo capitalista internacional. Isso foi interrompido em
2002.
O que vai acontecer agora, e já começou a acontecer, como tem
ocorrido em várias democracias sociais no mundo inteiro, uma redefinição
programática drástico dos contratos de solidariedade social com uma
hegemonia desabrida da lógica do interesse do capital. Esse processo já
está em curso.
“Os assalariados, de modo geral, com a ameaça de desemprego, estão muito
pouco dispostos a participar de manifestações com pautas universais,
generalizantes. Só farão isso por questões específicas”. (Foto:
Guilherme Santos/Sul21)
Sul21: Na sua opinião, pode ocorrer uma reação
na sociedade a esse processo, especialmente entre os setores que devem
ser mais atingidos por essa redefinição programática? Há uma aparente
calmaria na sociedade hoje, considerando a gravidade de tudo o que está
acontecendo. O que essa calmaria expressa? Apatia? Indiferença?
WGS: Acredito que temos aí uma composição de
percepções. Em primeiro lugar, há o reconhecimento da falta de recursos.
Os assalariados, de modo geral, com a ameaça de desemprego, estão muito
pouco dispostos a participar de manifestações com pautas universais,
generalizantes. Só farão isso por questões específicas. Essa postura
obedece a razões materiais compreensíveis. Em segundo lugar, por uma
avaliação, na minha opinião bastante sensata também, de que esse esquema
de redefinição programática e de reajustamento reacionário é muito
forte e pouco vulnerável a pressões externas. Ele tem algumas
instabilidades, como essa briga agora entre Gilmar Mendes e o Ministério
Público Federal, mas elas não transbordarão para uma associação com
quem está de fora. Assim, acredito que essa aparente apatia não é, na
verdade, uma apatia, mas sim uma avaliação bastante pessimista, porém
racional.
Sul21: Em que medida a Constituição de 1988 está sendo afetada pelo que está acontecendo agora no Brasil?
WGS: A Constituição, propriamente, não está sendo
atingida. O texto da Constituição consagra uma série de votos de boa
vontade. O que aconteceu, de 2002 até aqui, foi uma tradução desses
votos constitucionais em políticas específicas sérias e sistemáticas.
Como essas intervenções sociais não foram constitucionalizadas, como
ocorreu, por exemplo, com a Consolidação das Leis do Trabalho, elas
ficaram muito vulneráveis a mudanças ministeriais e de governo. Então, o
que está ocorrendo agora é um desmanche das políticas sociais
construídas a partir de 2002 e a instalação de uma forma diferente de
ler os votos constitucionais que não são específicos, mas sim
declarações de intenções. O que está sendo atingido é a gramática que
traduzia essas declarações de intenções em políticas sociais
específicas.
Sul21: Qual é, na sua avaliação, a capacidade do
PT e da esquerda brasileira de um modo geral, de resistir a esse
processo e de enfrentar o período que se abre agora na história do país?
WGS: Há um trabalho que vem sendo realizado há
alguns anos junto ao subconsciente da sociedade para cultivar a
impressão de que tudo o que vinha sendo feito desde 2002 era algo
paliativo, populista e maligno para comprar o apoio das classes mais
desfavorecidas. Foram anos de condicionamento da subjetividade nacional e
grande parte dela ficou bastante hesitante no que pensar diante de uma
lava jato. Não obstante a execução efetiva dos procedimentos legais que
até agora condenaram empresários, burocratas, marqueteiros e alguns
políticos, o único grande nome do PT condenado neste processo é o
Vaccari (João Vaccari Neto, ex-tesoureiro do partido).
Desde o início da Lava Jato, os vazamentos, delações, declarações são
sempre em relação ao PT. Por isso não cessa a Lava Jato. Toda semana
tem uma ameaça nova sobre a prisão de fulano ou de sicrano. E não
acontece. Não acontece porque não tem base e as coisas não colam. Há
alguns meses, o Lula seria preso por causa do sítio em Atibaia ou por um
apartamento no Guarujá. Isso era martelado diariamente como se fosse
verdadeiro e suficiente para tornar alguém incomunicável. A Lava Jato
colheu os frutos desses 13 anos de cultivo de uma subjetividade disposta
a aceitar determinadas coisas. E a devastação produzida por isso foi
muito grande. A imensa maioria das forças de esquerda não tem nada a ver
com o número de pessoas denunciadas e condenadas pela Lava Jato. Há uma
discrepância absoluta aí e ninguém está se dando conta disso.
Há dois processos em curso. Há um processo teatral e um processo
real. Os personagens reais estão lá na lista de denunciados e
sentenciados pela Lava Jato, da qual não constam políticos do PT, com
exceção de Vaccari e Delcídio, que era um recém-chegado ao partido. A
Lava Jato continua produzindo essa devastação na esquerda. Então, é
natural que o eleitorado de esquerda esteja, não digo intimidado, mas
aguardando os acontecimentos, pois foi colocado sobre seus
representantes um véu generalizado de suspeição, o que faz com que
ninguém se arrisque a por a mão no fogo por ninguém. A situação de meio
paralisia que vemos hoje é uma situação de intimidação. Tudo contribui
para um curto e médio prazo não muito róseo para a esquerda brasileira.
Sul21: Você acredita que a Lava Jato, uma vez confirmado o afastamento da presidenta Dilma, tende a terminar?
WGS: Não. Pode até ser que eles tenham pensado nisso
em algum momento do processo, mas acho que tomaram gosto pela coisa. É
um poder que, agora, o Gilmar Mendes identificou. É um poder excepcional
esse de ter informações sigilosas sobre as pessoas, de saber quem faz o
quê, em um contexto em que acusação e difamação se confundem. É um
poder tirânico, aparentemente dentro da lei. Eu duvido que isso termine
tão cedo.
Sul21: Em que medida esse bloco que está
apoiando Temer e a derrubada da Dilma é um bloco coeso e sólido,
considerando especialmente as relações entre PMDB e PSDB?
WGS: Pode haver algumas rusgas internas, mas acho
que o bloco reacionário é sólido. A esquerda foi expulsa do jogo
político legal por algum tempo. Lamento, mas eu leio o que está escrito.
Posso estar lendo errado, mas tento ler o que está escrito.
Sul21: Como avalia a possibilidade do movimento
sindical e dos movimentos sociais resistirem à agenda de políticas
defendidas pelo bloco político e social de Temer, que inclui propostas
como a flexibilização da CLT e a precarização de direitos?
WGS: Os movimentos sociais podem resistir um pouco,
mas dentro do sistema político legal atual, lá entre eles, a situação
não é tão fácil assim. Nem todos são reacionários de alfa a ômega. Há
representantes dentro do Legislativo e da burocracia que tem interesses a
defender e estão envolvidos com uma série de políticas. Então, acho que
não será tão fácil para eles e não cumprirão 100 por cento do que
gostariam os mais radicais deles, mas isso por conta de resistências
dentro do próprio bloco deles. Esse bloco é muito sólido no seu veto à
esquerda. O consenso básico deles é: esquerda fora. Esse é o denominador
comum que os unifica.
Tudo isso que estou dizendo não significa que nós vamos ficar olhando
para tudo isso de braços cruzados, sem fazer nada. O que estou fazendo é
procurar ver essa conjuntura com um olhar realista, inclusive para não
criar expectativas falsas. As lideranças da esquerda não podem ficar
levantando expectativas falsas que sabem que não poderão cumprir. Isso é
ruim. O que não quer dizer que vamos ficar parados. Nós ficamos parados
durante a ditadura? Não e tampouco ficaremos parados agora. Na
ditadura, não acreditávamos que, em 48 horas, iríamos derrubar os
generais. Nem por isso ficamos parados.
Em certo sentido, o golpe atual é pior que o de 64, pois tem um
compromisso antinacional e reacionário muito mais violento que o dos
militares daquela época. Estes tinham uma seção autoritária, mas
comprometida com interesses nacionalistas. Não é o caso agora. Cerca de
90% desse bloco que apoia Temer é profundamente antinacional. Isso não
está acontecendo só aqui, vem acontecendo pelo mundo inteiro depois da
crise de 2008.
Sul21: Você vê alguma possibilidade de Lula vencer a eleição em 2018 e retornar ao governo?
WGS: Eles não deixarão Lula ganhar essa eleição em
hipótese alguma. Não sei como vão fazer, mas não deixarão. A esquerda
não ganhará a eleição em 2018 de jeito nenhum. O que não quer dizer que a
gente não vá mostrar a cara. Dependendo do andar da carruagem e se as
eleições fossem livres, hoje eu acho que eles perderiam. O governo Temer
é muito ruim e está afetando todo mundo. Se houvesse uma eleição para
valer, eles perderiam. Como é que eles vão fazer eu não sei. O
compromisso que eles estão assumindo, em nível nacional e internacional,
é de tal envergadura que eles não podem perder a eleição em 2018.
Sul21: Na sua opinião, o tema da prisão de Lula ainda é uma possibilidade?
“Eles não deixarão Lula ganhar essa eleição em hipótese alguma. Não sei como vão fazer, mas não deixarão”. (Foto: Divulgação)
WGS: Acho que sim. Estão preparando o ambiente e o
farão quando avaliarem que isso provocará apenas alguns protestos
impotentes. Há um ano, eles não fariam, pois não daria certo. Eles não
estão para brincadeira e vêm trabalhando sistematicamente para
“acostumar” a opinião pública com a ideia da prisão de Lula. Eles vêm
realizando sucessivas ameaças, às quais reagimos, para ir criando o
clima. A ideia é que, ao longo dessas sucessivas ameaças, a nossa reação
vá perdendo força na sociedade.
Sul21: Como definiria a atuação do STF neste processo? Há setores do Supremo que fazem parte orgânica desse bloco de Temer?
WGS: Sim, fazem. A maioria do Supremo é servil. Os
que não são, se acomodam e se acovardam. Só esboçam alguma reação em
coisas secundárias. Na hora de decidir sobre temas essenciais, isso
desaparece.
Sul21: Outra instituição que vem sendo apontada
como uma protagonista do golpe é a chamada “grande mídia”. Como
definiria o papel desse setor?
WGS: É claro que também faz parte desse mesmo bloco.
Não há nenhuma dúvida quanto a isso. Esse encontro entre Legislativo,
Judiciário, Supremo, empresariado e mídia é uma circunstância que
aconteceu. Não é fácil de acontecer, mas aconteceu. Acho que nem foi o
resultado de uma coisa totalmente planejada, pois é muito difícil
planejar algo dessa natureza. Mas acontece e, quando acontece, eles têm
consciência de que aconteceu. Eles sabem o que aconteceu e, por isso,
estão à vontade para cometer as maiores barbaridades como se fossem
verdades. Hoje, se alguém ligado à esquerda entra com um habeas corpus
ou algo do gênero no Supremo, eles negarão o pedido. Pode parecer
exagerado, mas é isso mesmo. O que está acontecendo não é brincadeira. A
gente esquece como isso tudo começou. Há alguns anos, o que estamos
vendo agora era algo impensável. Hoje acontece como se fosse algo
normal.
Sul21: Considerando o bloco político social que
apoia Temer hoje é possível fazer uma comparação com aquele bloco que
apoiou o golpe de 64?
WGS: Não, é uma realidade bem diferente. Em 64, não
havia uma sociedade organizada e diversificada como hoje. Os militares
obtiveram uma maioria conjuntural, mas depois as coisas foram ficando
mais complicadas. Não tem nada a ver com 64. Como disse, acho que o que
acontece agora, em certo sentido, é pior em função do caráter
profundamente antinacional desse bloco.
Fonte Sul 21
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