O Brasil é cobaia do tipo mais sofisticado e sinistro de golpe de Estado da modernidade. É o golpe lento, suave, frio, de longo prazo, baseado principalmente numa manipulação monstra da opinião pública, associado a um controle gradativo do sistema judicial do país.
Por Miguel do Rosário, 16/09/2016
Chamou a atenção dos setores democráticos as críticas vindas de
próceres do golpe - editorial da Folha, colunistas da Globo e Veja, o
presidente da OAB, ou mesmo juízes do STF que há tempos se submeteram às
ordens da armada golpista, como Toffoli - aos "excessos" dos
procuradores da operação, durante a coletiva em que anunciaram o
indiciamento de Lula como o "comandante máximo" da corrupção na
Petrobrás.
Vale notar que as críticas de Toffoli, por imprudência dele e da
mídia que a multiplicou por aí, carregam uma pesada e irônica denúncia
ao golpe e à ditadura midiático-judicial que vivemos. A expressão " o
judiciário pode cometer o mesmo erro que os militares em 1964" remete a
várias comparações constrangedoras e constitui quase que uma confissão,
por parte de Toffoli, de que o judiciário foi protagonista do golpe
atual.
Mas tudo não passa de jogo de cena, não necessariamente combinado,
porque a organicidade do golpe nunca precisou de muita combinação.
A combinação, quando há, vem escrita nos editoriais dos jornalões.
As críticas são todas condescendentes, tratando os excessos dos
procuradores como um "deslize" adolescente. Não há, em parte alguma, uma
denúncia dura à infâmia, à agressão brutal à democracia, que é expor
dessa maneira o principal quadro de todo um campo político,
desperdiçando, em plena crise, e às vésperas de uma eleição, milhões de
reais em recursos públicos para influenciar as urnas.
Não se trata de "excesso" e sim de um crime, cometido pelos procuradores da Lava Jato.
Os líderes do golpe estão apenas repetindo o que vem fazendo desde o
início da operação. Quando notam que se avolumam as críticas a seu
partidarismo, puxam o freio, vazam delação contra um tucano, logo
esquecido em seguida, ou mesmo contra um membro do governo golpista.
Nada muito grande, que comprometa a estabilidade do golpe - o vazamento
de Sergio Machado foi apenas o susto inicial necessário para o governo
saber quem manda.
Enquanto isso, Sergio Moro, após todas as ilegalidades que
protagonizou, está nos Estados Unidos, recebendo dinheiro e sendo
tratado como "heroi" justamente por uma dessas organizações
conservadoras de péssima fama democrática.
Recentemente, o Supremo aprovou uma nova regra que permite aos juízes
receberem cachê de palestras sem terem de informar ao público o seu
valor. É genial. A propina foi legalizada para o judiciário. Parece uma
lei feita para beneficiar diretamente Sergio Moro.
Apesar da reação enorme das redes sociais, na forma de humor,
desconstruindo o Power Point dos procuradores, não podemos subestimar o
poder de fogo de um ataque simultâneo, concentrado, de todos os jornais,
revistas, tvs e rádios, repetindo o dia inteiro a mesma manchete contra
Lula.
O estrago no curto prazo, para as eleições que se realizam em duas
semanas, está feito, e não é outra a razão da pressa dos procuradores.
Eles precisavam seguir uma agenda, a qual exigia que essa denúncia
precisava ser feita agora, para que seus desdobramentos pudessem atingir
o ápice - a aceitação da denúncia por Sergio Moro - dias antes das
eleições.
Uma eventual prisão de Lula, então, poderia ser cogitada poucos dias
antes do segundo turno eleitoral, embora eu prefira acreditar que os
operadores do golpe tenham ao menos o bom senso de prever que tal
violência poderia se reverter contra eles.
Pode acontecer, portanto, que Sergio Moro aceite a denúncia, mas não
prenda Lula. O mais inteligente, da parte do golpe, seria cozinhar essa
denúncia durante meses e meses, juntamente com o vazamento seletivo de
mais delações premiadas, e, por fim, condenar Lula em algum momento de
2017, para lhe tirar do jogo eleitoral através da ficha limpa.
O blogueiro Luis Nassif, em sua série de análises de xadrez, tem
feito algumas especulações sobre o nascimento de conflitos no interior
do núcleo golpista, sobretudo entre PMDB e PSDB.
Não acredito que essas brigas serão determinantes, e abalarão o
equilíbrio do golpe, por uma razão simples: o golpe tem uma liderança
bastante clara, que é a grande mídia, e um chefe, a Globo. Qualquer
briga no interior do golpe pode ser rapidamente dirimida pela Globo, que
é a representante maior das elites do dinheiro, além de ser não apenas
uma representante, mas a própria elite do dinheiro, visto que a família
Marinho é, segundo a Bloomberg, a mais rica do país.
A casta jurídico-policial é apenas o cão de guarda dessa mesma elite.
Não haverá grandes conflitos no golpe porque o butim é grande demais.
Há recursos suficientes para todos se aproveitarem do saque aos bens
públicos. Ao menos por um tempo.
A crise econômica não é problema para a elite brasileira, porque ela
já se adaptou, desde a década de 80, a ganhar dinheiro com a crise,
através de investimentos de risco no mercado financeiro que permitem ao
investidor obter altíssimos lucros com inflação e juros. A crise,
portanto, para alguns poderosos abutres do setor financeiro, é uma
excelente oportunidade para lucrar mais.
A casta jurídica, por sua vez, está confortavelmente instalada na
rede de proteção que construiu para si à força de chantagens cada vez
mais brutais contra o poder político.
Em seu blog, Renato Rovai especula sobre o aumento da repressão a
movimentos sociais após as eleições. Pode ser, mas devemos entender que a
elite - financeira, midiática, burocrática - não precisa apelar à
repressão.
No campo e áreas indígenas, a história é distinta. O golpe fez crescer, imediatamente, a violência.
Na cidade, quem deseja a repressão é a pequena burguesia, que sofre
com as turbulências políticas e sociais e pressiona os órgãos de
segurança.
A elite financeira, porém, não fica parada nos bloqueios de rua, não
sofre com greves bancárias porque tem dinheiro no exterior, e, em última
instância, pode assistir o circo pegar fogo de um hotel em Nova York.
Por isso mesmo, esse será o principal desafio da esquerda: terá de
analisar objetivamente os métodos usados para pressionar o governo, de
maneira a não provocar hostilidade de setores vulneráveis da pequena e
média burguesia e da classe trabalhadora. Esses são os setores que estão
sendo e serão mais diretamente atingidos pelo golpe e suas
consequências.
Como conquistá-los, portanto, à causa democrática?
O dono de um restaurante, de um botequim, o proprietário de uma
pequeno mercado na periferia, não podem ser vistos como representantes
das mesmas classes abastadas que deram o golpe. Eles podem até pensar
como eles, mas não pertencem à mesma classe.
Um membro da casta burocrática, um promotor, mesmo com renda similar a
de um médio mercadista de periferia, goza de uma segurança financeira
que está a anos luz da realidade do comerciante.
Uma das autocríticas mais responsáveis que emergiram nos últimos
tempos é sobre o distanciamento entre as direções sindicais e o povo,
que se reflete em manifestações até pouco tempo agendadas para o meio da
tarde de dias da semana.
O golpe inaugura, além disso, uma era extraordinária, que pede
medidas extraordinárias, originais mas não exóticas, responsáveis mas
não estéreis, prudentes mas não covardes, ousadas mas não
inconsequentes, ágeis mas não apressadas. E que considerem,
objetivamente, as condições concretas em que se dará a luta.
A falta de liderança no campo popular hoje é sua maior
vulnerabilidade, e por isso será necessário que ativemos, com urgência,
processos democráticos de formação de novos líderes, voltados à
atividade política geral e não à burocracia de partidos, sindicatos e
organizações.
Os elementos que derrotarão o golpe, em seu devido tempo, serão suas
próprias contradições - não exatamente o conflito entre os lacaios do
golpe, mas as contradições conceituais das ideias defendidas por eles.
É um golpe, por exemplo, liderado por setores que se acreditam
liberais, mas desprezam as principais - quiçá únicas - virtudes do
liberalismo: a liberdade política, expressa no voto, e a liberdade
jurídica, expressa nas garantias individuais que nos protegem dos
arbítrios do Estado.
Ao final de seu livro A Radiografia do Golpe, Jessé Souza lamenta que
não mais se "possa dizer onde está o limite entre o que é jurídico e o
que é político no Brasil de hoje. Esse fato é gravíssimo, já que
equivale a dizer que não temos, hoje em dia, mais justiça nem aparelho
judicial independente".
Ainda no livro de Jessé, ele nos lembra de um ponto tão básico das
liberdades civis modernas que custamos a acreditar esteja sendo atacado
pelos golpistas de hoje:
"As regras e procedimentos jurídicos não são, como pensa o leigo, entraves à justiça rápida. Eles são entraves à injustiça".
É incrível que membros da própria casta jurídica, aqueles mesmo que
deveriam defender nossos direitos constitucionais (são pagos regiamente
para isso), estejam hoje liderando uma verdadeira cruzada para reduzir
os nossos... direitos constitucionais, tratados como entraves à justiça,
e não o que eles realmente são, entraves ao arbítrio.
Não é surpresa que os líderes dessa cruzada sejam os mesmos líderes da Lava Jato...
A Lava Jato tem, desde seu início, tratado qualquer iniciativa dos
réus em sua própria defesa como "obstrução de justiça". O conceito
"obstrução de justiça" nunca foi tão distorcido, pois se vê a "justiça"
apenas como monopólio da violência pelo Estado, e não direito do cidadão
à liberdade e à segurança, sobretudo em face da máquina estatal.
Pepe Escobar, em entrevista a um canal independente francês (aqui, com legenda),
afirma que o Brasil é cobaia do tipo mais sofisticado e sinistro de
golpe de Estado da modernidade. É o golpe lento, suave, frio, de longo
prazo, baseado principalmente numa manipulação monstra da opinião
pública, associado a um controle gradativo do sistema judicial do país.
Eu separei um trecho de 20 segundos de uma entrevista em que Pepe
Escobar faz uma brilhante análise do golpe no Brasil:
Vale a pena assistir a entrevista inteira. Nela, Pepe faz um tremendo
elogio à blogosfera brasileira, que ele considera a mais influente do
mundo (Glenn Greewald também já falou algo similar).
Haverá reversão do golpe, claro. A safadeza da elite e da mídia serão
vingadas. A experiência do golpe nos levará a construir, no futuro,
mais garantias às liberdades e à democracia.
Este é um imperativo revolucionário, que estamos construindo aqui e
agora. O golpe, em verdade, era a condição necessária para que a luta
pela democracia retornasse às suas raízes, a uma crítica radical à
concentração midiática, ao conservadorismo judicial e ao financiamento
empresarial de campanha.
Mas temos que nos preparar melhor. Não basta ganhar eleições. É
preciso construir uma nova cultura política, mais democrática e mais
fiel aos princípios de liberdade e direitos humanos que norteiam a nossa
Constituição.
Isso pode demorar ainda uns dez ou vinte anos. Nesse tempo,
montaremos uma grande rede de resistência, um espaço de segurança que
nos permita lutar, crescer, trabalhar e sermos felizes.
Fonte O Cafezinho
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