O momento histórico presente é tão convulsionado que as celebrações periódicas também trepidam na dança da legitimidade. Tudo o que soa institucional acaba por ganhar um verniz de suspeição, haja vista o estado de coisas em que se transformou o Brasil.
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É quase um exercício burocrático celebrar o Dia Internacional da
Mulher sem o ímpeto revolucionário do “quero mais”. É preciso denunciar
os retrocessos que ocorrem, sobretudo, no Brasil.
Há também – é preciso dizer – um estilhaçamento na vidraça semântica
dos gêneros. A sigla LGBTQ começa a delinear a única formatação
possível para uma sociedade humana alheia às animalidades biologicistas
do passado.
A grande doença subjetiva a ser combatida no presente momento é o
‘homem’. O homem e seu machismo, sua homofobia, sua misoginia e sua
heteronormatividade secular, burra e opressora.
Não é à toa que os movimentos feministas se aglutinam neste 8 de
Março para manifestar seu repúdio àquele ser inominável que presentifica
o ódio, o terror e a incompetência viril dos bestializados.
Nos dias de hoje, admitamos: é uma vergonha ser ou se afirmar
‘homem’. É também algo da ordem do risível e do grotesco – bem à moda
fascista do nosso representante executivo de turno.
Diante destas questões e guardadas as ressalvas filosóficas, fazer
menção ao Dia da Mulher no Brasil em 2020 talvez exija algo mais
invasivo que a fala genérica dos direitos e da igualdade.
O Dia da Mulher no Brasil exige que se fale de Dilma Vana Rousseff.
O primeiro fato que nos impõe Dilma como tema central para o dia de
hoje é singelo: a sociedade brasileira permitiu que se tirasse da
presidência da República uma mulher legitimamente eleita, num processo
claro de misoginia política.
Dilma sofreu os ataques mais covardes que a imprensa brasileira já
dirigiu a uma mulher. Lembrar causa repulsa. Foi um espancamento diário.
Os jornalões brasileiros tratavam Dilma como muitos maridos violentos
tratam sua esposas: na base do insulto e da ameaça.
Esse jornalismo machista ainda induziu grande parte do país a
produzir os linchamentos abjetos que acabaram por matar a nossa
democracia – eis a razão pela qual o Dia Internacional da Mulher no
Brasil também poderia ser o Dia Internacional da Democracia: ambas
sofrem ataques da sociedade machista.
Dilma está no centro do nosso trauma histórico no luto pela perda da
soberania. Sofreu na pele institucional o que sofrem diariamente todas
as mulheres no Brasil. Defender seu legado e seu mandato ainda é a
condição mais importante para a reconstituição da República e para a
reparação do respeito público por nossas vidas.
Dilma abalou as estruturas. Ser a primeira mulher a presidir um país
complexo e imenso como o Brasil não é pouca coisa. Nem os Estados
Unidos, conhecidos por serem o referência liberal das democracias
modernas, não tiveram, ainda, uma mulher presidente.
Dilma ainda enfrentou o universo masculinizado de poder. Por isso,
foi qualificada como ‘dura’, ‘grosseira’, ‘impiedosa’. “Sempre cercada
de homens doces e generosos”, como ela costuma ironicamente dizer.
Dilma impôs ao governo – enquanto a deixaram governar – uma qualidade
de execução de obras jamais vista. Tirou aquele ‘toque masculino’ da
propina endêmica de circulação. Por isso foi severamente atacada do
primeiro ao último dia de seus mandatos.
A lógica dos governos no Brasil é mais ou menos como a lógica do
Bolsa-Família: dê-se um cartão do programa a um ‘homem-padrão’ e ele irá
comprar bebida e maltratar mulher e filhos.
A mulher Dilma representava o oposto de tudo isso. Nem os homens de
‘esquerda’ que lhe cercavam estavam à altura do desafio de governar o
país – por isso ela convidava cada vez mais mulheres para compor o seu
governo, lição já aprendida por Lula durante o seu mandato.
A governança praticada pelas mulheres é mais eficiente, mais
profissional, mais humana. Dilma Rousseff mostrou isso porque seu
governo era extremamente ‘feminino’ na acepção política do termo.
É por isso que lembrar de Dilma no Dia Internacional da Mulher é
obrigatório. Dilma humanizou o país dando sequência ao mais robusto
projeto de inclusão social da história brasileira, criando o Mais
Médicos, criando o Minha Casa Minha Vida, criando o Ciência Sem
Fronteiras.
Todos esses projetos foram extintos pelos homens que lhe arrancaram do governo com as ferramentas da traição e do ódio.
Mas Dilma não é apenas essa mulher que revolucionou a governança
pública do país. Antes de ser ministra ou presidenta, ela já figurava no
panteão das biografias mais impressionantes da nossa história. Por
defender o país, foi presa e torturada. Teve sua vida devastada pelos
militares assassinos da ditadura militar.
O fato de Dilma Rousseff sobreviver à violência do regime ditatorial
brasileiro – e não entregar sob tortura nenhum dos homens que lutaram ao
seu lado – já era uma grande provocação à elite conservadora
brasileira. Sua chegada à presidência foi de tal dimensão simbólica que
fez despertar as bestas semi adormecidas do fascismo, desesperadas com a
situação de ver sua ‘vítima’ viva e no comando do país.
Alguém aqui pode ter a dimensão do que significava Dilma Rousseff ser
a comandante em chefe das Forças Armadas brasileiras e receber a
continência de todos os generais, bem como enquadrá-los ao primeiro
sabor de uma fala inadequada?
A biografia de Dilma esmagava – e esmaga – seus opositores. Enlouquecia deputados do baixo clero fascista como Jair Bolsonaro.
Como a história se desenrolou, todos sabemos.
Hoje temos a explosão do feminicídio no Brasil. A senha para que
homens violentem suas esposas, mães e filhas foi dada, primeiro pelo
usurpador Temer, depois pelo torturador Bolsonaro.
Há o retorno do genocídio indígena, do extrativismo predatório, do
aparelhamento das polícias, do sucateamento do ensino público. A
economia brasileira é a mais mal conduzida do mundo e o país ainda não
entrou em colapso graças às reservas deixadas pelos governos Dilma.
Erigiu-se em substituição ao governo de uma mulher, um governo de
homens racistas, descompromissados, incompetentes e machistas até o
fundo da alma.
Quando vemos, hoje, nos jornais a defesa de jornalistas como Patrícia
Campos Mello, Vera Magalhães e tantas outras jornalistas atacadas por
um governo absolutamente bestial, perguntamo-nos: aonde estavam esses
defensores das mulheres quando Dilma Rousseff era violentamente atacada
por incitação país afora?
A resposta é: estavam na linha de frente dos ataques.
E ainda vale dizer: Dilma jamais atacou a imprensa, pelo contrário.
Sempre defendeu a liberdade de expressão, sempre deu entrevistas
diretas, sempre foi generosa e equilibrada no trato com os jornalistas –
ainda que sua frontalidade assustasse a velha estética do compadrio
presente nas redações brasileiras.
Dilma Rousseff, permitam-me dizer, é muito mais do que tudo isso que
foi dito até aqui. Ela representa a força da mulher brasileira, mas tem
dimensão global como Lula.
Ela será, para sempre, considerada uma das mulheres mais importantes
da história. Sua imagem figura ao lado de Frida Kahlo, Rosa Parks, Maria
da Penha, Anita Garibaldi, Joana D’Arc.
Dilma Rousseff representa o país que deu certo, à revelia dos homens.
Sua semente foi plantada e, como Lula, ela é também é uma ideia. A ideia de generosidade, a ideia de afeto, a ideia de país.
Dilma Rousseff é a nossa possibilidade de futuro, um futuro que ainda
retornará, tão logo a vontade do povo brasileiro seja novamente
respeitada.
Fonte Nocaute